O RITMO DE UMA HISTÓRIA: “Bem-vindos à Rua Maravilha”, de Gabriel Mar

Alfredo Neto
Sem spoiler
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5 min readJan 13, 2020

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O que você estaria disposto a fazer para ir em busca de seu maior sonho? De que forma você lidaria com suas inseguranças e medos quando uma grande oportunidade surgisse? E se, além disso, todos falassem que aquilo não é o certo para você? Em qualquer hipótese que fosse, com quem você teria certeza de que poderia contar para estar ao seu lado?

Igor “sem sobrenome” tem o sonho de ser ator, mas nunca encontrou encorajamento algum por parte de sua família. Segundo sua mãe, não é uma vida promissora nem estável. E, por não querer decepcionar ninguém, decidiu fazer o que todos esperavam dele. Assim não abriria espaço para alguma coisa dar errado, não é mesmo?

Ao fim da faculdade, no entanto, ele sentia que estava vivendo a vida de outra pessoa e sabia que precisava de um ponto de virada para as coisas começarem a fazer sentido. Quando uma grande oportunidade de produzir um musical baseado em seu roteiro original finalmente bate à porta… ele reluta a aceitar.

“Preste atenção, sem sobrenome: você não pode contar histórias se vive fugindo da sua.”

“Igor é quase um anti-Hamilton”, descreve o próprio autor do livro, Gabriel Mar. A comparação é justa: enquanto o personagem do musical criado por Lin-Manuel Miranda é certeiro na apresentação, sabe aonde quer chegar e aceita de cara todas as oportunidades, Igor é o total oposto. Ainda tentando se descobrir e lidando com todas as suas inseguranças, ele acha que todos ao seu redor estão um passo à sua frente. O medo de errar, muitas vezes, impede-o sequer de tentar. A jornada do protagonista começa com um Igor frágil, indeciso e inseguro, porém todas as pedras em seu caminho são essenciais para que ele cresça e aprenda — mas, é claro, não antes de reclamar um bocado.

Essa mudança de vida só acontece porque “Rua Maravilha”, o musical autoral de Igor, chamou a atenção do prestigiado diretor de teatro André Mariani. Determinado a tirar o melhor das pessoas com quem trabalha — e sendo altamente exigente — , André é o céu mas também o inferno na vida de nosso protagonista. Se por um lado ele é capaz de fazer dessa peça um grande sucesso de público e crítica, por outro, ele é responsável por dores de cabeça tremendas em quase todos os integrantes do elenco.

As estrelas que compõem essa produção, aliás, fazem com que obra de Gabriel Mar alcance um novo patamar. É praticamente impossível não se apegar a nenhum deles. Seja Laura Dom, Siena Vieira, Gael Rei, Tim de Abreu, Jackie Mendes, Roberta Vasques, Maria Lira, Miguel Martins ou Eduardo Lopes, algum deles (senão todos) vai te conquistar. São muitos nomes, sabemos, mas não se assustem: cada um deles tem as próprias características, jeitos e formas de pensar marcantes e únicos. Se em algumas vezes se comportam como cães e gatos, em outras eles apoiam e defendem um ao outro até às últimas consequências.

E é essa união que, mesmo em meio a tantas reviravoltas, permitiu a Igor ter o seu musical se tornando realidade. O enredo da peça, resumidamente, trata sobre um casal homoafetivo que se apaixona em meio a uma guerra civil. As músicas são animadas e lembram os mais populares musicais da Broadway — como “Hamilton”, “In the Heights” e “Wicked” — , além de também serem regadas por uma fonte nacional , afinal, para o autor, o Festival Folclórico de Paratins foi uma grande inspiração ao escrevê-las . Sendo assim, os pequenos trechos musicais que são citados ao longo da narrativa possuem embasamentos mais do que suficientes para encantar os leitores.

O grande mérito de “Bem-vindos à Rua Maravilha” são seus personagens, que, apesar das diferenças e adversidades, dão seu melhor a cada momento e constantemente ajudam um ao outro, formando, sem perceberem, uma grande família. Além disso, é um elenco diverso: o protagonista, Igor, é gay, negro e carrega uma herança indígena distante; Siena tem ascendência asiática; Laura é uma mulher trans mãe de família; Tim está se descobrindo dentro do espectro assexual… isso só para citar alguns. Sem algum desses personagens fosse retirado da história, sem dúvidas ela não teria a mesma grandiosidade. A jornada de amadurecimento, amizade e coragem que vemos no livro é única, especial e com grande toques de realidade.

“Eu não queria ser um nome dito pelo mundo inteiro.
Eu só queria que minha vida fosse uma boa história”

Gabriel Mar entende como o ritmo de uma história bem-contada é crucial e, por isso, usa o protagonista para interagir com o leitor o tempo inteiro. Seja quando conhece um bailarino que o ajuda: “não se apegue; a relevância dele é temporária”; ou para explicar suas ações: “não sei você, mas eu gosto de saber como as coisas acontecem”. As tiradas de Igor são por vezes sarcásticas e autodepreciativas e, sem dúvida alguma, fazem o ótimo trabalho de acrescentar ainda mais pitadas de originalidade à escrita do autor.

Gabriel Mar, autor de “Bem-vindos à Rua Maravilha”

Esse livro é uma carta de amor aos musicais e à arte em geral. Com uma história dentro de uma história, o autor dá vazão aos seus próprios sentimentos — àquilo que ele é em sua essência — e faz um belo trabalho em mostrar o poder da arte: sua capacidade de emocionar, mudar vidas e ser meio de resistência. É através da arte também que o ser humano pode se conectar a si mesmo, como vemos acontecer durante a jornada do protagonista.

“Bem-vindos à Rua Maravilha” foi publicado na Amazon em dezembro de 2019 de forma independente e, por enquanto, está disponível apenas na versão digital por R$ 6,99. Gabriel Mar nasceu em Manaus, é fã de musicais e manteve por alguns anos um canal literário no YouTube chamado MaremotoTV. Ele acredita que todos nós podemos criar maravilhas.

Revisão de João Rodrigues.

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Alfredo Neto
Sem spoiler

Criador do Sem Spoiler. Leitor. Universitário. Compartilho textos pessoais sobre experiência de leitura.