Copa de 78: um título da Ditadura Argentina?

Matheus Jacomin de Moura
Sem Clubismo F.C.
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5 min readJun 1, 2018

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“Futebol e política não se discutem”. Nesse especial de textos sobre a Copa, nós provamos exatamente o contrário: além de se discutirem, uma está diretamente relacionada com a outra. Eu mesmo escrevi sobre a relação entre o início da ditadura militar brasileira e a seleção nas Copas de 66 e 70 e o excelente Yuri Laurindo falou mais da Copa do Mundo de 1934, sediada pela Itália de Mussolini. Com tantos acontecimentos já citados, seria muito ignorante de nossa parte deixar de lembrar um que aconteceu bem ao nosso lado: a Copa de 1978, realizada na Argentina.

A Argentina foi escolhida sede da Copa do Mundo no 35° congresso da FIFA, realizado em 1966 em Londres. Mesmo com 12 anos para se preparar para o Mundial, o que se viu foram estádios ficando prontos de última hora e gramados de péssima qualidade. Ao todo, 5 cidades e 6 estádios foram palco das partidas do mais importante torneio do futebol mundial.

Além do Monumental (foto), os Estádios José Amalfitani, Córdoba, José María Minella, Dr. Lisandro de la Torre e Ciudad de Mendoza também foram sedes (Wikipedia)

O órgão estatal responsável pela organização era o Ente Autarquico Monarquico (EAM), presidido por Omar Carlos Actis — com fama de incorruptível e defensor de gastos mínimos para o evento. O secretário da Fazenda Juan Alemann também acreditava fielmente nas ideias de austeridade.

No entanto, enquanto Alemann conseguiu escapar de uma tentativa de homicídio, Actis não teve a mesma sorte e acabou sendo morto (não há provas do envolvimento do regime em sua morte). Para o seu lugar, foi escolhido o almirante Carlos Alberto Lacoste, favorável a fortes investimentos com o mundial.

Em um país já abalado pela crise financeira, era fato que as despesas impactariam ainda mais a economia argentina: os gastos com a Copa, previstos em 70 milhões de dólares, ultrapassaram os 700 milhões de reais. Além disso, a estagnação industrial e os casos de corrupção fizeram a dívida externa saltar de 8 para 45 bilhões de dólares ao final do período ditatorial.

Boicotes

Antes do início da Copa, surgiu na França um movimento contra a Copa na Argentina — a nação da igualdade, fraternidade e liberdade recebeu cerca de 15 mil latino-americanos exilados politicamente. O COBA (Comitê de Boicote a Copa da Argentina) era composto por militantes, principalmente franceses, que por defenderem os direitos humanos eram contra a realização de um evento esportivo tão grandioso em uma terra em que oposições não eram permitidas.

Apesar de causar certa repercussão na mídia e fazer as confederações francesas e holandesas cogitarem o boicote, na prática a população apaixonada por futebol ainda era a favor da participação, que de fato ocorreu.

“Contra a ditadura na Argentina, Boicote a Copa do Mundo de 1978. Sem futebol entre os campos de concentração”

Entretanto, se nenhuma seleção aderiu ao COBA, houveram jogadores que se aliaram as causas pregadas pelo movimento. O craque alemão Paul Breitner, campeão da Eurocopa 1972 e da Copa do Mundo 1974, e o holandês van Hanegem, integrante do Carrossel Holandês, participaram de manifestações em Paris a favor do boicote.

Ao contrário do que se pensa, a não participação de Johan Cruyff no Mundial não se deve a causas humanitárias. El Flaco sofreu uma tentativa de sequestro na Espanha em 1978 e abalado, preferiu não viajar à América do Sul.

Seleção Argentina de 1978: um título do país ou do regime?

Dentro das quatro linhas, a Argentina liderada por Kempes e Luque foi campeã em uma trajetória recheada de polêmicas. A seleção da casa jogou toda a Primeira Fase na capital Buenos Aires e a Segunda, somente em Rosario. Para ter uma noção, enquanto a Albiceleste jogou sete partidas em apenas duas cidades, a seleção brasileira fez os mesmos sete jogos e só não jogou em Córdoba.

No duelo contra os Bleus, surgiu a primeira das muitas polêmicas daquele Mundial. Os franceses, derrotados por 2 a 1, reclamaram do pênalti assinalado que resultou no primeiro gol argentino no confronto. Sem mais polêmicas durante toda a fase inicial, a Argentina conseguiu se classificar em segundo lugar no forte grupo de Itália, França e Hungria.

Cartaz promocional (Pinterest)

Posteriormente, um finalista sairia da chave de Brasil, Argentina, Polônia e Peru. Após vitória brasileira (3 a 0) diante dos peruanos e dos anfitriões sobre os poloneses (2 a 0), era a hora do maior clássico do futebol: Brasil e Argentina fizeram no Gigante de Arroyito lotado uma verdadeira batalha campal. Digno de Libertadores, o confronto terminou com 51 faltas e 0 a 0 no placar.

Dos 4 cartões amarelos aplicados, 3 foram para o Brasil (Wikipedia)

A definição da vaga ficou para a última rodada, quando ambos os rivais disputariam seus respectivos jogos no mesmo horário. Porém, naquele 21 de junho, estranhamente a Canarinho jogou primeiro e derrotou os poloneses por 3 a 1. Sabendo de quanto precisaria vencer, os argentinos golearam o Peru por 6 a 0 e se classificaram para a final.

As conspirações aumentaram: como a excelente equipe peruana, que contava com o craque Cubillas e foi líder sua chave na primeira fase, sofreria uma goleada tão elástica? Algumas especulações dizem que o general Jorge Rafael Videla, ditador argentino na época, teria visitado o vestiário dos visitantes e feito ameaças aos jogadores.

Outras correntes propõe que Videla concederia uma grande quantidade de trigo ao Peru caso a seleção fosse goleada. Quiroga, goleiro argentino naturalizado peruano, também foi acusado de ter recebido ameaças e suborno. Em declaração, o arqueiro se defendeu afirmando “estar certo de que alguém ganhou” dinheiro com a goleada sofrida.

O título hermano veio no Monumental de Núñez — localizado a menos de 1km da Escola Superior de Mecânica da Armada. A ESMA, como é conhecida, era o principal e mais temido centro de tortura do país. Nela, passaram por volta de 5 mil opositores políticos. A maioria não resistiu. Era possível escutar do prédio os gritos da torcida nos dias de jogos de futebol.

Na final, torturadores e torturados assistiram juntos pela televisão a partida contra Holanda. Alguns dos presos torciam contra a seleção, enquanto outros se entregavam a grande paixão nacional.

Após a conquista de Passarella e seus companheiros, os presos foram levados às ruas de Buenos Aires, que estavam em festa, numa clara mensagem de que não importava o quanto eles gritassem, o povo estava em êxtase pelo Mundial e não escutaria eles.

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Matheus Jacomin de Moura
Sem Clubismo F.C.

22. Jornalista e completamente apaixonado por Futebol Insta: matheus_jacomin