happier than ever.

Um conto

giulia
sem mote.
3 min readSep 24, 2021

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Arte: Maria Eduarda

“e se você não tivesse desistido de nós?”

o café preto que prepara é sempre o mesmo, aromático e forte, deixado ali para as amigas tomarem quando acabarem de se preparar. pega seu chá pra levar, já pronto, se despede das colegas de casa e sai na rotina delirante da cidade mais linda do mundo.

o trânsito é sempre caótico e ela dá preferência ao metrô. pega sempre o segundo que passa – ela tem tempo, sempre adiantada.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

lá dentro, ela se senta sempre no lugar perto da janela mesmo sabendo que embaixo da terra não tem vista pra cidade. lê a continuação do livro da semana passada, os rebeldes a esperam para guerrear. o livro é eletrônico; não aguenta tanto peso assim, a bolsinha de verão. mesmo com dificuldade para ler, não coloca os óculos no rosto.

a estação de metrô é perto e o prédio do trabalho chega logo, ela bate o ponto e não pega o elevador, sobe os 12 andares de escada e troca de sapatos antes de entrar no seu departamento.

o ofício tem pressa de ser terminado com urgência mesmo que esteja todo adiantado.

“o que a senhora acha?”

“por favor, assine pra nós?”

“o que a senhora aprovar, está bom”

“rosa choque ou rosa pink?”

“preto ou brocado?”

“amarelo ou verde limão?”.

as horas passam como se fossem pluma. leves, sempre voando.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

ela sai no mesmo horário todos os dias. depois de seus colegas de trabalho. espera com calma que todos tenham ido, como um capitão que sempre espera o time entrar primeiro no vestiário.

a noite na cidade é seu momento preferido. encontra as amigas tarde da noite pra jantar, mas chega quando elas já terminaram. mente, diz que já comeu. juntas pegam o metrô que volta pra casa.

o caminho até o metrô é caótico, as vozes femininas junto com a vida da cidade. o barulho bombardeava seu coração. era aquilo que valia a pena.

antes de chegar em casa, pausa pro docinho?

a pasticceria fechava tarde, todas entraram já sabendo o que pedir. inúmeros cannoli de diversos sabores.

o que a pega de surpresa, é um docinho incomum.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

o brigadeiro não tem lugar no meio dos doces italianos.

ela se incomoda, porque a faz lembrar.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

a faz lembrar que o seu café sempre foi o preferido dele, que sempre tomou macchiato mas o dela era tomado sempre liscio.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

a lembrou que vendeu o carro pra poder tomar o metrô com ele todos os dias, sentar na janela e reclamar da falta de vista. o lugar no corredor era dele que, sempre sabia qual era a próxima estação.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

não pega mais taxi, não sobe escadas. vai embora depois de todos no trabalho, o mais tarde o possível.

não pode se dar mais ao luxo de ter uma crise já que ele não está mais lá e ela não pode mais discar seu número – ainda presente nos números de emergência do celular.

chega em casa esgotada, para não ter que lembrar das coisas que evitou, nem o motivo de evitar.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

ele nunca gostou da pasticceria, onde os doces eram brandos demais, e ela se sentia culpada por não preferir os mais açucarados. brigadeiros eram seus preferidos, mas ela não os conseguia suportar. ele ficava bravo, porque o problema era ela. era sempre ela.

“e se você não tivesse desistido de nós?”

a falta dos óculos mesmo na sua necessidade, sua bolsinha de verão, mentiras brancas e romances, foram os únicos traços de sua personalidade que lhe restaram. de resto, lhe foi roubado tudo.

naquele lugar, no conforto da companhia de suas amigas, àquela hora da noite, ela se apercebe de lembrar de tudo o que queria esquecer e as cores desaparecem por um instante.

olha pro docinho e lhe pergunta aquilo que a circunda todos os dias e todas as noites, inconscientemente, que vem de manhã logo quando abre os olhos e que a prepara para fechá-los à noite: e se você não tivesse desistido de nós?

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