ENTREVISTA: Maggie Stiefvater fala sobre seu processo criativo, fãs e mais

Alfredo Neto
Sem spoiler
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10 min readJul 15, 2020
Imagem: Divulgação. © Stephen Voss

“As histórias se estendem em todas as direções”, escreve Maggie Stiefvater no início de “O Rei Corvo”, livro final de “A saga dos corvos”. Com um passo para o lado e outro para trás, a escrita da autora funciona como uma câmera que filma o triunfante final da série que já foi lida por milhões de pessoas no mundo inteiro. Sua habilidade com palavras é excepcional, e muito do encantamento dos leitores com Blue, Gansey, Adam, Noah e Ronan vem de como ela brinca com os sentidos e as sensações durante a leitura. Há um pouco de verdade quando dizem que não é uma leitura para qualquer um, porém não deixe que isso te impeça de conhecer o universo da autora, pois verdade maior que essa é a certeza de que uma vez fisgado por sua escrita não tem mais como voltar.

Maggie Stiefvater já foi lida por mais de 3 milhões de pessoas no mundo inteiro, tendo seus livros publicados, ao todo, em mais de 30 países; sendo que grande parte deles chegaram ao Brasil, em maioria pela editora Verus. “A Saga dos Corvos”, “A corrida de escorpião”, “Todos os Santos Malditos” e “Os lobos de Mercy Falls” são seus livros e séries mais conhecidos aqui no país. Criadora de um dos universos mágicos mais celebrados da literatura jovem adulta de fantasia, ela escreve histórias perfeitas para os fãs de Laini Taylor, Holly Black e Leigh Bardugo.

Pela primeira vez, a autora aceitou conceder uma entrevista a um portal brasileiro — o Sem Spoiler, o maior portal de notícias literárias do Twitter. Nesse bate-papo, ela falou sobre como constrói seus personagens, como funciona seu processo criativo e como se dá sua relação como escritora com a internet. Segue o fio para ler na íntegra.

SEM SPOILER: Maggie, obrigado por separar um tempo para essa conversa! Queremos começar essa entrevista com um desafio: você consegue explicar em 280 caracteres o que um leitor pode esperar de um livro de Maggie Stiefvater?

MAGGIE STIEFVATER: Pessoas complicadas e sem jeito para lidar com problemas encarando seus maiores medos e esperanças com eventos sobrenaturais metafóricos até o pescoço. Pode também incluir plantas, pássaros, carros e linguagem figurada. Personagens morrem. Às vezes mais de uma vez. EosFiNaiSMDS.

SEM SPOILER: Seus livros já venderam milhões de cópias no mundo todo e foram traduzidos para mais de 30 idiomas. Só no Goodreads, “A Saga dos Corvos” conta com mais de 500 mil avaliações. Como você lida com os feedbacks dos leitores? Você costuma ler resenhas?

MAGGIE STIEFVATER:

1. Quanto número. Você trouxe tantos, tantos, tantos números.

2. Posso inverter essas duas perguntas? Responder a uma no lugar da outra? Porque a resposta para a última é: sim, eu leio resenhas; assim que o livro é lançado. Quero saber se escrevi o livro que queria escrever. Note que eu não disse “quero ver se todos gostaram”. Ninguém nunca vai escrever um livro que todos vão amar — você pode colocar essa teoria à prova procurando por resenhas do seu livro favorito da vida. Filtre-as em busca de avaliações uma estrela e LÁ VAMOS NÓS. Nenhum livro pode ser amado unanimemente. Na verdade, quanto mais único um livro for, o mais provável é que ele seja tão amado quanto é odiado. A paixão cega nossas percepções. Por isso, o que procuro de verdade nas resenhas é saber se as pessoas estão sentindo a história do jeito que planejei na minha cabeça. Leio doze, cem, a quantidade de vezes que for, até ter uma ideia geral do que fiz certo, do que fiz errado e então me comprometo a me esforçar mais no próximo.

3. Agora, sobre o feedback dos leitores — é diferente porque se trata de um processo contínuo. Não é como ler resenhas quando você está lá disposta a aprender. Em vez disso, os feedbacks vêm o tempo todo e dos mais variados tipos de pessoa que querem as mais variadas coisas. Elas também vêm tanto de séries que acabaram de ser lançadas e ainda estão frescas na cabeça, de livros em que ainda estou trabalhando, quanto de livros que foram lançados há uma década e que, até onde sei, podem ter sido escritos por uma pessoa completamente diferente de quem sou agora. É muita coisa para uma única pessoa absorver, pelo menos para mim é. No passado, eu respondia a cada comentário que recebia on-line, porque queria que meus leitores soubessem que dou valor à atenção que me dão. Tive que parar com isso, há cerca de cinco anos, quando essa tarefa começou a tomar três horas do meu dia. Honestamente, foi um momento estranho perceber que eu tinha que escolher entre ser uma personalidade da internet ou uma escritora. Quem você é, afinal? Você é aquilo em que gasta seu tempo e energia. Por isso, agora, muito embora eu aprecie de verdade meus leitores, normalmente perco muito do que eles falam on-line, porque estou off-line na maior parte do tempo. Mesmo que pareça que estou presente, é porque puxei meu celular do bolso de trás, mandei um update para o vazio e depois voltei para o que quer que estivesse fazendo no mundo real. O que provavelmente faz de mim uma personalidade da internet ainda pior, ao passo que me permite melhorar como escritora. Bom, fico com mais tempo livre, pelo menos. Manter distância é algo importante, para mim, para que meus livros não sejam todos sobre uma vida on-line.

SEM SPOILER: Segundo outras entrevistas que você deu, você sempre pensa na experiência de leitura de quem vai ler suas obras e se preocupa em contar a história da melhor maneira possível. Mas, enquanto leitora, o que suas histórias favoritas têm em comum? O que faz Maggie Stiefvater favoritar um livro?

MAGGIE STIEFVATER: Eu gosto de sentir que recebi em mãos algo que nunca tive antes. Quero algo que fique na memória. Há gêneros que me são confortáveis, é claro; livros em que mergulho em busca de um torpor de nostalgia. Porém, se decido pegar algo diferente, normalmente quero me sentar e dizer “Uau, que diferente. Que mundo novo, que personagens únicos, que estilo inovador, que jeito diferente e aguçado de olhar para o mundo.”

Também gosto muito que brinquem com as palavras.

SEM SPOILER: Você costuma falar que é uma contadora de histórias, não uma escritora. O livro é um meio de performance da sua arte. Para você, como forma e conteúdo se entrelaçam com a história que você quer contar? Como você decide qual é a melhor maneira de narrar um livro?

MAGGIE STIEFVATER: Acredito que leitores se conectam com uma história através de emoções. Quais sentimentos um livro transmite? Quais sentimentos um filme transmite? É por essa razão que conseguimos ignorar todos os furos em uma história. Porque as lemos com o coração. De acordo com a atmosfera criada. Prestando atenção a quem éramos no começo do livro versus quem nos tornamos no fim.

Quando se pensa assim, os personagens de uma história passam a ser coadjuvantes do verdadeiro protagonista: o leitor. Então me pergunto, o que eu quero que os leitores sintam? E assim conto a história pensando, durante todo o caminho, sobre a linguagem e as escolhas que os levarão até lá. Escritores têm todo tipo de truques para fazer isso. Linguagem inventiva. Onde colocamos a câmera. Até onde teremos coragem de ir.

Agora, obviamente, não dá para decidir qual emoção é a melhor ou qual vai vender mais. Para mim, o sucesso de um livro não se dá pela quantidade de cópias vendidas, mas por saber que consegui fazer com que os leitores sentissem o que eu queria desde o começo.

SEM SPOILER: Ler um livro seu é uma experiência e tanto de imersão, não só pela história em si, mas pelo jeito como ela é contada. Quais são os pontos que você considera essenciais para que essa imersão seja feita? O que os lugares, nomes e mitologia significam num livro de Maggie Stiefvater, para além daquilo que está mais exposto?

MAGGIE STIEFVATER: Ah, obrigada. Já que estou sempre pensando em como quero que o leitor se sinta, cada história é filtrada por essa lente. Isso significa que, se escolho uma cena para um capítulo, a construção do ambiente tem que ser feita de acordo com o sentimento que quero transmitir. Significa que as palavras que uso nessa cena foram escolhidas para transmitir para o subconsciente o sentimento que quero passar. Significa que a personagem que escolhi para habitar essa cena está lá porque ela será a melhor câmera, na minha opinião, para garantir esse sentimento.

Acredito que o cenário também seja muito importante. O local em que a história se passa. As pessoas ficam amarradas aos espaços que habitam. Os lugares em que vivemos moldam quem somos, e o que somos molda os lugares em que vivemos. Ter isso em mente faz com que os personagens pareçam, de fato, habitar um lugar que os leitores poderiam visitar.

SEM SPOILER: Seus personagens têm características muito próprias e todos eles são diferentes um dos outros. Como é para você desenvolver um personagem?

MAGGIE STIEFVATER: Eu roubo. O tempo todo. O TEMPO TODO. Eu era retratista antes de me tornar escritora, e a experiência de aprender a fazer boa arte visual não é muito diferente da de fazer boa arte escrita. Se você desenhar alguém de cabeça, com certeza vai sair alguma coisa humanoide. Olhos, orelhas, um sorriso. Mas, se você desenhar uma pessoa tendo uma foto ou a vida real como referência, vai conseguir mais especificidades. Ah, você dirá, esqueci que o cabelo podia ser assim. Ah, certo, essa sombra sob a sobrancelha é interessante. Esse tipo de coisa não ocorre quando fazemos algo de cabeça.

Dessa forma, quando roubo um personagem da vida real, pego detalhes que não existem na minha cabeça. Não preciso roubar um humano inteiro, só o necessário para desenhar um esboço realista de um humano. A vida real é estranha e complicada de jeitos que nunca esperamos, e incorporar esse caos às personagens faz com que pareçam mais vívidas.

SEM SPOILER: Uma dica recorrente de escrita sua é saber aonde você quer chegar com a história que está sendo contada. Por causa disso, o foreshadowing é um artifício narrativo presente em suas obras. Como você faz a dosagem do que precisa ser dito, de modo que o leitor fique curioso sem desvendar o mistério?

MAGGIE STIEFVATER: Nossa. Boa pergunta. Isso é algo que com certeza acontece na revisão. Meus primeiros rascunhos são medonhos. Longas páginas horríveis que fazem sentido só para mim. É na revisão que começo a lapidar e posicionar as revelações e os foreshadowings onde acho que ficaram mais satisfatórios e, então, me apoio muito nas opiniões de meus parceiros críticos e editor para me dizerem se acham que acertei ou não. O valor de uma opinião externa é insubstituível quando o assunto é a surpresa e as revelações de uma história.

SEM SPOILER: “A saga dos corvos” e “Todos os santos malditos” foram traduzidos para o português do Brasil por Jorge Ritter, que fez um trabalho incrível! Suas narrativas têm brincadeiras com a linguagem que às vezes não são possíveis de traduzir. Como é sua relação com os tradutores? Eles entram em contato para tirar dúvidas?

MAGGIE STIEFVATER: Depende muito do país. Eu estava justamente refletindo sobre tradução enquanto respondia a essa entrevista — até entrei em contato com um amigo brasileiro e perguntei “Será que estou tornando impossível a vida dos tradutores?”. Normalmente eles trabalham sem mim, entrando em contato só de vez em quando, caso alguma coisa pareça completamente impossível ou fiquem inseguros de fazer uma mudança muito grande. Os leitores me contam depois como se sentem com as traduções — alguns territórios parecem ter feito um bom trabalho preservando a ideia dos livros, a linguagem acrobática e as metáforas, enquanto outros parecem ter saído completamente dos trilhos, mudando o nome de personagens e traduzindo substantivos de forma tão errônea que os leitores ficam completamente confusos.

Meu caso favorito de tradução, na verdade, é o das edições britânicas. Os livros ainda estão em inglês, é claro, mas palavras do inglês americano foram trocadas por palavras do inglês britânico, o que faz com que pareça que todos aqueles adolescentes americanos passaram um bom tempo na Inglaterra.

SEM SPOILER: “A saga dos corvos” tem um fandom enorme e ativo nas redes sociais. Como você interage com eles? Qual é seu papel enquanto criadora do universo literário que eles tanto adoram?

MAGGIE STIEFVATER: Ah, sim, eu tenho fãs muito talentosos e apaixonados, fico lisonjeada. O fandoms, no geral, mudaram muito no decorrer de uma década, então minha relação com os fãs acabou mudando também. No começo, fandoms eram bem pequenos, contidos, e normalmente não esperavam uma interação dos criadores com eles.

E então, com o passar dos anos, conforme essa cultura foi crescendo e se tornando mais mainstream e mais criadores passaram a usar as redes sociais, fãs e criadores passaram a interagir mais — tanto positiva quanto negativamente. Mais conteúdo! Um contato mais pessoal! Mais discordância quanto à voz do autor ser, de fato, importante ou não depois de um livro ser lançado. Agora é algo colossal e os fãs de livros definitivamente mudaram de acordo com a linguagem e a estrutura dos fandons da TV e do cinema, os quais são constituídos por uma estrutura que envolve muita criatividade em postagens pós-consumo. Estrutura essa que, com toda a certeza, se encaixa melhor em um cenário com criadores menos presentes.

Por isso, hoje em dia não me envolvo muito pessoalmente com o fandom on-line; muito embora, é claro, a internet esteja mudando diariamente e o que é verdade hoje pode deixar de ser daqui a cinco anos. Também acho que essa questão vai de encontro ao que conversamos sobre feedback dos leitores no começo desta entrevista.

Será que sou uma personalidade da internet? Ou sou uma escritora? Qual dessas duas coisas o fandom precisa e quer que eu seja? No frigir dos ovos, acredito que a prioridade para mim sempre será criar mais histórias e trabalhar o quanto eu puder para conseguir fazer bons livros que levem os leitores de um sentimento a outro. E acredito que esse é meu papel como criadora. Lembrá-los de que sou uma contadora de histórias. Não uma criadora de quizzes, nem um ídolo ou uma heroína… só uma contadora de histórias, autora de livros que espero que encontrem o caminho do coração dos leitores.

Colaboraram Ana Paula, Carlos Silva e Lucas Reis. Texto de Alfredo Neto. Tradução de João Pedroso. Edição e revisão de João Rodrigues.

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Alfredo Neto
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Criador do Sem Spoiler. Leitor. Universitário. Compartilho textos pessoais sobre experiência de leitura.