O visitante

Um conto

Jacqueline Sousa
sem mote.
2 min readSep 3, 2021

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Ilustração: Giu de Lorenzi

O lugar que moro parece grande demais.

Coloquei, no jornal dos domingos (pessoas interessantes leem jornal aos domingos), um anúncio procurando alguém para dividi-la.

Me empolguei ao receber o primeiro visitante. Troquei as cortinas, assei biscoitos e fiz café.

Ele tinha um olhar niilista mas via significado em tudo.

Me senti em casa pela primeira vez, e os cômodos antes silenciosos se encheram com o som da sua voz e o barulho dos seus sapatos.

Mas ele não havia trazido o futuro. Em suas bagagens, havia apenas o passado e o presente.

Ele se foi tão rápido que mal pude terminar o retrato que comecei a pintar.

Me despedi ao som de um samba antigo e dancei sozinha preenchendo os cômodos novamente vazios.

Senti sua falta apesar da breve visita, mas me animei quando um novo chegou.

Contudo, reparei que ele também não havia trazido o futuro…

“Às vezes o passado é pesado demais” — ele me disse, um sorriso amarelo, ao perceber meu olhar oblíquo para suas bagagens.

Dei um sorriso triste.

No seu passaporte, haviam muitos carimbos; na sua mala, poucos presentes; nos seus pés, a ânsia de ir embora.

Aproveitei ao máximo tentando não pensar nisso.

E permiti outros visitantes, pensando que talvez algum deles pudesse gostar tanto da vista e dos papéis de parede e dos discos que resolveria buscar o futuro.

Mas não houve.

Talvez se assustassem com alguns buracos nos rodapés, ou o som alto da minha risada seguida de um longo silêncio.

Talvez o café fosse doce demais, ou não entrasse luz suficiente.

Uns foram breves quando uma canção dos Beatles, outros longos como um filme de Nolan…

Mas todos se foram.

Percebi, sozinha encarando os grãos de poeira dançando ao sol, o quanto havia para se reformar. O papel de parede já se descascava, havia poeira e objetos esquecidos por todo lugar.

E então você apareceu.

Meio sem graça, sorriu meio torto, falou da impaciência, citou meu poeta favorito e comentou sobre o cheiro de biscoitos recém assados. Ri do seu jeito, me identificando com o traço de tristeza em seus olhos e o cansaço em seus ombros.

Queria lhe dar um lugar para descansar.

Mas como, se eu mesma não descansei?

Com toda a bagunça para ajeitar?

Vi em suas mãos que não havia trazido o futuro.

Meu olhar cansado encarou o seu e não consegui impedir um leve desaguar dos rios dentro de mim.

“Me desculpe, não há vagas.”

Fechei a porta, certa de que me mudaria para um lugar menor.

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Jacqueline Sousa
sem mote.

Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome.