A política sexual da carne

Alice Puterman
Sementes Coletivas

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Por que o vegetarianismo e o veganismo são tão vistos como movimentos femininos?

O vegetarianismo é um regime praticado desde a Pré-História. Antes do advento do fogo, nenhuma das espécies pertencentes à família Hominidae caçava em grande escala. Nós nunca fomos animais caracterizados como caçadores; na verdade, éramos e, ainda, somos presas. O movimento vegano, por sua vez, recebeu tal nomenclatura já na segunda metade do século XX, pelo britânico Donald Watson. Por que, em pleno século XXI, depois de milhares de anos de regimes alimentares que rejeitam a violência animal, os movimentos vegetariano e vegano ainda são tão vistos como femininos?
Pode-se afirmar, de fato, que o feminismo está, em diversos âmbitos, atrelado a tais políticas alimentares, mas assim o faz como qualquer outro movimento anticapitalista. Por que ainda relaciona-se a nossa alimentação à feminilidade? Numa hiperbólica comparação, tanto o ciclo de violência, baseada no sexo, para com mulheres, quanto o para com os animais - baseada no consumo - só se mantêm pelas hierarquias estruturalmente postas em nossas sociedades.
Dentro do sistema patriarcal, até a forma com que nos alimentamos é diferente entre homens e mulheres. À medida que se realizam à mesa os mais diversos tipos de conexão e interação, continuam a se impor os papéis sociais. Nesse sentido, muitas vezes é colocada a mulher num papel de análoga à carne, ou então, suas próprias opressões e o tratamento social diário são refletidos nos alimentos que se escolhe.
A escolha alimentar pode parecer por vezes um fato social superficial se não for analisada com cuidado. Através de uma análise materialista, pode-se apontar como sociedades agrícolas do passado passaram a atribuir à carne, o status, uma aura de desejo, e a colocá-la como símbolo de ascensão social. Num contexto em que a obtenção de carne, no geral, se torna escassa ou cara, como vê-se hoje no Brasil, seu peso social começa a ser exercido sobre as famílias que podem ou não tê-la à mesa.
A opção por uma alimentação com base em vegetais e legumes não tem a ver, exclusivamente, com valores nutricionais ou saúde, mas sim, com a negação de um sistema que utiliza de elementos básicos para a sobrevivência como meio de propagar ideologias de poder, classe e desejo. O prazer em comer carne vem da virilidade atrelada a ela socialmente, e só é possível tal relação quando há um referente ausente.
“Você está de dieta?”, “Você come muito!”, “Não gosta de salada?”, “Que frescura parar de comer carne!”, “Até que tem bastante verde no seu prato!” são comentários comuns escutados por mulheres em relação à sua dieta. Não basta perdermos o controle sobre nossos corpos, e da objetificação e sexualização que enfrentamos estruturalmente, mas perdemos também o direito sobre nossos apetites. Ter nossos corpos tão visados, significa atribuir mais uma imagem à alimentação: a da culpa, a da responsabilidade, a da significância social. Você é o que você come, né? Sobreviver a uma sociedade que nos impõe padrões estéticos impossíveis fica ainda mais difícil quando comer se torna tão significativo. O ritual da feminilidade está, de várias formas, aplicado à alimentação.
Como se portar à mesa, qual postura deve-se adquirir ao comer, o que deve-se comer, o que pode parecer inapropriado quando se está comendo, são preocupações genuínas de qualquer mulher. A possibilidade de ser sexualizada enquanto come determinado alimento nem assusta mais, pois fomos condicionadas a nem perceber mais como a violência sexual se transpõe sobre toda e qualquer área de nossas vidas.

O que é referente ausente e o que as mulheres têm a ver com isso?

“Por meio do retalhamento, os animais se tornam referentes ausentes. Os animais com nome e corpo tornam-se ausentes como animais para que a carne exista.”
J. Adams, Carol. “A política sexual da carne.”

Mas para haver carne é preciso que eles estejam ausentes – mortos, transformados em “comida”, não em cadáver. Isso é exemplo de um referencial ausente. Através do retalhamento extinguimos a vida daquele ser e enxergamos apenas um conjunto de partes isoladas.
Torna-se também, referente ausente ao passo em que se fala “frango” ou “bife” ao invés de “galinha” e “boi”. Para cometer a violência – visando o prazer – é preciso ausentar os referidos. Até mesmo quando se diz “me sinto como um pedaço de carne”, está referenciando-se a violência sofrida pelos animais, cometida pela humanidade, de forma coercitiva, sem falar diretamente deles, de fato – os ausentando. “Sentir-se como um pedaço de carne é ser tratado como um objeto inerte quando, na verdade, se é (ou era) um ser vivo e capaz de sentir.”
O mesmo acontece com as mulheres através do retalhamento. Nós as transformamos em “carne”, “peito”, “coxa”, “bunda”; ausentamo-nas de vida, contudo, ainda enquanto vivem. Refere-se à violência sem citar a classe oprimida.

“Tudo é separado: intelecto de sentimento e/ou imaginação; ato de consequência; símbolo de realidade; mente de corpo. Algumas partes substituem o todo e o todo é sacrificado em favor da parte”
Dworkin, Andrea.

Embora Dworkin esteja se referindo às mulheres, a mesma narrativa pode ser aplicada aos animais. Isso demonstra também que crimes contra a mulher, como o estupro, só são possíveis pelo referencial ausente. Ao enxergar a mulher como ser não ciente ou, ainda, não racional, como um conjunto de partes a serem constantemente objetificadas e reduzidas a sua “beleza” ou “atratividade”, a violência se torna possível.

O pessoal é político

Ao comer carne, as mulheres participam – e se beneficiam, também – da estrutura do referente ausente, tal qual os homens, sem sequer perceber que sustentam a mesma estrutura que as atinge e violenta todos os dias.
A cultura patriarcal faz com que as causas e consequências fiquem desconectadas. As feministas radicais, ao dizerem “o pessoal é político”, fazem a conexão. Em um mundo no qual a masculinidade é definida pelo acesso ao consumo e controle de corpos, sejam eles de mulheres ou de animais, é preciso fazer a conexão entre o veganismo e o feminismo. Contudo, você certamente já viu defensores de mulheres vítimas de agressão comendo hambúrgueres enquanto falam de paz dentro de casa, ou, comida caseira preparada com animais mortos para ativistas pacifistas.
As mulheres são as únicas pessoas oprimidas que vivem em intimidade com seus opressores. Da mesma forma, os seres humanos - homens - oprimem os animais e convivem com intimidade com os animais que transformaram em alimento.

Proteína animalizada e proteína feminilizada

“As fêmeas tornam-se oprimidas pela sua condição de fêmea e tornam-se essencialmente amas de leite substitutas. Também são oprimidas como animais mães. Quando sua produtividade cessa, elas são mortas e se tornam proteína animalizada. Os veganos boicotam a proteína feminilizada e animalizada.”
J. Adams, Carol. “A política sexual da carne.”

Através da animalização da proteína os animais são reduzidos a meios para os nossos fins, deixam de ser alguém para ser algo. Seus corpos são manipulados de modo que se transformem em incubadores de proteína.
Ao olharmos para a violência cometida contra os animais, não basta colocá-los somente no grupo “animais”, é preciso dividi-los entre machos e fêmeas. Com exceção da produção de mel, pelas abelhas, as fêmeas são os únicos seres que enquanto vivos, produzem comida a partir do seu próprio corpo. Isso é a proteína feminilizada, a produção de leite e ovos. Ou seja, elas são duplamente violentadas.

Mulheres e vacas: o mesmo status social

O emparelhamento do consumidor de carne com “homem viril” e de mulheres com animais indica também outro emparelhamento: ao falarmos sobre o destino tradicional de mulheres. Oprimimos os animais ao associá-los ao status inferior das mulheres.
Podemos observar isso, olhando para um fenômeno que acontece na língua inglesa: Ao falarmos de um animal, normalmente é usado o pronome it (isso). Contudo, he (ele) e she (ela) também podem ser utilizados, e, surpreendentemente, isso nada tem a ver com seu sexo.
Os animais são divididos em grandes forças ou em forças inferiores, sendo o último, uma presa, uma força que precisa ser destruída e dominada. Se de it chamamos aquilo que é inanimado, ou seja, sem poder, e de he chamamos o que é um poder animado, o he representa as grandes forças e o she as forças inferiores. Com isso, vemos que é dado aos animais que são dominados pelo homem, o status de mulher.
Da mesma forma, também colocamos as mulheres no mesmo lugar social dos animais. Na verdade, é o lugar social que as fêmeas têm na sociedade. A barriga de aluguel é um exemplo disso, as mulheres são traficadas - é ilegal a obtenção de lucro pela cessão temporária do útero no Brasil - através de contratos de sub-rogação uterina. Seus bebês são dela retirados tal qual os bezerros são retirados de sua mãe - enquanto ainda a necessitam.
Se analisarmos com clareza, as barrigas de aluguel são uma violação dos Direitos Humanos, tanto para a mãe, quanto para o nascituro. Uma realidade não tão distante da vivida em O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale). As mulheres são obrigadas a gerar um filho - por falta de alternativa; afinal, qual é a classe das mulheres que se submetem a isso? - para um casal que não pode tê-lo.
A legislação brasileira não permite o aluguel exatamente para que não haja uma comercialização de bebês ou de mulheres. Contudo, isso não impede que o procedimento seja realizado ilegalmente, deixando a mãe ainda mais em risco e extinguindo qualquer direito que ela pudesse vir a ter. A barriga solidária, no entanto, é permitida no nosso país, na qual parentes concedem seu útero temporariamente e gratuitamente a um familiar. Isso evidencia o quanto a sub-rogação de úteros é uma indústria - que explora mulheres. Enquanto no Brasil não há lucro com a prática, de maneira a não incentivar mulheres a entrarem nesse mercado, nos EUA, foram gerados US$ 6 bilhões em 2018 e esse número deve chegar a US$ 27,8 bilhões em 2025, já tendo sido responsável pelo nascimento de mais de 10 mil bebês entre 2010 e 2014. Ao mesmo tempo, nos países sub-desenvolvidos, muitas mulheres moram em abarrotados albergues para mães de aluguel, para que elas gestem bebês de pais estrangeiros.

Veganismo: Lugar feminino e Oriental

O veganismo é uma postura ética baseada na compaixão por todos os seres vivos.

“Nos tempos primitivos, os homens e as mulheres viviam separados, os primeiros caçando animais exclusivamente, as últimas vivendo da coleta.”
“O mito dos boximanes."

A desigualdade entre os sexos incorpora a desigualdade da espécie proclamada pelo consumo da carne, porque na maioria das sociedades, a caça era tarefa do homem. Entender que podemos viver apenas da coleta, dos legumes e vegetais, é entender que não precisamos dos homens. Por isso, temos uma cultura que nos empurra carne, ovos e lacticínios a todo custo: afinal, o status das mulheres é inversamente proporcional à importância da carne. Na distinção de classes é possível notar a diferença entre o consumo de carne, nela, as pessoas que têm uma alimentação carnívora são as que têm poder. Mas essa distinção também é patriarcal, afinal, as mulheres são cidadãs de segunda classe.
Na Indonésia, por exemplo, a carne é considerada propriedade dos homens. Nas festas, ela é distribuída para as famílias de acordo com a quantidade de homens ali presentes. Já na África equatorial é comum a proibição de frango para as mulheres; na Etiópia, a punição para as mulheres que descumprirem tal regra é a escravidão. 70% da proteína da comida dos norte-americanos é derivada de animais, enquanto no Extremo Oriente, 80% da proteína provém de vegetais.
Por fim, é necessário dizer que a luta feminista e o veganismo devem seguir lado a lado, em união. Pois, a misoginia e o especismo seguem entrelaçados, dando a mulheres o valor de animais e a animais, o valor de mulheres. Que, em suma, são de valor equivalente, o de um ser inanimado, não senciente e irracional.

Escrito por Alice Puterman e Audrey Merchak.

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