Amor, sexo ou dinheiro?

Audrey Merchak
Sementes Coletivas
Published in
4 min readFeb 18, 2023

A cultura do sexo e o reality Brincando com Fogo

A cultura influencia a sexualidade ou a sexualidade o faz com a cultura? O reality Brincando com Fogo se propõe a expor solteiros do mundo todo aos maiores níveis de intimidade, mas para ganharem o grande prêmio eles precisam ficar sem sexo. Um dos programas mais bem-sucedidos do momento apresenta o sexo como hipervalorizado. Mas por quê é que os participantes sentem tanta dificuldade para criar laços e relacionamentos verdadeiros e emocionais?

O elenco de cada temporada é escolhido à mão, e aos olhares mais cuidadosos fica clara a intencionalidade desse processo. Através de corpos normativos aos padrões estéticos massificados e comportamentos emocionalmente alienados criam-se os arquétipos mais apelativos à grande mídia. E tamanha dificuldade de conexão entre os casais só demonstra como os aspectos relativos à sexualidade determinam diversos outros padrões sociais, tal qual a criação de amizades verdadeiras, vestimentas, tipos de flerte, joguinhos de conquista e etc.

O programa se dispõe a estimular profundas e íntimas conexões românticas. Contudo, a crescente tensão sexual parece cegar os participantes, sobretudo homens, às possibilidades de qualquer tipo de relacionamento. Ao mesmo tempo, a rivalidade entre as moças se torna mais cruel à medida que novas mulheres entram no jogo. Fica explícito, então, como as conexões feitas através de vulneráveis conversas e trocas emocionais não trazem segurança dos homens a suas companheiras.

A beleza e sensualidade de uma outra mulher não deveria ser capaz de abalar a confiança em um relacionamento, principalmente num programa cuja principal máxima é evitar o sexo. Nesse sentido, a feminilidade e competição feminina, enquanto ferramentas de opressão, se mostram completamente exitosas. Na última temporada, por exemplo, Kayla se sentiu ameaçada pela presença de uma outra mulher recém-chegada, e infringiu a regra maior do reality, como num ato de demarcação de território. Por mais que as dificuldades de estabelecer romances sejam causadas, na maioria das vezes, pela inabilidade dos homens de verem suas parceiras como mais do que objetos sexuais, as mulheres parecem precisar se provar como merecedoras de uma relação saudável e amorosa.

A obsessão com o corpo, a beleza, a juventude, a magreza, e a sensualidade fica mais óbvia em Brincando com Fogo do que em qualquer outro reality show. Ao contrário do cumprimento do papel social esperado das mulheres, que inclui comportamentos de passividade, submissão, e a busca por romances idealizados, as competidoras deste show aparentam ser mais sedentas pelas trocas afetivas e sexuais do que os homens. E tal troca de valores não é à toa. A título de exemplo, o casal formado por Brittain e James teve de superar diversos conflitos, pois, para Brittain, a falta de contato físico, claramente determinada pelas regras do programa, colocava em xeque toda a conexão emocional existente entre eles.

Na edição que se passa no Brasil a tentação parece ainda maior. Tantas foram as infrações às regras do reality que, pela primeira vez, um elenco conseguiu zerar um prêmio de 200 mil reais. Seria coincidência que para as mulheres latinas a sexualidade seja um maior fator definidor? A pressão de serem sempre sensuais e estarem de acordo com todos os padrões de feminilidade se mostra ainda mais violenta num país como o Brasil, no qual as mulheres, enquanto classe, já são estereotipadas pela sua própria nacionalidade. A cultura não mais define a sexualidade, mas o contrário.

Ao repararmos melhor, os casais que ganham mais destaque em cada temporada, sejam Harry e Francesca, Cam e Emily, ou Nathan e Georgia, todos têm algo em comum: muitas quebras de regra e relacionamentos explosivos. A toxicidade masculina, nesses casos, escapava ao passo que as mulheres começavam a se apegar. O tão falado bloqueio emocional virou desculpa para a misoginia internalizada. O medo de se envolverem por parte das mulheres nada mais é do que compreensível e razoável, já que se encontram cercadas pela busca incansável dos homens pela mulher perfeitamente submissa, pelo menos aos olhos do público, já que nos momentos particulares, esperam a epítome do prazer. O medo das mulheres de se deixarem criar laços mais profundos se parece mais como um mecanismo de defesa, enquanto para os homens parece decorrer de uma libido viril que não pode ser ferida em nome de um amor qualquer.

A partir das dinâmicas em Brincando com Fogo percebemos que na realidade moderna, de relações cada vez mais líquidas, a importância do sexo vai muito além da do amor, ou sequer do dinheiro. Provar-se mulher não tem mais preço, e tudo vale a pena para ser a mais cobiçada pelos homens e invejada pelas mulheres. A rivalidade, portanto, se torna apenas consequência de um sistema que coloca na conquista o objetivo principal, independentemente dos meios pelos quais se dê. E, assim, nós mulheres continuamos a sermos vistas como superficiais, descartáveis a qualquer homem que cumpra minimamente seu papel tangente à masculinidade. A indecisão entre o desejo e o companheirismo tem fim na necessidade imposta às mulheres de se provarem o tempo todo.

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