FALSAS MEMÓRIAS E O EFEITO MANDELA: “Recursão”, de Blake Crouch

Alfredo Neto
Sem spoiler
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6 min readFeb 3, 2020

Em 2012, no laboratório do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês), era véspera de Natal quando Steve Ramirez, estudante de doutorado em neurociência, realizava uma experiência final que logo atrairia a atenção do mundo. Primeiro, ele colocou um rato em uma pequena caixa de metal com calçamento de plástico preto. Após um tempo farejando o local com curiosidade, o bicho logo congelou-se mortalmente ao recordar a experiência de receber um choque nos pés dentro daquela mesma caixa. Sua postura rígida indicava que o trauma deveria ter sido forte, uma lembrança vívida.

O que há de tão impressionante nisso? Bem, para começar, aquele rato nunca havia recebido um choque naquela caixa. Essa era uma reação à falsa memória implantada no cérebro dele por Ramirez e Xi Liu, seu colega. Após dois anos de pesquisas exaustivas, eles chegaram à conclusão de que não só era possível identificar quais são as células cerebrais envolvidas na codificação de uma memória específica, como também era possível manipulá-las a fim de criar uma lembrança de algo que nunca aconteceu.

(Em termos simples e grosseiros para os curiosos, os dois cientistas usaram um rato com células projetadas e sensíveis à luz para explorar um ambiente, caixa A, e deram um leve choque nas patas do rato. O cérebro dele, então, codificou a memória do local. Depois, esse rato foi colocado em um ambiente completamente diferente, caixa B, onde a lembrança anterior foi ativada com um laser, congelando-o instantaneamente com essa falsa memória, o que representou o medo sentido.)

Steve Ramirez (à esquerda) e Xu Liu (à direita), neurocientistas.

Alguns anos antes desse experimento, uma teoria não científica era criada a fim de explicar falsas memórias coletivas: o Efeito Mandela. O nome se deu devido à ocasião em que Fiona Broone, pesquisadora de fenômenos paranormais, percebeu que ela e outras pessoas acreditavam que Nelson Mandela havia morrido na prisão nos anos 1980. (Na verdade, ele saiu da prisão em 1990, foi eleito presidente da África do Sul, em 1994, e morreu apenas em 2013.) Outro exemplo disso é o número de pessoas que alega ter assistido ao filme Shazaam nos anos 1990, estrelado por Sinbad. O comediante precisou vir à público para esclarecer que esse filme nunca existiu.

Broone criou um site, o Mandela Effect, para o compartilhamento de experiências de pessoas (em sua maioria, desconhecidas) que também se lembravam de coisas das quais nunca aconteceram. Na seção “sobre”, ela explica: “o ‘Efeito Mandela’ é o que acontece quando alguém tem uma memória clara sobre algo que nunca aconteceu nesta realidade. Muitos de nós — a maioria completamente desconhecida — se lembram dos mesmos eventos com quase exatamente os mesmos detalhes. Ainda assim, nossas memórias são diferentes daquilo que está em livros de história, artigos de jornal, e por aí vai. Isso não é uma conspiração, e não estamos falando de ‘falsas memórias’. Alguns de nós especulam que realidades paralelas existem, e que — até agora — estamos ‘deslizando’ entre elas sem percebermos.”

Ciência, teoria da conspiração ou universos paralelos, o fato é que tanto a pesquisa dos neurociências do MIT (caso você já não saiba em que acreditar, ela realmente aconteceu) quanto o chamado Efeito Mandela inspiraram o autor Blake Crouch a escrever “Recursão”. O livro chegou às livrarias brasileiras pela editora Intrínseca em janeiro de 2020 com tradução de Sheila Louzada. Em breve, a Netflix promete duas adaptações da obra — um filme, inspirado nos eventos do livro, e uma série, que dará continuidade à história — , ambas produzidas por Shonda Rhimes.

“Recursão”: uma ficção científica com cara de thriller.

“O que temos de mais precioso que nossas lembranças? Elas nos definem, formam a nossa identidade.”

“Recursão” acompanha a jornada de dois personagens ambientados em linhas temporais diferentes, Barry Sutton e Helena Smith. Em 2018, temos o policial Barry Sutton, que trabalha em Nova York e convive com o luto acerca da morte de sua filha e a tristeza por ter se separado de sua esposa. Quando é chamado para intervir num suicídio, ele se depara com uma mulher que sofre de Síndrome da Falsa Memória e afirma ter vivido um casamento com um homem que não a reconhece. “Eu me lembro de discutirmos que tipo de bolo encomendar. Eu me lembro de cada detalhe da nossa casa. Do nosso filho”, diz a personagem em determinado momento.

Ninguém sabe exatamente o que aconteceu, mas, de uma hora para outra, as pessoas têm lembranças de duas vidas. Uma é verdadeira; a outra, não. Elas chegam a recordar meses, anos e até décadas de histórias nos mínimos detalhes. Uma realidade completamente alternativa e improvável, apesar dos inúmeros relatos. Todos estão confusos com isso, desde repórteres até autoridades.

“Porque memória… é tudo. Fisicamente, uma lembrança não passa de uma combinação específica de impulsos nervosos, uma sinfonia de atividade cerebral. Mas, na verdade, é o filtro que se coloca entre nós e a realidade.”

Em 2007, Helena Smith pesquisa a cura do Alzheimer. Seu objetivo é ajudar pessoas como sua mãe, que sofre da doença incurável. Sem financiamento, sua pesquisa anda a passos lentos, incapaz de fazê-la encontrar a solução para o que busca. Até que Marcus Slade, um milionário excêntrico, oferece a ela a chance de sua vida: recursos ilimitados e um laboratório próprio.

Por conta do apoio recebido, a pesquisa de Helena avança rapidamente em pouco tempo. Mas, quanto mais perto de seu objetivo ela chega, mais Slade se torna agressivo e obcecado com os resultados. Ela logo percebe que o estudo saiu de seu controle, tornando-se um propulsor para o caos, capaz até de alterar a realidade como a conhecemos. É só então que o destino dela cruza com o de Barry Sutton, e esse encontro pode mudar a vida de milhões de pessoas.

“E a que vamos nos agarrar, momento após momento, se as lembranças simplesmente forem mutáveis? Nesse caso, o que é real? E se a resposta é nada, o que resta?”

Nessa história de ficção científica com toques de thriller, Blake Crouch apresenta questionamentos sobre nossas memórias, nossa identidade e os limites dos avanços científicos. Com explicações científicas que podem dar um nó na cabeça até do leitor mais atento, o autor constrói uma narrativa eletrizante cada vez mais densa e complexa que antes. Crouch consegue transformar “Recursão” numa matrioska de infinitas peças, surpreendendo e tirando o fôlego do leitor a cada página.

Se você é fã de histórias como “A origem” e “Interestelar”, filmes de Christopher Nolan, ou gostou de “Matéria escura”, obra anterior de Blake Crouch, “Recursão” é o livro ideal para você. Mas não se assuste: mesmo com a enxurrada de explicações e cenas de ação, a narrativa faz sentido em algum grau. Se pode ser confuso para quem lê, para os protagonistas o desafio é ainda maior. De qualquer maneira, esse livro deve te impressionar.

Blake Crouch, autor de “Recursão” e “Matéria Escura”.

Blake Crouch é um escritor best-seller e roteirista que vive nos Estados Unidos, em Colorado. Ele é autor de “Matéria escura”, que será adaptado pela Sony Pictures com roteiro do próprio autor. Com Chad Houdge, Crouch criou a série “Good Behavior”, baseado em sua própria obra, estrelando Michelle Docker. Ele já publicou mais de vinte livros, os quais foram traduzidos para mais de trinta idiomas.

Edição e revisão de João Rodrigues.

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Alfredo Neto
Sem spoiler

Criador do Sem Spoiler. Leitor. Universitário. Compartilho textos pessoais sobre experiência de leitura.