“Seria tedioso ler só sobre pessoas como eu o tempo inteiro”, diz autor de Território Lovecraft; leia a entrevista

João Pedroso
Sem spoiler

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Atualização (17/08/2020): Entrevista realizada em abril de 2020. “Lovecraft Country” já está disponível na HBO.

Um dos livros mais comentados do momento, “Território Lovecraft”, de Matt Ruff, dá vida à mitologia de H. P. Lovecraft para contar uma história sobre os horrores da segregação racial nos Estados Unidos da década de 1950. A trama acompanha um rapaz recém-chegado da guerra que parte em uma aventura para encontrar seu pai desaparecido. Publicada em uma edição de luxo pela editora Intrínseca com tradução de Thaís Paiva, a obra está sendo bem recebida entre os leitores brasileiros.

Ainda em 2020, o livro ganhará as telas da HBO em uma série produzida por Jordan Peele (“Corra!”) e J.J. Abrams (“Star Wars: A Ascensão Skywalker”). O elenco conta com nomes como Michael Kenneth, Montrose Freeman, Courtney B. Vance e Jonathan Major; e a produção promete apresentar um trabalho que supere os limites do que, hoje, se produz para a TV.

A equipe Sem Spoiler conversou com Matt Ruff, autor de “Território Lovecraft”, sobre inspirações, processo de escrita, expectativas para adaptação e projetos futuros. Durante o bate-papo, foi perguntando ainda sobre a decisão de ele, como um homem branco, escrever uma história antirracista protagonizada por pessoas negras. As respostas você confere na íntegra logo abaixo.

SEM SPOILER: Olá, Matt! Muito obrigado por aceitar nosso convite para essa entrevista. “Território Lovecraft” nos pegou de surpresa e arrebatou toda nossa equipe por aqui. Para a construção deste livro, você usou a mitologia de um dos autores mais importantes para a história do gênero horror e a uniu a um contexto que o próprio Lovecraft apoiaria, a segregação, mas dando voz a personagens negros em uma jornada antirracismo. Por que você optou por essa temática?

MATT RUFF: Eu queria contar uma história tipo “Arquivo X”, em que um elenco recorrente de personagens passa por uma série de aventuras paranormais. Os protagonistas desse tipo de produção, na maioria das vezes, são algum tipo de agente do governo, mas eu queria fazer algo diferente. Tinha lido um livro chamado “Sundown Towns”, de James Loewen, sobre a história das comunidades só de brancos nos Estados Unidos, e foi ali que aprendi sobre o Green Book, um guia de viagem da época da segregação que listava hotéis e restaurantes que atendiam clientes negros. Então, tive a ideia de usar os anos 50 como pano de fundo para minha história, e fazer de meus protagonistas uma família negra dona de uma agência de viagens que publicava uma versão ficcional do Green Book, chamada “Guia de viagem do negro precavido”. E, além de ter de enfrentar horrores paranormais, eles ainda teriam que lidar com o medo mais mundano do racismo e da segregação.

H.P. Lovecraft entrou para a história porque eu precisava criar uma ponte entre esses dois tipos de horror. E Lovecraft foi perfeito: ele é, como você disse, um dos mais importantes escritores de horror de todos os tempos, mas também um supremacista branco. Então meu título, “Território Lovecraft”, se tornou uma referência que aborda tanto o reino sobrenatural de onde os monstros de Lovecraft vêm quanto a supremacia branca dos Estados Unidos, de onde monstros também vêm.

SEM SPOILER: “Território Lovecraft”, assim como o título indica, usa de referências de Lovecraft para a construção de sua mitologia. Como foi o processo de pesquisa e quais obras do autor foram as maiores inspirações para a construção de sua história?

MATT RUFF: Como nerd, eu já era muito familiarizado com Lovecraft, então não houve muita pesquisa, só um pouco de releitura. Decidi não focar minha história nos Mitos (não temos Cthulhu), mas incluí, sim, um número considerável de elementos lovecraftianos. Em “Território Lovecraft”, há um livro muito antigo chamado “O livro dos nomes”, que se parece muito com o “Necronomicon”, um monstro sombra que é minha versão de um shoggoth, e uma seita com feiticeiros da Nova Inglaterra. Também tem muita paranoia e pavor, embora a maior parte disso seja causada mais pelo racismo sempre presente do que por alguma coisa sobrenatural.

A história de Lovecraft que consigo melhor associar com meu livro é “A sombra de Innsmouth”, que retrata um viajante que, de repente, se vê na cidade errada após anoitecer e acaba quase morto. É um dos contos mais racistas de Lovecraft — as pessoas de Innsmouth estão procriando com monstros do mar, um reflexo do medo que Lovecraft tinha da mistura de raças — , mas é também um dos mais assustadores e uma das melhores histórias sobre tentativa de linchamento que já li. E, mesmo que o protagonista de Lovecraft seja branco, poderia facilmente ser a história de um viajante negro que acaba, sem querer, em uma das cidades do pôr do sol.

SEM SPOILER: “Território Lovecraft” surgiu, inicialmente, como ideia para uma série original que não chegou a ir para frente. Recentemente, foi divulgado que uma adaptação produzida por Jordan Peele será lançada ainda neste ano pela HBO. Como foi para você ver este projeto voltar à tona? Qual foi a sua participação no processo de adaptação e quais são suas expectativas?

MATT RUFF: Estou, é claro, bem ansioso pela série da HBO. Eu compartilhei minhas pesquisas para o livro com os produtores, mas não participei diretamente do roteiro ou da filmagem da série. Cheguei a visitar o set de gravação algumas vezes, o que foi uma experiência incrível. O que mais me impressionou foi ver centenas de pessoas trabalhando em um projeto que começou apenas como uma ideia esquisita na minha cabeça.

Ainda não assisti à série. Mas pelo que vi nas visitas ao set fiquei convencido de que vai ficar muito boa.

SEM SPOILER: Em um evento de lançamento de “Território Lovecraft”, você disse que suas ideias para séries originais acabaram assustando alguns produtores da Fox, por exemplo. Por que você acha que o mercado editorial abraça melhor suas histórias do que Hollywood?

MATT RUFF: A resposta curta é: dinheiro. Livros são mais baratos de produzir do que filmes e séries, então é mais fácil convencer editores a se arriscarem em uma ideia “assustadora”. Eu estar na minha editora, a HarperCollins [no Brasil, o autor foi publicado pela Intrínseca], há quase vinte anos também ajuda. Eles me conhecem e confiam na minha capacidade de entregar uma boa história. Eles sempre me deram muito apoio.

SEM SPOILER: Nos agradecimentos de “Território Lovecraft”, você menciona o artigo “Shame”, de Pam Noles, uma autora negra que fala sobre a dificuldade de crescer em meio a produção de uma cultura que não abrange minorias. Sendo um autor branco escrevendo uma história antirracista com protagonismo negro, como você se situa nesse quesito?

MATT RUFF: Sempre gostei de escrever sobre pessoas diferentes de mim: pessoas com diferentes visões de mundo, com outros backgrounds, que enfrentam desafios diferentes dos que enfrentei. Uma das coisas incríveis da ficção é que eu tenho permissão de fazer isso, de tentar ver o mundo com outros olhos. E eu sei que uma pessoa branca escrevendo da perspectiva de uma pessoa negra pode ser controverso — porque normalmente é feito sem profundidade — , mas, para mim, é apenas outro exemplo do que sempre fiz como escritor. Eu ficaria muito entediado de escrever só sobre mim o tempo inteiro, e seria ainda mais tedioso ler só sobre pessoas como eu o tempo inteiro.

SEM SPOILER: Em entrevistas passadas, você mencionou que os personagens de “Território Lovecraft” continuavam na sua cabeça mesmo após ter terminado de escrever a história. Podemos esperar uma continuação para um futuro próximo?

MATT RUFF: Já escrevi 25 mil palavras de uma sequência, acho que ficou bom e vou tentar terminar. O problema é que, se eu realmente continuar, não seria apenas mais um livro, mas pelo menos dois, e possivelmente três. O que é um grande compromisso, tendo em vista como escrevo devagar. Então a resposta para essa pergunta é: talvez!

SEM SPOILER: Adoramos a forma como você criou uma história que dá vida e uma subtrama para cada um dos personagens, nos lembrando muito os antigos seriados episódicos da TV de antigamente. Você poderia comentar um pouco sobre essa decisão?

MATT RUFF: Eu quis dar a cada um dos personagens principais uma chance de protagonizar seu próprio “conto esquisito”. Todo mundo tem um capítulo. “Jekyll em Hyde Park”, em que Ruby é transformada em uma mulher branca, é claramente inspirado em “O médico e o monstro”, de Robert Louis Stevenson. A maioria dos outros foi inspirada não em uma história específica, mas em um tipo de história que eu queria trazer para a brincadeira. Então a irmã de Ruby, Letitia, compra uma casa mal assombrada (em um bairro de brancos, o que deixa tudo ainda pior), Horace é perseguido por um “boneco do diabo” assustador e Hippolyta, que sonha em ser astrônoma, encontra um portal que a permite viajar para outros planetas. Criar essas histórias e tentar fazê-las funcionarem juntas foi muito divertido. O problema é que eu tinha várias outras ideias que poderiam ter sido usadas.

SEM SPOILER: Você pode nos falar sobre seus próximos projetos? Você está trabalhando em algum livro no momento?

MATT RUFF: “88 names”, meu novo livro, é um thriller de ficção científica que acabou de ser lançado aqui. No momento estou divulgando-o (dentro do possível, devido à quarentena), então por enquanto não estou escrevendo nada. Além da sequência de “Território Lovecraft”, eu tenho algumas ideias do que fazer depois, mas ainda não bati o martelo.

SEM SPOILER: Matt, muito obrigado pela disponibilidade. Para finalizar, você pode deixar uma mensagem para seus novos leitores brasileiros?

MATT RUFF: Claro! [Assista abaixo ao recado do autor para os leitores brasileiros.]

*Material patrocinado pela editora Intrínseca. Todo o conteúdo é de responsabilidade da equipe Sem Spoiler.

Texto de João Pedroso. Edição e revisão de João Rodrigues.

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