OS MONSTROS DA VIDA REAL: “Território Lovecraft”, de Matt Ruff

João Pedroso
Sem spoiler

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Em 1963, período no qual ainda regiam as leis de segregação racial nos Estados Unidos, era publicada a primeira edição do “The Negro Motorist Green Book” (“O livro verde do motorista negro”). Escrito pelo carteiro Victor Hugo Green com a ajuda de alguns colegas de profissão, esse guia compilava dicas valiosas para viajantes não brancos. O livro teve mais de 30 edições e foi um verdadeiro fenômeno entre aqueles que eram discriminados a cada esquina.

A intenção do livro, no entanto, não era a de listar os melhores restaurantes ou os hotéis mais confortáveis, muito pelo contrário: tratava-se de uma questão de sobrevivência. Isso porque as leis de Jim Crow eram severas e desumanas: diziam, por exemplo, que brancos e negros não poderiam, de forma alguma, ocupar os mesmos ambientes. Como se isso já não fosse horrível o suficiente, um outro exemplo é o dos ônibus públicos, os quais tinham bancos específicos para negros — sendo que os brancos podiam sentar onde bem entendessem e, caso houvesse lotação ou caso algum passageiro branco acabasse ficando em pé, eles tinham prioridade sobre o assento.

Para muito além de questões institucionais, a nação norte-americana era (e ainda é) racista por si só. Há relatos da época de famílias inteiras que foram assassinadas simplesmente por terem entrado em um restaurante onde não eram bem-vindas. Assim como há registros de ocasiões em que moradores das chamadas “cidades do pôr do sol” se reuniram para linchar viajantes negros, que, por acaso, se perderam por ali. E, ainda, há relatos de casos em que famílias negras eram expulsas das próprias casas por terem se mudado para uma vizinhança branca. A vida era (é) difícil e cansativa, e a sociedade sequer tentava (tenta) esconder sua pior face no dia a dia.

“Território Lovecraft”, livro de Matt Ruff traduzido por Thaís Paiva, traz um guia semelhante ao de Victor Green. Na história, o livro “Guia de viagem do negro precavido” é publicado pelo dono de uma agência de viagens, o qual é tio de Atticus, nosso protagonista. Seguindo os mesmo moldes da publicação em que foi inspirada, o livro contém uma série de dicas de estabelecimentos que aceitam clientes negros — questão de vida ou morte quando se está na estrada e que, desde as primeiras páginas, ajuda a dar vida a um elemento extremamente importante no decorrer do livro: o medo constante.

Frente a medos mundanos e ao pavor pela própria vida ameaçada diariamente pelo racismo, Atticus descobre, ao voltar da guerra, que seu pai desapareceu após ter sido convocado para uma missão que prometia dar algumas informações sobre a misteriosa origem de sua esposa já falecida. Agora, partindo de algumas pistas, Atticus, seu tio e uma amiga da família partem em direção a Ardham, um povoado perigoso para viajantes negros que parece assustadoramente misterioso e recluso. Esse é o início de uma assombrosa jornada de desventuras baseada na mitologia Lovecraft.

Esse, aliás, é um dos motivos pelos quais a trama se destaca, considerando que H.P. Lovecraft foi um dos maiores autores do século passado nos Estados Unidos. Suas histórias de terror influenciaram e moldaram o gênero, definindo o modo de se contar horror até hoje. Suas ideologias, por outro lado, chegavam a ser ainda mais racistas e eugenistas que as do próprio Lobato. Em um de seus contos mais assustadores, “A sombra de Innsmouth”, por exemplo, um viajante se vê quase linchado por moradores de uma cidade que viraram selvagens após procriarem com criaturas do mar, dinâmica que expõe os sentimentos do autor a respeito da miscigenação entre brancos e negros.

“Território Lovecraft”, de Matt Ruff, faz um excelente trabalho de ressignificação dos maiores horrores de um autor racista. De maneira calculada e inteligente, o autor faz isso ao colocar a mitologia lovecraftiana lado a lado aos medos de uma comunidade que é constantemente perturbada por terrores muito maiores que cthulhus e necromancers. Não só isso: o livro também discute assuntos sérios (e, infelizmente, muito atuais) como a demonização de corpos negros, o racismo no mercado de trabalho e a exploração laboral.

O livro ganhará as telas da HBO ainda este ano em um seriado produzido por Jordan Peele, diretor de “Corra!”, e J.J. Abrams, diretor do episódio IX de “Star Wars”. O elenco conta com nomes como Michael Kenneth, Montrose Freeman, Courtney B. Vance e Jonathan Major; e a produção promete apresentar um trabalho que supere os limites do que, hoje, se produz para a TV. Sem dúvidas, “Território Lovecraft” é uma leitura marcante que não deixa espaços para dúvidas, afinal, como diz Angela Davis, em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista.

Clique aqui e leia uma entrevista com o autor de “Território Lovecraft”, Matt Ruff.

*Material patrocinado pela editora Intrínseca. Todo o conteúdo é de responsabilidade da equipe Sem Spoiler.

Texto de João Pedroso. Edição e revisão de João Rodrigues.

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