Cicatriz
Um poema
Por que eu devia me esforçar pra te esquecer
se amanhã, invariavelmente,
cê vai arrombar a porta da frente
e invadir meus sonhos
como quem não quer nada?
A ressaca moral vem
mesmo sem eu ter feito nada
pra me arrepender
e talvez me arrependesse menos
se tivesse feito alguma coisa
pra merecer a ressaca.
E, na tentativa de alcançar a lucidez,
me submeto a constantes testes de realidade
que, sem um pingo de misericórdia,
calam minha loquacidade
e me fazem perder a vez.
Os sonhos lúcidos, quando vêm,
servem apenas pra que eu,
mesmo assim em vão,
tente te alcançar até que,
súbito, me perca pra sempre
em meio ao teu não.
A ferida dói menos quando aberta.
Fechar me traz o remorso
de ver tantos glóbulos brancos e vermelhos
presos sob minha epiderme.
A berne, antes concentrada
na ferida aberta em minha pele,
fica sem distração nem alimento
quando não há a presença do que me fere.
Deixo-os livres pelo simples medo
de fechar e esquecer
que essa ferida existiu.
E medo — esse ainda maior —
de que a cicatriz desapareça
tal qual a mágica daquelas propagandas
do Cicatricure.
Por que te esquecer, se a cicatrização
me doeria mais que a própria ferida?
Por que te esquecer, se te esquecer
dói mais que o corte em carne viva?
Por que te esquecer, se em tanto tempo
você não me deu sequer o prazer duma briga?
Por que te esquecer, se outrora
tu deu sentido à minha vida?
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