Política e desunião: Egito se despede da Copa e expõe momento delicado no país

Caio César Nascimento
Sem Mundial
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6 min readJun 26, 2018
Salah marca novamente, mas não consegue evitar derrota perante Arábia Saudita. Foto: AFP

De forma melancólica, o Egito fechou sua participação na Copa do Mundo, nessa segunda-feira, após perder para a Arábia Saudita, de virada, por 2x1. Pior do que na campanha da Copa de 1990, sua última aparição no Mundial, onde, ao menos, tivera a decência de empatar, o Egito viu sua geração mais prolífica protagonizar um vexame faraônico ao terminar a competição zerada. São cinco derrotas e dois empates em Copas do Mundo.

No entanto, o papelão na competição, culminado pela derrota para uma equipe notoriamente inferior, alastrou uma chama que, para quem não acompanha de perto, estava queimando já há algum tempo. O que aconteceu em Volgogrado não foi obra de deficiência técnica, apesar do domínio saudita na partida.

Para entender melhor o assunto, vamos voltar um pouco para entender a sequência de fatos que afetaram na eliminação egípcia na fase de grupos. Futebol e política andam de mãos dadas, apesar de muita gente não aceitar isso. Num país tão importante politica e culturalmente falando como o Egito, as ligações entre esses dois assuntos causam colapsos. E quando sua maior estrela está envolvida, as coisas pioram.

Mohamed Salah esteve muito perto de não jogar a Copa do Mundo. E não, não foi apenas pelo golpe de judô de Sergio Ramos, na grande final entre Real Madrid e Liverpool. Antes disso, o “Rei do Egito” havia entrado em conflito com a federação de futebol, que estava usando a imagem do craque para benefício próprio. Os aviões da seleção estavam impressos com a imagem de Salah juntamente com uma operadora de telefonia, que é rival da empresa na qual o camisa 10 tem contrato. Isso aconteceu sem o consentimento do atleta, que, obviamente, se sentiu traído e lesado, correndo o risco de perder o acordo milionário.

A relação entre Salah e a federação estava em frangalhos, algo que já havia sido rachado em 2014, quando o governo ameaçou o jogador com serviço militar. O Egito sofreu um golpe em 2013 e a questão do alistamento ganhou ainda mais importância no país. Na época, Salah estava negociando sua transferência do Basel para o Chelsea e esse processo atrasou as negociações. Salah entrou em acordo com o governo e conseguiu resolver o imbróglio.

Ele não tem o apelido de “Rei do Egito” à toa. Desde muito jovem, o egípcio se notabilizou pelo caráter e carisma, passando uma imagem de humildade e amor ao próximo. Essa tendência, que Salah propagou com a ajuda de sua habilidade futebolística, ficou conhecida como “novo muçulmano”.

O fenômeno Salah, que é ícone para a comunidade muçulmana. Foto: AFP

Amado no país, Salah se tornou numa figura proeminente no islã e, de forma abrupta, viu-se rodeado de líderes políticos querendo surfar na mesma onda.

O estopim aconteceu em território russo, mais especificamente em Grozny, capital da Chechênia, que serviu de base para a delegação do Egito. A decisão de ficar na Chechênia já havia chamado à atenção antes. Majoritariamente composta por mulçumanos, razão pela qual — supostamente — a federação tinha feito sua escolha, também é um local de guerra e ódio.

O território foi palco de guerras entre forças separatistas e o exército russo durante muito tempo. Para piorar a situação, o líder checheno, Ramzan Kadyrov, é acusado de vários crimes de violação aos diretos humanos, dentre eles a caça a comunidade LGBT — com relatos de sequestros e assassinatos, além de propaganda de “cura gay” -, foi anfitrião de um banquete para entregar a Mohamed Salah o título de “cidadão honorário”. O encontro aconteceu no dia 10 de junho e a estrela da equipe teria ficado profundamente desgostosa, especialmente com a divulgação das fotos e propaganda feita em torno da situação.

A federação egípcia nega que Salah tenha ficado nervoso, mas o encontro, por si só, pegou muito mal. Foto: Getty Images

Mediante a isso, Salah teria manifestado a intenção de abandonar a seleção de vez, literalmente se aposentando aos 26 anos da carreira internacional, porque ele estaria cansado de servir de propaganda política. Aliás, esse fato já aconteceu com outra grande estrela local: Mohamed Aboutrika, que, inclusive, foi colocado na lista de terrorista do país por, supostamente, ser ligado a “Irmandade Muçulmana”.

A notícia tomou enorme proporção dentro do elenco, que já estava insatisfeito, mas que conseguiu segurar a bronca na estreia, contra o Uruguai, quando, inclusive, jogou muito bem. Várias celebridades e ex-jogadores da seleção defendem Salah dizendo que a federação deve “deixa-lo jogar, apenas”.

Descontente e fora da forma ideal, Salah estava visivelmente afetado pelos eventos transcorridos. Com o herói abalado, o restante da seleção viu-se ilhada em meio ao caos. Jogadores importantes, como Trezeguet, Elneny e Hegazy estavam mais pilhados do que o necessário, especialmente pelas circunstâncias que envolveram o jogo em si. Gol no último minuto, bola desviada no capitão da equipe, pênalti esquisito… O psicológico, que vem sendo debatido em demasia durante a Copa, também foi um grande adversário que o Egito não soube lidar.

O fato de Salah não ter comemorado o golaço que fez contra a Arábia Saudita diz muito sobre o que foi essa campanha vergonhosa dos faraós. Os chiliques de Trezeguet, sobretudo no duelo contra os sauditas, também.

Foto: AFP

A Copa do Mundo, ao mesmo tempo em que leva alegria para os fãs do esporte rei, também exala tensão e cobra uma força interna muito grande dos atletas, seja ela imposta pelos adversários ou por terceiros.

Debates sobre a qualidade técnica dos comandados de Héctor Cúper já estão sendo feitos, apesar de não ser o ponto principal. O próprio treinador, que já não gozava do respeito dos egípcios, virou um dos grandes vilões nesse caldeirão político e futebolístico. Além, claro, do questionamento sobre o físico dos atletas, algo que presente em várias reclamações dos egípcios nas redes sociais.

Infelizmente, um marca histórica passou batida. Aos 45 anos de idade, Essam El-Hadary, lendário goleiro dos Faraós, entrou em campo em Volgogrado e se tornou no homem mais velho a atuar na Copa do Mundo, superando Faryd Mondragón, que estabeleceu essa marca na Copa do Mundo de 2014, no Brasil.

Em prantos, o enorme feito de El-Hadary ficou em segundo plano. Foto: BBC

El-Hadary, inclusive, pegou um pênalti no finalzinho do primeiro tempo. No entanto, em lance duvidoso, o árbitro assinalou outra penalidade a favor dos sauditas, que empataram a partida e, no final do segundo tempo, sepultaram a virada. A irretocável carreira do goleiro, presente em vários momentos de glória e revolta, vai ganhar esse ingrato asterisco na partida de despedida do Mundial.

Logo após a partida, Salah disse que levaria o país novamente ao Mundial, colocando assim mais um parágrafo nessa história cheia de obstáculos. A princípio, essa declaração foi para amenizar o caos que vive o país que ele tanto ama. O futebol é a única escapatória da dura realidade que vivem os egípcios. Um time que tinha potencial para algo melhor, mas que para isso precisaria de união, acabou ruindo em pedaços, diferentemente das suntuosas pirâmides do Egito e mais parecido com a atual realidade do país.

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