A crença de Jesus na reencarnação

André Silva
EspíritodaLetra
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31 min readMay 31, 2022
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A reencarnação é uma ideia presente em muitas culturas, de tempos passados até os dias atuais e muitas foram as personalidades de importância histórica que defenderam a temática ou cogitaram esta possibilidade, como Platão, Sócrates, Pitágoras, Orígenes, um dos pais da igreja, os chamados cristãos primitivos (que são identificados como os cristãos surgidos a partir do apostolado após a ressurreição de Jesus até o Concilio de Nicéia no ano 325), ou Santo Agostinho que se manifestou em dúvidas quanto à questão em seu livro Confissões. Na bíblia, a reencarnação humana é tema que também está presente e pode ser reconhecido, seja de forma indireta, implícita, ou mesmo de forma mais direta em outros termos, ao menos no Novo Testamento. É preciso antes de mais nada esclarecer que não se trata da “metempsicose”, ideia ao qual os seres humanos retornariam em corpos de animais. A reencarnação aqui refere-se única e exclusivamente ao retorno de seres humanos em novos corpos humanos. O próprio Pitágoras e Platão, embora utilizassem o termo “metempsicose” parecem o fazer pela ausência de outro mais adequado referindo-se, no entanto, à reencarnação humana. Orígenes opunha-se radicalmente à ideia da metempsicose, bem como Tomás de Aquino, que chegou a escrever uma diferenciação entre a alma dos animais racionais e a dos animais brutos (irracionais). E em um contexto mais contemporâneo, o Espiritismo também se opõe à metempsicose defendendo que a alma não retrograda, mas somente evolui, ocorrendo, de maneira geral (e não absoluta), a reencarnação entre um mesmo reino. Em outros termos, a metempsicose que supõe que o ser humano, que é um ser complexo, possa ressurgir no corpo simplório de animal atentaria contra a evolução, uma vez que o reduziria a uma condição de ausência de raciocínio, imprescindível para o conhecimento da realidade e de si mesmo. Isto é, estar desprovido da capacidade de raciocinar o faria significativamente menos hábil a se melhorar e aprender conscientizando-se sobre a própria conduta, já que só o raciocínio já faz toda diferença para este processo.

Isto posto, cabe frisar que Jesus era um judeu e para a cultura judaica a ideia de um retorno compatível com a reencarnação não era um tema desconhecido. Na cabala, o misticismo judaico, o termo utilizado hoje “guilgul” corresponde a um conceito mais amplo ao qual a reencarnação é totalmente compatível, contudo, o termo não é mencionado explicitamente nas obras clássicas tradicionais como a Bíblia Hebraica (a Torah), apesar de existir na tradição oral e do conceito estar presente de outra forma, mais implícita, tal como se verá adiante. Embora a Torah, a versão judaica da qual a bíblia se deriva, seja um livro de ensinamentos focados no presente, no cuidado da vida agora, o retorno à vida, incluindo a ideia da “reencarnação” humana, era tema corriqueiro entre os judeus ainda que não utilizassem especificamente esta palavra. Isso fica claro em algumas passagens, como a emblemática conversa de Jesus com seus discípulos acerca de Elias ser João Batista ou o seu diálogo na calada da noite com Nicodemos, além de outras mais indiretas, simbólicas, como próprio do judeu. A tese que se defende neste artigo é a de que, ou Jesus acreditava no fenômeno da reencarnação, ou ao menos alguns dos escritores dos Evangelhos acreditavam e o imputaram isso. E o que se conclui é que esta interpretação não pode ser descartada.

“Quem dizeis que eu sou?”

Existe no contexto, detalhes implícitos sobre o assunto, mas que são passíveis de dedução, como o trecho transcrito abaixo, da conversa de Jesus com os seus discípulos, em três dos quatro principais evangelhos:

E, chegando Jesus às partes de Cesareia de Filipe, interrogou os seus discípulos dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem? E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? (Mateus 16:13–15)

E saiu Jesus, e os seus discípulos, para as aldeias de Cesareia de Filipe; e no caminho perguntou aos seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens que eu sou? E eles responderam: João o Batista; e outros: Elias; mas outros: Um dos profetas. E ele lhes disse: Mas vós, quem dizeis que eu sou? (…) (Marcos 8:27–29)

E aconteceu que, estando ele só, orando, estavam com ele os discípulos; e perguntou-lhes, dizendo: Quem diz a multidão que eu sou? E, respondendo eles, disseram: João o Batista; outros, Elias, e outros que um dos antigos profetas ressuscitou. E disse-lhes: E vós, quem dizeis que eu sou? (…) (Lucas 9.18–20)

Há muito sobre estas perguntas e respostas. Primeiro, observa-se que a pergunta se refere ao “retorno de almas” e a resposta dada pelos discípulos torna notável que entre os populares existia essa especulação quanto a certas figuras serem pessoas que já viveram antes. O verso de Lucas chega a referir-se especificamente à “ressurreição”. Também vale ressaltar que além da ideia de que as almas podiam retornar de alguma forma, está aqui implícita a concepção da continuidade da vida após a morte.

Nos trechos, Jesus primeiramente pergunta aos seus discípulos quem dizem o povo ser ele. Note que a pergunta trata de identidade própria (“Quem diz a multidão que eu sou?”, ou “Quem dizem os homens que eu sou?”, ou ainda “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?”). E esta simples questão por si só já é curiosa, sobretudo, considerando a resposta.

Antes, porém, em Mateus, é importante considerar que esse escritor se destaca por um esforço de tentar convencer seu leitor de que Jesus é o Messias, o que se percebe pela preocupação em apontar uma correspondência entre profecias concernentes ao messias e os acontecimentos pertinentes a Jesus, por exemplo ao descrever uma genealogia no início deste evangelho, por passagens que denotam uma vitória messiânica, como a tentação no deserto, ou pelo uso da expressão singular “Filho do Homem”. A respectiva expressão denota no judaísmo um “ser humano”, ou quando no plural, humanidade. No âmbito do Cristianismo tem-se esta associação à condição messiânica. Veja o que a Wikipédia registra: “A expressão filho do homem (ben Adam, בן אדם), literalmente filho de Adão, é utilizada comumente no Judaísmo e no idioma hebraico em geral para denotar um ser humano, uma pessoa; o plural (bnei Adam, בני אדם) é utilizado para humanidade. No Cristianismo é reconhecido como Jesus, pelas referências nas Escrituras ao Messias.” Ou seja, no contexto específico da passagem principal, a expressão “Filho do Homem” também poderia ser considerada uma referência para Messias, como se Jesus estivesse atribuindo a messianidade a ele mesmo. Ou, para além disso, como pode-se argumentar, que ele estivesse utilizando a expressão direcionada a uma terceira pessoa desconhecida que seria então esse messias.

Ainda assim, porém, a pergunta parece estar se referindo a um “retorno de almas”. Sobretudo, porque também ao final do trecho, os três Evangelhos têm em comum a questão de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?”

Portanto, ou o povo cogitava sobre uma alma que retornou na carne de Jesus, ou o povo cogitava sobre que alma era esse “Filho do homem” (o messias esperado) o que não faria muito sentido, ou o próprio Jesus estava cogitando isso.

É preciso saber também que não havia entre o povo judeu essa ideia de um Jesus Messias, o que se nota já pelo fato de que na resposta dos discípulos à pergunta em nenhuma das suposições cogitavam as pessoas ser Jesus esse Messias, como fica claro nos versos: E eles responderam: João o Batista; e outros: Elias; mas outros: Um dos profetas.

Cogitavam ser aquele que prepararia o caminho a esse Messias, conforme diziam as profecias. Ou seja, cogitavam ser Jesus um profeta. E profetas para os judeus também eram vistos como “enviados de Deus”.

Deste modo, tendo em vista a ausência da expressão “Filho do Homem” nos trechos correspondentes nos dois outros Evangelhos, de Marcos e Lucas, a alteração da pergunta com o uso dessa expressão foi muito provavelmente um acréscimo pessoal do escritor que, como já dito, intencionava provar um Jesus messiânico.

Quanto ao significado puro da expressão “Filho do homem”, se ela designa no judaísmo um “ser humano”, a resposta dos discípulos caracteriza bem o sentido da pergunta: efetivamente o que se quer saber NÃO é se Elias ou João Batista eram seres humanos, pois, sabe-se: eram. Logo, levando em conta as versões e todas as observações acima, a pergunta parece se referir a Jesus mesmo e se volta à condição de retorno de alma, ainda que “Filho do homem” se tratasse de uma expressão adotada pelo escritor e não necessariamente utilizada por Jesus.

As duas noções mais consistentes de retorno

Superado este detalhe, indo finalmente à análise propriamente dita, a resposta dada pelos discípulos no trecho que interessa aponta que havia entre a população acepções distintas sobre “voltar à vida” que se confundiam. É possível deduzir pelo menos duas noções mais consistentes emergentes da resposta. A da ressurreição na carne saltando a infância, quando o homem de alguma forma reaparece materializando-se já como adulto sob outra aparência, e a da reencarnação que passa necessariamente pela via do nascimento e cumpre o ciclo de vida natural humano da infância à maturidade.

A primeira nota-se pela suposição de alguns de que Jesus seria João Batista. Para Jesus ser João Batista seria preciso obviamente não terem passado por qualquer convivência. A partir desta premissa, seria necessário que a alma de João Batista depois de morto voltasse com a aparência de Jesus e não passasse, portanto, pela fase da infância e juventude. Evidentemente sobre quem assim cogitava pode-se supor que desconhecia a condição de parentesco deles como primos e o contato entre ambos em vida, tanto na infância, quanto na idade adulta.

E desconhecer esse parentesco e contato não era uma situação impossível para algumas pessoas. Tanto que o próprio Herodes, cogitando esta ideia, demonstrou não ter conhecimento da informação na seguinte passagem:

NAQUELE tempo ouviu Herodes, o tetrarca, a fama de Jesus, E disse aos seus criados: Este é João o Batista; ressuscitou dos mortos, e por isso estas maravilhas operam nele. (Mateus 14:1).

A segunda noção vem pela suposição de Jesus ser Elias, Jeremias ou um dos profetas. Isto porque supor que Jesus seja um destes antigos pode considerar que um deles retornou à vida na carne sob outra filiação ou parentesco, haja vista que a mãe e irmãos de Jesus eram certamente conhecidos dos discípulos, e provavelmente também de parte do público, como fica claro por exemplo nesta passagem:

46 E, falando ele ainda à multidão, eis que estavam fora sua mãe e seus irmãos, pretendendo falar-lhe. 47 E disse-lhe alguém: Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, que querem falar-te. 48 Ele, porém, respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? (Mateus 12:46–48).

Havia mesmo um de seus parentes que era contado entre os discípulos, muito embora essa informação provavelmente fosse mais clara para os mais próximos e não tão óbvia para a multidão.

Deste modo, o que está claro é que esses boatos estavam tão populares que chegaram ao próprio ouvido de Jesus a ponto de motivar sua questão. Isso, como já dito, demonstra que o povo judeu cogitava quem seria a alma daquele mestre que realizava certos prodígios e sinais, corroborando ainda à sugestão da existência de entendimentos conflitantes sobre ressurreição entre o povo e apontando talvez um desejo da parte de Jesus em compartilhar seu ponto de vista sobre esse “retorno de almas” com aqueles que lhe ouviam. Refletia, tudo isso, essa expectativa popular quanto a ressurreição de almas (no plural), sendo distinto da maioria o grupo que não aceitava esta possibilidade: os saduceus. Jesus era visto como um grande mestre e profeta que inspirava talvez mais curiosidade no grande público do que propriamente uma convicção sobre quem ele seria. Como dito, não era visto como o Messias entre a maior parte dos judeus, nem naquele tempo e ainda nos dias de hoje. Pelo contrário. Ele era questionado sobre alguns feitos que realizava e ensinamentos que transmitia que muitas vezes se chocavam contra a tradição, o que pode ser lido em diversos trechos do Novo Testamento. Sabe-se, inclusive, que muitos foram os candidatos a “Messias”, mesmo antes do nascimento do filho de Maria e José.

Convicção em um Jesus Messias?

Sugestão diferente e direta sobre isso só partiu de Pedro nesta mesma ocasião da conversa de Jesus com os discípulos. Na sequência, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo”, sendo que Cristo significa Messias.

Entretanto, mesmo aqui não se pode dizer que esta era uma afirmativa de convicção e é possível compreender por que discípulos como Pedro pareciam pensar diferente da multidão. Pedro e André eram irmãos, anteriormente discípulos de João Batista, assim como os irmãos Tiago e João. Eles acreditavam que Jesus era o Messias não por convicção, mas porque João Batista a ambos falava isso de maneira quase explícita.

Essa falta de convicção fica clara no exemplo do próprio Pedro. Tempos após afirmar Jesus ser o Messias na passagem supracitada, no momento de apreensão o negou três vezes, deixando transparecer que a situação da captura de seu novo Mestre provocava, em seu íntimo, um temor decorrente da possibilidade de estar errado, haja vista que no imaginário popular judaico do qual Pedro compartilhava, o que se esperava de um Messias era de certa forma um homem político, com a capacidade de subjugar pela força o povo inimigo e que cumprisse com certos “requisitos proféticos”, o que não condizia com a realidade, postura, intenção e lições de Jesus, carregadas por uma proposta de paz, de não agressão, de perdão e de revolução pelo amor. Ou seja, Pedro diante o questionamento de Jesus repete o que lhe foi transmitido por João Batista, seu primeiro mestre, dando aquela resposta mais por conhecimento do que por uma convicção íntima racionalmente construída e consolidada no coração, que é o que poderia se chamar de fé.

Não por acaso, Jesus respondeu a Pedro: “Bem aventurado és tú, Simão filho de Jonas, pois não foi nem a carne, nem o sangue que te disseram, mas meu Pai que está nos céus.” (Mateus 16:17). Isto porque Jesus sabia que a sugestão de Pedro não poderia vir das observações desses “requisitos proféticos”, haja vista que ele não os cumpria, tão pouco correspondia ao que era esperado pela sociedade judaica, mas vinha muito mais pelas falas de João Batista para o apóstolo, o que não era algo nada insignificante, dado que as pessoas tomavam João Batista por profeta, e “profeta” significa a “boca de Deus”.

E quem era João Batista?

A despeito da profecia que dizia que antes do Messias vir, viria Elias, o povo cogitava o que lhes aparentava mais provável. Para uns, Jesus era Elias. Para outros, Jesus era João Batista. No entanto para alguns outros, entre eles para o próprio Jesus, João Batista era Elias, como Jesus diz diretamente à multidão local, desta vez, antes mesmo de João morrer, quando ainda estava no cárcere e a fama de Jesus já corria aquela região por onde seu primo costumava pregar.

E, partindo eles, começou Jesus a dizer às multidões, a respeito de João: Que fostes ver no deserto? Uma cana agitada pelo vento? 8 Sim, que fostes ver? Um homem ricamente vestido? Os que trajam ricamente estão nas casas dos reis. 9 Mas, então que fostes ver? Um profeta? Sim, vos digo eu, e muito mais do que profeta; 10 Porque é este de quem está escrito: Eis que diante da tua face envio o meu anjo, que preparará diante de ti o teu caminho. 11 Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele. 12 E, desde os dias de João o Batista até agora, se faz violência ao reino dos céus, e pela força se apoderam dele. 13 Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João. 14 E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. 15 Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. (Mateus 11:7).

Se para judeus, profetas são vistos como “vindos de Deus” e para Jesus, João Batista é muito mais do que um profeta, mas o próprio Elias esperado, ou o grande “enviado” que iria preparar o caminho ao Messias que havia de vir, quando Jesus diz a Pedro que “não foi nem a carne, nem o sangue que te disseram, mas meu Pai que está nos céus” ele está dizendo que não foi a tradição, mas “a boca” de Deus, através do seu enviado porta-voz reencarnado como João Batista que disse que Jesus era o Messias a Pedro, um privilegiado por estar, por esta perspectiva, entre o que seriam dois “enviados de Deus”. A “carne e o sangue” referem-se ao conhecimento da tradição, essa tradição que se utiliza das genealogias, da descendência, de sacrifícios e de outras questões para julgar quem é ou não é o Messias. Ao passo em que a fala de João Batista, que era visto como profeta pelas multidões e como Elias por Jesus, era baseada na sua intuição e fé a partir da sua percepção espiritual particular.

É notável no trecho, deste modo, que ao mesmo tempo em que João Batista expressara publicamente sua percepção espiritual sobre Jesus, Jesus por sua vez usava disso para correlacionar os pontos com perspicácia e tornar explícita uma possibilidade espiritual. Ora, se o povo considerava João Batista profeta, é, pois, este mesmo profeta quem diz ser Jesus o “cordeiro de Deus”. Fica subentendido nas falas que Jesus sabia que não era o Messias esperado pelos judeus, mas sim um messias espiritual para aqueles que tivessem fé, e talvez por isso chegava a os advertir a não contar a ninguém essa ideia (Mateus 16:20), posto que isto criaria problemas mesmo para os discípulos.

Em seu discurso sobre João Batista ser o profeta Elias, Jesus evidencia seu entendimento correspondente ao fenômeno da reencarnação, uma vez que usa referindo-se a João Batista a expressão “entre os que de mulher têm nascido”, enfatizando o seu nascimento por vias naturais, ao passo em que no mesmo discurso afirma ser João Batista o próprio Elias que havia de vir. Com o perdão da redundância, não há modo de João Batista ser o espírito de Elias sem este último ter reencarnado sob o nome de João Batista, filho de Zacarias e Isabel.

Elias já veio… E o messias? Virá?

É notável, a esta altura, que o texto transparece também uma aceitação popular e cultural dos fenômenos considerados ainda hoje por muitas vertentes como “sobrenaturais”. Esses fenômenos espirituais estão muito presentes na própria narrativa bíblica, por exemplo, pelo relato recorrente de contato com anjos, ou por aspectos extra-sensoriais do ser. Quanto a isso, existem por exemplo diferenças entre “voltar à vida” e as “aparições”. São frequentes no texto o relato de contato com espíritos impuros ou espíritos puros (anjos, que no contexto judaico não tem a caracterização renascentista popularizada, e, sim, tem mesmo a forma humana). Considerando apenas o texto e o contexto, observa-se que há o contato pontual com tais entidades, boas ou ruins, que aparecem e se vão. Isto se difere do que parte do povo entende por ressurreição que é literalmente de algum modo voltar a viver na carne entre todos.

Sobre isso, tem-se o exemplo da sequência da conversa de Jesus com seus discípulos, depois da morte de João Batista (provavelmente tempos depois), quando decorre o episódio da transfiguração, como se vê transcrito na sequência. Este trecho traz novamente um ponto de observação a favor da tese aqui proposta. Os trechos aparecem nos Evangelhos de Matheus e Marcos.

Mateus 17:1 SEIS dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, seu irmão, e os conduziu em particular a um alto monte, 2 E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz. 3 E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. 4 E Pedro, respondendo, disse a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, façamos aqui três tabernáculos, um para ti, um para Moisés, e um para Elias. 5 E, estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem luminosa os cobriu. E da nuvem saiu uma voz que dizia: Este é o meu amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o. 6 E os discípulos, ouvindo isto, caíram sobre os seus rostos, e tiveram grande medo. 7 E, aproximando-se Jesus, tocou-lhes, e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo. 8 E, erguendo eles os olhos, ninguém viram senão unicamente a Jesus. 9 E, descendo eles do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: A ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos.

Mateus 17:10 E os seus discípulos o interrogaram, dizendo: Por que dizem então os escribas que é mister que Elias venha primeiro? 11 E Jesus, respondendo, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas; 12 Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem. 13 Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista.

Marcos 9:9 E, descendo eles do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, até que o Filho do homem ressuscitasse dentre os mortos. 10 E eles retiveram o caso entre si, perguntando uns aos outros que seria aquilo, ressuscitar dentre os mortos. 11 E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas que é necessário que Elias venha primeiro? 12 E, respondendo ele, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e todas as coisas restaurará; e, como está escrito do Filho do homem, que ele deva padecer muito e ser aviltado. 13 Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe tudo o que quiseram, como dele está escrito.

Relata-se que no alto do monte os discípulos testemunham um encontro de Jesus com Moisés e Elias. Como souberam ser Moisés e Elias não é aspecto incluso no relato, e isso importa porque a aparência de ambos não podia ser conhecida, entretanto não significa que não existiram elementos na ocasião para uma possível dedução desses discípulos, por exemplo, um possível uso do nome na situação. Por outro lado, pode ser uma construção do Escritor. De toda forma, e ainda que seja construção intencional do Escritor, trata-se de uma “aparição”. Após a nuvem desaparecer os discípulos nada mais veem se não o próprio Jesus. É razoável que os discípulos compreendessem a aparição como o profetizado “retorno de Elias”. E é isso o que pode indicar o fato de Pedro oferecer construir um tabernáculo aos três, a Jesus, Elias e Moisés, logo à aparição. O tabernáculo tinha um significado relativo à habitação de Deus, razão provável pela qual, no texto, surge uma nuvem de onde uma voz, que se subentende ser expressão de Deus, manifesta o reconhecimento a Jesus como seu Filho. Tal passagem também remete à Festa do Tabernáculo, festa em gratidão a Deus por suprimir os israelitas na vitória no deserto durante o Êxodo.

Ou seja, toda essa situação textual parece apresentar uma confirmação messiânica, muito própria e peculiar ao que se vê nos escritos do Evangelho atribuído a Mateus. Contudo, em seguida à descida do monte, a forma das perguntas que os discípulos fazem em reação à colocação de Jesus aparenta certa frustração mediante sua fala. Isto porque o que se vê é o questionamento desses mesmos discípulos sobre a profecia; porém, ao que parece, não em função da aparição, mas sim após a solicitação de Jesus:

9 E, descendo eles do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: A ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos.

Não há, em um primeiro momento, nenhuma dificuldade dos discípulos quanto a aparição, mas sim durante ou após a descida do monte. É preciso destacar que os discípulos aos quais estavam na transfiguração segundo o relato eram Tiago, Pedro e João, justamente os antigos discípulos de João Batista, aqueles que acreditavam, por conhecimento, ser Jesus o Messias, embora sem plena convicção disso.

É a partir da fala de Jesus que os discípulos reagem com questionamentos dizendo, em Marcos: E eles retiveram o caso entre si, perguntando uns aos outros que seria aquilo, ressuscitar dentre os mortos. 11 E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas que é necessário que Elias venha primeiro?

Ou em Mateus: Por que dizem então os escribas que é mister que Elias venha primeiro?

A razão desses questionamentos em reação à fala de Jesus é que, ao que parece, não fazia sentido para eles esperar o Filho do homem morrer e ressuscitar, pois a expectativa que os judeus tinham sobre o messias era de um vitorioso em vida, não em morte. Esse, inclusive, é um dos requisitos proféticos para o judeu. O messias deveria ser um vitorioso em vida. Então, se Elias já havia vindo, e se haviam ali confirmado entre eles que o messias era Jesus, por que não contar agora aos demais discípulos? Qual o sentido de esperar o messias morrer e ressuscitar? Não bastava Elias vir primeiro? Se estavam no monte todos com ele, por que aguardar mais?

Embora não havia uma convicção dos discípulos quanto a messianidade de Jesus, existia a suspeita sob um estado de dúvida. Aparentemente aquele evento da transfiguração representou por um instante para eles uma confirmação muito relevante do que ouviram falar através de João Batista quanto a pessoa de Jesus. No entanto, aquela fala de Jesus era contrária, confundiu os discípulos e frustrava suas expectativas e desejos, o que é de supor o crescimento desse estado de dúvida.

Nessa ocasião da transfiguração, João Batista já estava morto. No momento em que Jesus diz aos discípulos ali que “Elias já havia vindo, não o conheceram e fizeram-lhe tudo o que quiseram”, eles entenderam que ele se referia a João Batista porque, entre outras coisas, ele já tinha dito isso pregando para as multidões quando João ainda estava no cárcere. Portanto, não há aqui dificuldade na compreensão de que Jesus falava sobre reencarnação, pois esta conclusão não foi colocada por Jesus, mas tirada por seus interlocutores, os discípulos, assim como não houve dificuldade com a aparição. Mas é de se imaginar que provavelmente a situação não os deixaram mais confiantes sobre alguma condição messiânica de Jesus como suspeitavam, embora a situação apontava para eles que a vinda de um messias poderia ser diferente do que imaginavam, agora com um contorno mais visível, que essa vinda seria talvez de cunho mais espiritual e muito menos gloriosa do que o senso judaico que possuíam.

O retorno de Elias é uma Inspiração ou Reencarnação?

Em suma, se considerarmos verídicos os episódios da transfiguração, observa-se que Jesus entendia o retorno de Elias como uma reencarnação — reencarnação realizada em João Batista, ou seja, um retorno pelo nascimento natural na carne do antigo espírito de Elias, ali ressurgido como espírito no monte após sua morte. E não algo como uma “inspiração”, ideia que algumas pessoas tentam contrapor à tese da reencarnação, proveniente de um tipo de negacionismo ao reconhecimento de elementos de espiritualização contidos no texto. Essa espiritualização existe, ainda que esses elementos possam ter sido inseridos intencionalmente pelos Escritores para defender alguma proposta compatível à reencarnação ou ainda que esses elementos sejam apenas fruto da real inclinação destes personagens.

A hipótese da inspiração se ancora em duas possibilidades. A encenação, isto é, uma imitação fiel por outra pessoa da personalidade, comportamento, ação e características de alguém que já viveu antes, seja por imergir, estudar e absorver comportamento e conhecimento de alguma outra pessoa de forma inconsciente, seja por uma atuação consciente. Ou a influência em uma pessoa viva na carne realizada a partir do contato direto do espírito de outra pessoa já falecida.

A primeira suposição, a hipótese da imitação, se mostra insuficiente uma vez que, se bastasse apenas uma imitação, consciente ou inconsciente, nada impediria a ninguém de reproduzir o retorno de qualquer profeta que seja, mesmo do próprio Jesus, a qualquer tempo por um profundo envolvimento ou por uma mera atuação teatral. Até mesmo a espera do Messias judeu ou do retorno de Jesus seria resolvido a partir daqueles que o cogitavam ser, e teríamos então na história, não apenas um, mas inúmeros deste específico messias profetizado e aguardado. Diante disso, quanto à segunda hipótese, pergunta-se: Qual, pois, a finalidade de uma manifestação de Elias se realizar através de outra pessoa que não ele próprio sendo ele um enviado de Deus? Se Elias é um espírito de grande evolução, e é por esta grandeza que sua atuação, assim como a de Jesus, faz a diferença no mundo, não seria a sua própria e genuína ação justamente a necessária e não a de outra pessoa substituta?

Porém, vamos supor o argumento que pode ser levantado a essa questão. Que pressupondo impossível retornar à vida na carne após a morte e ao se partir da premissa de que só se morre uma única vez, então o único modo de Elias atuar seria pela manipulação ou forte influência de uma outra pessoa, no caso, de João Batista. Contudo, o argumento cai por terra na última fala de Jesus no trecho já citado: Mateus: E Jesus, respondendo, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas; 12 Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem. 13 Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista.

Marcos: 12 E, respondendo ele, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e todas as coisas restaurará; e, como está escrito do Filho do homem, que ele deva padecer muito e ser aviltado. 13 Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe tudo o que quiseram, como dele está escrito.

Cai por terra porque nada de ruim fora feito ao profeta Elias, como se lê nos últimos momentos de sua narrativa no Velho testamento, mas sim a João Batista, de modo que quando Jesus se refere a tudo o que fizeram com ele tal como quiseram está referindo-se a João Batista ter sido encarcerado e morto em uma festa, bem ao modo como Herodes, Herodias e sua filha desejaram. As últimas menções a Elias no Velho testamento destoam totalmente desta colocação negativa, sendo inclusive mais uma das razões pela qual os discípulos reconheceram Jesus referir-se a João Batista, embora estas últimas menções a Elias também levantem outras perguntas que ainda serão abordadas mais à frente. A percepção foi unânime e imediata porque, como se viu, eles já partilhavam da ideia de Jesus de que João era o próprio profeta Elias reencarnado, uma vez que antes de João Batista morrer Jesus já havia feito esta alegação de maneira clara ante as multidões na presença dos discípulos, mas também pelo modo como João morreu.

A ressurreição é um tema presente na cultura judaica sobretudo considerando o cristianismo primitivo, muito embora envolvendo amplo espectro de perspectivas que notavelmente se confundem. Tentar defender uma “inspiração” mostra-se uma conveniência pouco consistente, haja vista que não parece haver tanta aderência para tal hipótese. Nesse sentido, um retorno de influência direta ou meramente ficcional não teria efeito prático, nem para o Escritor, nem para o personagem.

Essa divergência entre afirmação e acontecimentos levanta outro ponto de questionamento. Não faz muito sentido o surgimento de um novo grande profeta, como João Batista, somente para ocasionar a manifestação de um antigo através de si mesmo. Qual a finalidade ou importância prática de um retorno assim? Apenas promover a identificação e reconhecimento pelo povo de quem prepararia o caminho para o Messias? E do que adiantou essa identificação se o próprio Messias não foi e ainda não é reconhecido como Jesus justamente por divergências entre seus sinais proféticos e tradição? Ou seja, teríamos uma precisão quanto àquele que prepararia o caminho do Messias que havia de vir, mas uma imprecisão quanto a quem era esse próprio Messias? Tudo isso não faz sentido, a não ser que esta divergência seja proposital para revelar o messias espiritual portador de uma boa nova e distinto do messias esperado pelo povo. E isto, enfim, poderia até ser uma resposta conciliadora, mas não faria a hipótese da inspiração mais consistente do que a do retorno na carne pela “reencarnação”, pois qual o sentido útil e prático de um antigo profeta ressurgir se não o de efetivamente demonstrar a todas as pessoas de qualquer tempo a “lei do retorno” em ação entre vidas, de modo que pregue exemplificando o modo como nada escapa, mais cedo ou mais tarde, à cirúrgica justiça divina, sendo necessário arrepender-se. A inspiração limita-se a alguma utilidade na identificação, não tendo qualquer grande ligação prática com o convite ao arrependimento como tem a reencarnação.

Diante disso, é no mínimo interessante que João Batista de fato refletia a personalidade de Elias, assumindo os mesmos trejeitos, vestimentas, tendências, alimentação e habitação, bem como tomando para si suas profecias.

Mas, ao mesmo tempo, é estranha sua afirmativa no contexto quando perguntado pelos Fariseus se era ele Elias:

João 1:19 E este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és tu? 20 E confessou, e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo. 21 E perguntaram-lhe: Então quê? És tu Elias? E disse: Não sou. És tu profeta? E respondeu: Não. 22 Disseram-lhe pois: Quem és? Para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes de ti mesmo? 23 Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías. 24 E os que tinham sido enviados eram dos fariseus. 25 E perguntaram-lhe, e disseram-lhe: Por que batizas, pois, se tu não és o Cristo, nem Elias, nem o Profeta? 26 João respondeu-lhes, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio de vós está um a quem vós não conheceis. 27 Este é aquele que vem após mim, que é antes de mim, do qual eu não sou digno de desatar-lhe a correia da sandália. 28 Estas coisas aconteceram em Betabara, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando.

Sua resposta é: “Não sou.”

Também diz não ser profeta.

A crença de Jesus na reencarnação de Elias

Frente às negativas do próprio João Batista, Jesus, entretanto, o contradiz em dois aspectos: afirmando que ele era mais do que um profeta comum, e que se tratava do próprio Elias que havia de vir.

A opinião do povo corrobora com as afirmativas de Jesus. Como se pode ler na passagem adiante, todos consideravam João como profeta:

Mateus 21:23 E, chegando ao templo, acercaram-se dele, estando já ensinando, os principais sacerdotes e os anciãos do povo, dizendo: Com que autoridade fazes isto? E quem te deu tal autoridade? 24 E Jesus, respondendo, disse-lhes: Eu também vos perguntarei uma coisa; se ma disserdes, também eu vos direi com que autoridade faço isto. 25 O batismo de João, de onde era? Do céu, ou dos homens? E pensavam entre si, dizendo: Se dissermos: Do céu, ele nos dirá: Então por que não o crestes? 26 E, se dissermos: Dos homens, tememos o povo, porque todos consideram João como profeta. 27 E, respondendo a Jesus, disseram: Não sabemos. Ele disse-lhes: Nem eu vos digo com que autoridade faço isto.

É plausível considerar que, dada a convicção de Jesus em afirmar que Elias já havia vindo, pode-se deduzir que, ou João Batista o confidenciou isso, ou Jesus deduziu por intuição, ou por informação. Neste sentido, as falas e atos de João Batista, quando vivo, refletindo exatamente as profecias de Elias, ao exemplo de sua própria colocação no trecho de João 1:23, “eu sou a voz do que clama no deserto…”, certamente repercutiram entre a multidão de testemunhas, que muito habituadas à “leitura do Texto” em sua rotina diária desde a infância, facilmente identificariam as referências. Assim, a postura de João Batista quando ele afirma nas margens do rio Jordão ser aquele que haveria de preparar o caminho para o Messias, remetendo a si próprio as profecias que diziam sobre o retorno de Elias, não passariam imperceptíveis para o público. João Batista referia-se a profecia de Isaías (como no capítulo 40:1–5) e certamente a recitação daquelas falas proféticas por parte do primo Essênio de Jesus marcariam fortemente aqueles judeus que recordaram também os dizeres de Malaquias (capítulo 4:5–6).

Deve-se então perguntar: João Batista negar ser Elias realmente elimina a possibilidade de ele ter sido Elias? Ou existe a possibilidade de sua fala tratar-se de uma colocação alegórica?

Negar ser Elias, bem como negar ser profeta, neste caso, não parece ser literal, mas um sentido figurado. Como se ele dissesse ser agora, como sua reencarnação, mais do que era como Elias no passado, mas alguém regenerado, renovado porque percorreu o caminho do arrependimento através do próprio renascimento, cumprindo justamente a profecia sobre esta preparação para uma renovação de vidas. Ademais, se sua negativa efetivamente eliminasse sobre ele a possibilidade de ser Elias, qualquer das hipóteses seriam eliminadas, ou seja, ele não o seria nem como reencarnação, nem como inspiração, e então as falas de Jesus seriam errôneas.

Aliás, João Batista teria motivos para falar deste modo figurado, pois é no mínimo curioso que a história relatada de Elias e João Batista simbolicamente também se cruzam, bem ao modo judaico e, talvez, não por acaso. Elias fora responsável pela decapitação de 450 sacerdotes de Baal, e João Batista nos tempos de Jesus morreria justamente decapitado, tornando-se um símbolo do retorno e da reencarnação. Para compreender porque essas “coincidências” não são casualidades no texto, mas, no mínimo, passagens muito bem construídas, necessário trazer a conhecimento qual a lógica da reencarnação.

O sentido e propósito da reencarnação é, entre outros, proporcionar uma reparação, que se dá em um aprendizado por vivências, na ordem do sentimento, o que é diferente do aprendizado unicamente pelo conhecimento ou razão, modo que nem sempre implica numa mudança de postura íntima, de conduta da pessoa. Muitas vezes a vivência de uma experiência — neste caso, da experiência de viver novas vidas, vidas sucessivas — é a forma derradeira de transformar a pessoa, por exemplo, por induzi-la a um estado de empatia, isto é, induzi-la a experienciar o lugar do outro submetendo-a a mesma natureza de situação que provocou a alguém com sua escolha de conduta.

Isto porque aprender pelo conhecimento nem sempre é suficiente para alguém evoluir e, por exemplo, não praticar o mal. Saber ou ter consciência de que uma conduta é maléfica por exemplo, não é necessariamente suficiente para evitar que a pessoa pratique esta conduta, tanto que não é raro o mal exercido com consciência por alguém. A mudança desse tipo de persistência se dá sofrendo, pela vivência, um mal equivalente ao praticado, numa condição cuja a qual o espírito, como se fosse colocado no lugar do outro, aprenda pelo sentimento, em um, a grosso modo, “sofrer” equivalente, para realizar uma reparação por vontade própria sobre o que “destruiu”. O arrependimento, neste sentido, é uma experiência de aprender em sentimentos caminhando sobre o próprio passado. Reestabelece o equilíbrio da própria consciência pela experiência de vivências de situações semelhantes às situações decorrentes das más escolhas que procedeu, oportunizando ao ser realizar sua renovação, reabilitação e compensações. Importante destacar que não é necessariamente por um viés, por assim dizer, trágico-negativo que se desdobra a caminhada em reencarnação, sendo este acontecimento a forma natural de evoluir, de amadurecer o espírito, de progredir.

Assim, não por acaso, o símbolo dessa “volta” seria no contexto bíblico bem representado por João Batista, justamente aquele Elias quem regressava redimido e transformado e que convidava ao arrependimento, a uma jornada pessoal de “retorno”.

No entanto, a rigor, os relatos sobre Elias levantam outras questões pertinentes à investigação.

Mas Elias morreu?

É dito sobre Elias em uma de suas últimas menções no antigo testamento que ele fora arrebatado, de forma que ele não experimentou a morte. Segue-se adiante o respectivo trecho do capítulo 2 do livro de Reis:

11 Enquanto iam caminhando e conversando, de repente um carro de fogo apareceu e passou pelo meio deles, separando-os. Elias foi, assim, levado para os céus num remoinho. 12 Eliseu, que viu tudo, gritou: “Meu pai! Meu pai! Carro de Israel e seus condutores!” Quando o carro desapareceu, Eliseu rasgou a sua roupa.

Deixando de lado por ora outra polêmica menção a Elias do Livro de Crônicas após o arrebatamento e que contradiz estas ideias não desfavorecendo, porém, a hipótese aqui defendida, pergunta-se: Se Elias foi arrebatado e não morreu, como poderia ele ter reencarnado?

Primeiramente é importante saber que essa ideia do arrebatamento e de não experimentar a morte, tendo em vista o contexto judaico, não significa necessariamente que ele não morreu, mas indica que Elias não possuía pecados, pois “o salário do pecado é a morte”. Embora se diga sobre um arrebatamento de Elias, isso não necessariamente é um indicativo de que ele fora levado em corpo de carne para viver nos céus, já que existem outras possibilidades acerca de seu específico relato.

Algumas perguntas devem ser feitas: Ordenar intencionalmente a morte de 450 pessoas não seria um pecado? Se esta ordem partiu de Elias, por que ele não haveria de experimentar a morte — e por consequência em seu futuro a reencarnação — sendo o assassinato um pecado, se Deus não faz acepção de pessoas? O arrebatamento é um subir aos céus com o corpo de carne ou essa subida poderia também indicar uma construção do Escritor baseada em alguma crença ou interesse ali inseridos? E se for uma ascensão real aos céus, não poderia ser o arrebatamento em si um acontecimento do espírito e não do corpo de carne? Ou toda a situação não poderia ser um acontecimento espiritual semelhante ao evento da transfiguração de Jesus, por exemplo? E a existência de textos que contradizem este desfecho do arrebatamento, como o do Livro de Crônicas, não seria por si só um indício de intervenção textual?

Outras questões ainda surgem: Se Elias não tivesse mesmo morrido, como, então, uma aparição espiritual e a curiosa pergunta dos discípulos? Qual a necessidade de utilizar um outro encarnado (João Batista), seja por influência ou por imitação, se o próprio Elias era capaz de aparecer, como o fez com Jesus?

Enfim, o que parece ser é que a referência a seu arrebatamento é o acréscimo do Escritor para defender a ideia de um profeta sem pecados a estabelecer uma aliança com Deus aos moldes da aliança de Abrãao (como se lê em Gênesis capítulo 15 versículos 17 e 18). Pela observação da passagem do arrebatamento é notável um estilo simbólico, dado por falas repetitivas, com imagens alegóricas e envolto em referências tais como “carro de Israel e seus condutores”, estilos vistos de outras vezes nos textos bíblicos, justamente quando existe uma intenção estratégica na narrativa.

De qualquer forma, ao que parece, um arrebatamento de Elias em corpo de carne não é um entendimento que condiz com a ideia ao qual Jesus partilhava, uma vez que se Elias não morreu e precisava retornar bastava que ressurgisse como Elias mesmo da mesma forma que ascendeu aos céus e Jesus nada precisaria dizer como disse, tão pouco os discípulos precisariam perguntar como perguntaram. Bastava que ressurgisse como o próprio Elias e não que exercesse uma influência a um terceiro, conhecido apenas daquela geração, ao passo em que o que se tem são falas de Jesus sobre Elias ser João Batista.

Qual o sentido de Elias terceirizar sua presença a outra pessoa se pela lógica da reencarnação João Batista poderia simplesmente ser o próprio Elias ressurgido em carne provendo uma mensagem muito mais significativa para a humanidade, a de que a vida continua e progredimos por sucessivas vidas na carne pela reencarnação em condições diferentes para fatalmente nos tornarmos pessoas melhores, espíritos mais maduros. Vale lembrar, para o judeu, embora em meio a outras perspectivas, o retorno é um tema corriqueiro, que só não é objeto de foco da Torah por uma razão muito simples: para se transformar individualmente como ser humano, importa o que se faz na vida AGORA.

Conclusão

A tese que se defende aqui quanto ao desfecho de Elias, a princípio, é que ele havia, sim, passado pela experiência de morrer tendo sido responsável pelo extermínio dos sacerdotes pagãos, razão que o destinaria, sim, a um retorno carnal.

Na soma de todos os detalhes trabalhados desde o primeiro trecho apresentado ficam possibilidades: Ou Elias efetivamente retornou tempos depois como João Batista, primo de Jesus, pela reencarnação morrendo tal como levou outros à morte no passado, ou essa era apenas a crença que Jesus compartilhava com seus discípulos e muitas pessoas. Ou, ainda, era a crença do Escritor ou Copistas, podendo ser um desenvolvimento intencional destes que estiveram envolvidos no trabalho de escrita, cópias e traduções. As evidências existentes no texto permitem estas três possibilidades.

Elas não descartam, porém, e as três coexistem a uma outra possibilidade conciliar para a hipótese da “inspiração”. A de uma ação de oportunidade pela percepção dos protagonistas da convergência dos eventos perfeitos pelos quais as pessoas “comprariam” uma ideia, o que seria um argumento racional para um sentido do termo “inspiração”. Ou seja, os envolvidos tiveram atos de criatividade em um timming ideal e combinado. Segundo esta possibilidade, cada situação oportuna era plenamente aproveitada com falas e discursos cirurgicamente encaixados por seus protagonistas, realizando assim fascinantes coincidências. Semelhante tese seria muito impressionante, mais até do que a hipótese da reencarnação para alguns, mas possivelmente seria menos razoável que ela porque significaria a ocorrência de certas coincidências circunstanciais tais como a degola de João Batista, uma perspicácia sobre-humana dos protagonistas e outras questões mais. Ou poderia significar que nada disso ocorreu e o texto foi puramente construído elaborando todo um complexo relato de sentido muito alinhado a certas ideias de alto impacto, difundidas de uma maneira muito especial. Esse “projeto” também seria muito complexo, desafiador e difícil, mas esta última hipótese ainda assim, teria inevitavelmente como seu cerne difundir uma mensagem que inclui a reencarnação em suas linhas e entrelinhas. E só por semelhante obra o autor já mereceria a alcunha de um Jesus mesmo.

Enfim, não sendo possível ter certeza de uma verdade absoluta e fatídica, a crença numa dessas possíveis hipóteses entre outras é decisão de fé, a partir do limiar em que não mais se obtém evidências que permitam uma resposta definitiva. Cada vertente escolherá a sua decisão de fé a partir da racionalidade passível de construir para assumir quanto à temática uma posição.

De qualquer modo, até aqui, para além da definição da questão: se João Batista era Elias, há de se reconhecer que minimamente está demonstrado que a hipótese da reencarnação no texto não pode ser descartada como via interpretativa, ainda que esta perspectiva fosse uma concepção própria, seja de Jesus, seja do Escritor.

O objetivo deste texto era desvelar elementos que apontam consistentemente para essa possibilidade e mostrar por definitivo que esta possibilidade de verdade não está descartada nos limites textuais, fazendo, inclusive forte sentido. Jesus, embora judeu, apresentou inovações em relação ao pensamento tradicional de sua época e sociedade, como a perspectiva de um vitorioso do espírito e não da matéria, se considerarmos reais as atribuições mais essenciais sobre ele. E João Batista simboliza muito bem, ao menos textualmente, esta representação da reencarnação.

Talvez não por acaso esse retorno também é manifestado por ele em gesto no ritual do batismo em água, uma representação da volta à vida na carne, símbolo presente em outra emblemática passagem do Evangelho de João Evangelista que não só reforça a tese da reencarnação deste texto, mas também a estende e que será abordada no próximo: a conversa de Jesus com Nicodemos.

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André Silva
EspíritodaLetra

Pensador, investigador e “filosofista”. Pesquisa a ciência, a consciência, o espírito, linguagem, cultura, redes, etc. Mestre em C.I. Instagram: @andrefonsis