O mito da economia colaborativa e o fim do capitalismo

Ricardo Couto
Semantics Box
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5 min readDec 5, 2015

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Atualmente tem pipocado na mídia, em geral, matérias sobre a economia colaborativa. Pra usar um exemplo atual, uma matéria da Folha: Capitalismo dará lugar à economia colaborativa, prevê autor de best-seller.

Me pergunto: como pode alguém ser tão inocente assim para desconstruir um sistema econômico inteiro a partir de um princípio que é, basicamente, fruto desse sistema econômico?

Vejamos.. pegando o exemplo de automóveis e transporte. Se passarmos a usar carros compartilhados ou alugados (táxi, Uber, futuramente o Google Car sem motorista), esse carro será de uma empresa. Essa empresa deterá o bem e o oferecerá como serviço. No caso do Uber, o motorista é o dono do carro então o bem é propriedade do sujeito antes de tudo. Não há compartilhamento do bem, há um serviço oferecido que depende da propriedade privada.

Sem carro próprio, sem Uber.
Sem casa/apartamento próprio, sem AirBnb.
Sem propriedade privada, sem economia colaborativa.

Concordaria se o texto falasse em redução no consumo ou, melhor dizendo, na redução do consumismo. Isso é realmente um conceito que está mudando aos poucos. Sou totalmente a favor disso, inclusive. Mas, no caso, a propriedade privada tem que ser de alguém. As pessoas podem ter um estilo de vida que priorize menos propriedades mas os bens precisam ser de alguém, é difícil pensar num carro que seja de várias pessoas. Pode até existir uma comunidade "dona" do carro. Seria um caminho muito interessante. A logística seria complicada mas o conceito é ótimo. Mas isso, definitivamente, não é economia colaborativa. O nome disse é mais antigo e desvalorizado atualmente: comunidade.

Voltando ao assunto.. segundo o autor (tanto do livro quanto da matéria), seriam empresas as donas das propriedades privadas. Empresas. Ou seja, a diferença é que sairíamos de uma propriedade privada individual para uma propriedade privada corporativa ou empresarial. Esses proprietários dos veículos compartilhados iriam lucrar absurdamente com isso. Seria um monopólio ou, quem sabe, um oligopólio de veículos. Seria o ápice do capitalismo na sua pior forma.

Uma definição de capitalismo segundo o Google (não precisamos ir a fundo nisso, certo?):

Capitalismo: sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou indivíduos que contratam mão de obra em troca de salário.

Bem, a propriedade privada e o capital estaria nas mãos de algumas poucas empresas que ofereceriam serviços. Só que, ao invés de contratar mão de obra para oferecer esse serviço, iriam fazê-lo através da retribuição às pessoas em termos percentuais a partir da produção desta. É assim que funciona o Uber. Algumas empresas sequer teriam mão de obra para os serviços, como o carro do Google sem motorista. Isso é o "Capitalismo 2.0: a evolução"? Detém-se os meios de produção e a mão de obra sequer é fixa pois é paga apenas se e quando produzir?

Na matéria ainda se fala sobre o custo marginal chegar próximo de zero. Oras, lei básica de gestão de produção: se a demanda diminui (redução de consumo), a produção em larga escala também. Básico de economia: quanto mais próximo do unitário é a produção, mais cara ela fica.

Fazendo um exercício simples de economia: supondo que, em 2016, metade das pessoas optem por usar táxi e Uber ao invés de comprar automóveis. As frotas que estão nos pátios vão cair de preço pra conseguir vender. Assim que esgotarem essas frotas, as montadoras vão diminuir a produção. Produzindo menos, são menos unidades, menos empregos, menos carros. E produzindo pouco, seu custo de produção será maior. Resultado: carros mais caros e empresas comprando esses carros para oferecê-los como serviço.

Podemos falar em impressoras 3D (um dos meus sonhos de consumo é ter uma, ops, não pode falar consumo que é feio) e o sujeito prosumidor (ao mesmo tempo, cria e consome). Mas daí a uma impressora 3D "imprimir" carros há uma grande distância. Misturar situações incompatíveis como forma de argumentação tem nome: enganação.

Charging Bull, símbolo da Wall Street e considerado um dos símbolos do capitalismo moderno.

Isso é o capitalismo na sua pior forma. Empresas detendo toda a propriedade e oferecendo às pessoas serviços mais caros do que se elas todas tivessem seus próprios carros.

Melhor seria não precisarmos de carros, seria termos transporte de qualidade — não como o metrô de São Paulo, que demora 20 anos pra abrir uma nova estação e nem pode ser alvo de investigação porque as contas estão sob sigilo (mas isso é outro assunto absurdo). Melhor mesmo seria se usássemos carros apenas para situações que realmente fizessem diferença, não para dar a algumas poucas empresas o domínio do direito de ir e vir cobrando pedágio.

Brastemp e "meu" aparelho de filtro de água

Um bom exemplo, real, que acontece comigo. A Brastemp oferece alguns filtros de água por assinatura. Eles oferecem um serviço que incluem o aparelho. Eles não vendem o aparelho, mesmo se você quiser comprar (eu pedi pra comprar e não me vendem). Enfim, fiz a assinatura porque ganhava dois meses grátis e o meu filtro tinha quebrado. Quando tive que pagar, resolvi fazer as contas. Pelo valor que eu gastava por ano com a Brastemp, eu compraria 2 filtros com a mesma qualidade. Ou seja, 6 meses de assinatura e o valor era o mesmo que eu parcelar um novinho nas Casas Bahia. Meus cálculos incluiram depreciação e manutenção. Meu aparelho anterior, de qualidade inferior, durou mais de 3 anos e custou o equivalente a 3 ou 4 mensalidades da Brastemp. Imagino que este devesse durar mais do que isso ou a mesma coisa.

Mas fica bonito, atual, hype e tudo mais, dizer que eu não tenho propriedade sobre o bem. Que, ao invés de um produto (coisa capitalista), eu adquiri um serviço (coisa capitalista também, não?). Mas a Brastemp lucrou muito com minha assinatura. Lucrou bem mais do que lucraria se eu comprasse o aparelho. Deve ser por isso que não permitem a venda.

Essa é a grande mentira da economia colaborativa: o fim do capitalismo. Economia colaborativa depende da propriedade e quem detiver a propriedade será o novo senhor feudal.

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Ricardo Couto
Semantics Box

Head of Product Design. Obcecado por criar experiências memoráveis em produtos e serviços.