A dicotomia do ser mulher e a exigência de perfeição

Aissa Almeida
Sementes Coletivas
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4 min readJun 4, 2023

A maternagem é representada nos filmes como a maior conquista para uma mulher. Para uma mulher ser feliz, ela precisa ter filhos e levar a maternidade como ponto central de sua vida, como se sua felicidade dependesse de suas crias.

Enquanto isso, as representações de madrastas ou mulheres sem filhos nos filmes trazem sua infelicidade, amargura e crueldade como características principais.

Ou seja, existem duas opções de mulheres possíveis: aquela que aceita seu destino como mãe. E a rancorosa que não quer procriar e portanto, paga o preço por não aceitar o que é para ela imposto.

A dicotomia entre a mulher obediente e a que desvia da norma é um dos instrumentos mais efetivos do sistema patriarcal e existe há muitos anos. As Leis Médio-Assírias, baseadas nas leituras de todas as traduções existentes de compilações de Leis Mesopotâmicas, por exemplo, dizem o seguinte:

“Nem [esposas] de [lordes] nem [viúvas] nem [mulheres assírias] que saem na rua podem estar com a cabeça descoberta. As filhas de um lorde […] seja com um xale, um manto ou [uma capa], devem se cobrir. […] quando saírem sozinhas, devem se cobrir. Uma concubina que sair com sua senhora deve se cobrir. Uma prostituta sagrada que se casar com um homem deve se cobrir na rua, mas aquela que não se casar deve andar com a cabeça descoberta; ela não deve andar coberta. Uma meretriz não deve andar coberta; sua cabeça deve ser descoberta. […]” (PRITCHARD, 1955 apud LERNER, 2019, p. 176)

Ou seja, mulheres domésticas, que serviam a algum homem, eram protegidas por ele, designadas enquanto “respeitáveis”, e portanto deveriam fazer uso do véu. Já as que não possuíam proteção e controle sexual de um homem não podiam fazer uso do véu, pois saíam da norma e, por consequência, eram vistas enquanto não-respeitáveis. Assim, a classificação de mulheres em respeitáveis e não respeitáveis se torna um assunto do Estado. Seguindo a mesma lógica, na nossa sociedade, uma das dicotomias utilizadas para dividir as mulheres são: as mães — a mulher que abdica, muitas vezes, da própria identidade para cuidar e priorizar os outros — e as que recusam esse papel e são criticadas ou estigmatizada, sendo vistas como egoístas e incapazes.

Ademais, mesmo aquela mulher que se coloca em segundo plano e prioriza o cuidado com os outros, precisa cumprir um padrão de perfeição. Esse padrão que aqui pontuaremos enquanto um padrão de maternidade perfeita, existe independente da mulher possuir filhos, pois trata-se de uma exigência comportamental.

Naomi Wolf, em seu livro “O Mito da Beleza” declara que os padrões de beleza são instrumentos de controle político, no qual as mulheres, ao serem constantemente bombardeadas com exemplos de corpos e rostos perfeitos — impossíveis de serem alcançados — são controladas e limitadas. Em outras palavras, as normas de beleza não apenas descrevem a relação que as mulheres precisam ter com o próprio corpo, como também definem as dimensões da sua liberdade psíquica. (DWORKIN, 1974; WOLF, 1991)

Da mesma forma, a sociedade estabelece um padrão comportamental de mãe perfeita. Em cada cultura, assim como a beleza, o ideal de maternidade varia de acordo com o período histórico. Conscientemente ou não, todas as mulheres o carregam. Elas podem aceitá-lo, rejeitá-lo ou contorná-lo, mas é sempre em relação a ele que seu comportamento é determinado.

E, mesmo que variem de acordo com a época e o lugar, todos eles se fundamentam na mesma ideia: a preocupação da mulher consigo mesma deve dar lugar ao esquecimento de si, e o “eu quero tudo” perde espaço para o “eu lhe devo tudo”. (BADINTER, 2010, p. 18). Em outras palavras, a sociedade não está realmente interessada em uma criação perfeita dos filhos, mas no comportamento cego das mulheres enquanto cuidadoras, que precisam obedecer o sistema e internalizar o seu papel social como um aspecto natural da sua personalidade.

A boa mulher é aquela que “naturalmente” coloca as necessidades dos outros acima de tudo. Ela é capaz de assumir uma trilogia de papéis: conjugal, maternal e profissional, sem questionar, mesmo que eles se sobreponham e coexistam na maior parte do seu dia. Se ela chega atrasada no trabalho porque levou seu filho ao colégio, assume a responsabilidade de não ter sido boa o suficiente. Se acabou se sentindo exausta por não ter dormido a noite porque estava cuidando do seu avô, talvez ela precise se esforçar mais. Afinal, tem tantos exemplos de mulheres que conseguem ser incríveis em todos os papéis que precisam assumir, não é mesmo?

A verdade é que é tudo isso é uma ilusão. A estrutura social precisa da obediência feminina. A mulher precisa estar o tempo inteiro tentando ser essa mãe perfeita mesmo que ela nunca consiga chegar na perfeição que se espera — que vai além do seu tratamento com seus filhos, caso ela tenha. Consequentemente, essa relação cria um caráter alienante no desempenho do papel social feminino, em que ela se preocupa tanto com o cumprimento dessa obrigação, que não lhe resta tempo para pensar e avaliar sua condição social, e a ideia enraizada na sua posição.

Referências

BADINTER, Elizabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2010.

DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Dutton. 1974

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado. História da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019.

WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1991.

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