Análise de Morte Súbita — JK Rowling

Serpente de Medusa
Sementes Coletivas
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36 min readDec 19, 2023

OBS -> Sei que a análise é grande, mas por favor dê uma chance!

Fecho o livro e as lágrimas não param de cair: o que dói não é a história em si, o que dói é a realidade. É a realidade expressa por meio de uma ficção, é saber que de ficção esse livro só tem os nomes inventados, pois em cada cidade conhecemos um caso assim: é universal ao mesmo tempo que é subjetivo, e isso, é o que define uma obra de arte.

O livro Morte Súbita de JK Rowling conta a história de uma cidadezinha chamada Pagford, a qual possuía uma abadia pertencente a uma família antiga e rica da região, mas que ao passar de mão em mão as terras ao redor da propriedade foram vendidas, e, aos poucos, a periferia de Pagford foi ocupada por centenas de vidas em um bairro chamado Fields.

Esse bairro está, no começo do livro, sob administração de Pagford, mesmo que fique perto também da cidade vizinha, Yarvil. A grande questão do livro, sem mais enrolações, é uma decisão política sobre Fields: com quem deveria ficar a administração (e portanto, gastar dinheiro) com o bairro.

Pagford é composta por inúmeras personagens diversificadas e personagens-tipo, ou seja, aquelas pessoas que você lê no livro e tem certeza que conhece alguém muito parecido na vida real.

O livro logo no inicio começa com a morte de um dos conselheiros do Distrito de Pagford: Barry Fairbrother e todo o burburinho que surge ao redor do acontecimento, típico de cidade pequena. E agora, a depender de quem ocupará sua cadeira no conselho distrital o destino de Fields e de Pagford pode mudar para sempre. E, a partir daqui vou começar com as análises e spoilers.

A realidade em morte súbita é explorada de maneira crua, é apresentada a nós várias realidades distintas e várias delas nos parecem cruéis. Fico me perguntando, para aqueles mais alheios à realidade do mundo, se realmente acharam esse livro fantasioso e fora do que vemos todos os dias nas telas da TV ou vivemos em nossa própria pele.

As famílias ricas de Pagford, como os Mollison, que acham ser donos do lugar e, como bons cidadãos de bem, são corruptos em todas as esferas da vida quando longe do julgamento público. Se fosse no Brasil, essa família seria aquela bem riquinha cheia de privilégios que faria de tudo para passar em cima de você ou de qualquer um que ficasse na frente deles, e, óbvio, acha que sabe mais do qualquer pessoa no mundo.

As famílias pobres de Pagford estão localizadas em Fields, como os Weedon, que não tem tempo para gastar com política, pois estão ocupados demais tentando sobreviver, sabemos que famílias assim, infelizmente, em eleições, viram massa de manobra com compra de votos por cestas básicas no Brasil por exemplo. E, por favor, não pense que culpo eles, culpo o capitalismo, no qual chamamos de escolha algo cuja outra alternativa é passar fome, isso não é escolha.

Uma das coisas geniais de entender desse livro é o olhar apurado de Joanne em captar como a realidade opera e como os mecanismos de opressão fazem seus papéis dentro dos ciclos sociais presentes.

Os homens do livro, todos, sem exceção, em algum momento da vida, exercem poder ou violência sobre as mulheres ou as subjuga como objetos sexuais, seja dentro de seus pensamentos ou através de ações como estupro e outros abusos sexuais, psicológicos ou físicos. Eles sempre são o sol em busca de planetas para os orbitarem, no caso os planetas seriam as mulheres.

Já as mulheres do livro, sem exceção, tiveram, em algum momento da vida, enfrentar violência vinda dos homens, ou entenderem que para conseguirem algo que queriam teriam que se submeter ao olhar masculino e atender as fantasias nojentas deles para alcançar, muitas vezes, o mínimo de dignidade humana.

Isso nos mostra que, apesar de querermos ignorar a realidade e pensar que gênero são várias caixinhas nas quais escolhemos ser o que quisermos não existe nem na Barbielândia, quem dirá na realidade, na qual esse livro demonstra nitidamente que o gênero é hierárquico, e que existe de fato um oprimido e um opressor, sabemos quem é quem sem nem ter que nomear, só abrir um site de notícias agora mesmo na outra aba do seu celular ou pc e ver quem está morrendo e quem está matando, quem estupra e quem é estuprada e tudo isso é independente de como a pessoa se autodefina, mostrando que o gênero, acima de tudo, é um mecanismo de opressão contra as mulheres, designado no momento do nascimento com base no sexo da pessoa.

Achou exagero? Não se preocupe, o livro e a realidade estão repletos de exemplos, mas muitas vezes não queremos enxergar pra viver em uma realidade cor-de-rosa acreditando que existe escolha individual em um sistema de opressão ferrenho. Por isso mesmo tem uma passagem do livro que reli e reli e que diz muito sobre o que estamos falando:

— Não havia nenhum sinal de maus-tratos — disse ela.

— Tirei a roupa dele e examinei o seu corpo todo com bastante atenção. Não havia hematomas ou qualquer outro tipo de machucado.

— Não há nenhum homem na casa — interveio Kay.

Certeza que as defensoras e defensores de homens de plantão já estão logo bradando em suas cabeças: “MAS NEM TODO HOMEM!” . Nem todo homem, mas sempre um homem. O ponto aqui é entender vários conceitos e dentre eles a socialização.

Socialização é o mecanismo de ensinamento do gênero para as pessoas, mostrando que o gênero não é um espectro e sim hierárquico, por exemplo: meninas desde seu nascimento tem roupas desconfortáveis, usam rosa, vestidos, laços, brincam de casinha, e tem seus comportamentos reprendidos o tempo todo, pois sempre precisam ser bonita, meiga, dócil e obediente, já meninos desde o nascimento usam roupas confortáveis que não impede sua movimentação, são ensinados a serem violentos, inteligentes, de irem atrás do que querem e têm seus egos inflados por absolutamente nada demais o tempo inteiro. Mostrando que gênero não é uma escolha e sim um mecanismo de opressão exercido sobre mulheres.

Afinal, que escolha temos nós mulheres? Entre ser sexualizada por um homem só que chamaremos de marido ou por vários na vida pública? Entre ser estuprada na vida marital ou ser estuprada na balada? Obvio que esses casos não são exclusivos, porque da para sofrer os dois tipos de violência juntas. MAS, logicamente (ironia), se a gente não escolhesse mais ser mulher não passaríamos mais por nada disso não é mesmo? Até porque todo mundo sempre respeitou nossas escolhas.

O trecho que coloquei acima ilustra muito bem isso: o fato de não haver homens morando na casa define uma probabilidade muito menor da criança em questão estar sofrendo abusos ou maus trator, e por quê isso? Porque homens são ensinados, desde sempre, que todas pessoas ao seu redor são, na realidade, objetos para seu prazer, seja para bater, xingar ou estuprar.

A seguir farei uma análise detalhada de algumas personagens do livro e, logico, deixarei o melhor para o final.

Barry Fairbrother

Barry veio do Fields, morre logo no início, e sabemos quem ele foi pela memória de cada pessoa que continuou a vida após ele. Ele é o exemplo do que seria um cidadão que saiu da pobreza e miséria para conseguir tudo que sempre sonhou.

Acontece que, sendo homem, o pior que aconteceu com ele por vir de Fields foi ter passado pela pobreza e miséria, o que é horrível por si só, uma vez que sabemos que todo ser humano deveria ter os direitos básicos garantidos, porém, fiquei me perguntando, se Barry fosse menina, teria chegado até onde chegou?

E, para minha surpresa, JK conseguiu responder minha dúvida até o final do livro, que irei compartilhar mais a frente com vocês.

Barry era o típico sujeito que queria ser minimamente decente no mundo, mas, como na realidade, por falta de pessoas que fazem o mínimo e se importar com outras vidas, quem faz isso acaba por ser colocado em um pedestal e vangloriado.

Me pergunto se realmente as pessoas não refletem sobre como suas ações impactam os outros nem por um segundo, e na grande maioria das vezes chego na mesma resposta: não, não refletem sobre. E esse era o diferencial de Barry: ele pensava.

Gavin Hughes

Esse cara me deu muita preguiça enquanto eu tava lendo, confesso a vocês isso. A JK novamente conseguiu construir uma personagem tão boa e concisa que dava raiva toda hora que ele aparecia.

Novamente, QUEM que já não conheceu um cara assim? Um medíocre da vida que não sabe o que quer além do fato de querer o que não pode ter, pra ter a satisfação fútil da conquista e depois partir pra próxima caça.

Sabemos que Kay veio lá de Londres para ficar com Gavin e construir uma vida com ele. E, no momento em que ela fez isso, ele já não queria mais ela. Um covarde, não terminou com ela até o final do livro.

Se fosse só medíocre e covarde ainda que tava na média de homem, mas não, além de tudo, para ser o pacote completo do homem-coitadinho, ele ainda vilaniza a Kay a todo momento do livro.

“Quando começaram a ficar juntos, ele achou os seus beijos molhados e profundos muito eróticos; agora, achava-os levemente repulsivos. Demorou muito para chegar ao clímax, pois o horror que sentia pelo que havia começado estava sempre ameaçando atrapalhar a sua ereção. E até isso acabou conspirando contra ele: Kay pareceu considerar aquele vigor nada comum uma verdadeira demonstração de virtuosismo. Quando enfim terminaram, ela se aninhou bem junto dele, no escuro, e acariciou os seus cabelos por alguns instantes. Infeliz, Gavin ficou só olhando para o nada, consciente de que, depois de fazer tantos planos vagos para afrouxar aquelas amarras, tinha acabado por reforçá-las involuntariamente.”

Sério gente? Nesse instante a autora está dentro da cabeça de Gavin e é por isso que ele é o arquétipo do homem-coitadinho, o que ele espera que façamos? “Ó coitado do Gavin, ele tem uma pessoa que o ama e que deixou a vida inteira para trás para ficar com ele, que pena!

Ele vê as mulheres como descartáveis e ao mesmo tempo vilãs de sua história, é mais uma construção machista que temos instaurada na nossa sociedade: a falsa ideia de que a mulher controla o homem. Literalmente não conseguimos nem controlar a própria vida e o próprio corpo porque sempre tem um homem ou uma instituição nos falando ou impondo o que temos que fazer, mas com certeza temos poder o suficiente para mandar em um homem, até porque é super normal a gente ver o oprimido mandando no opressor ne? geralmente é assim que funciona (ironia)

Detalhe importante: você que está receoso/a com o que eu acabei de falar, só para para pensar se é o empregado que manda no patrão ou o patrão que manda no empregado, seria um absurdo imaginar que dentro do capitalismo o empregado tem poder real sobre quem o oprime, ou seja o patrão, então, por que quando colocamos no termo mulher e homem essa reflexão fica tão difícil?

É o típico homem que dá sinais confusos à mulher o tempo todo e depois reclama que ainda está com ela, como se não tivesse escolha, como se fosse um coitado que não soubesse falar não. Por favor, não se enganem: ele estava o tempo inteiro se aproveitando da Kay para nutrir seu ego e suas vontades carnais, para sempre ter alguém ali do ladinho dele enquanto ele não encontrava serviçal melhor.

Até que, encontrou né? Mary, a viúva. Mais uma vez ele quer algo que não pode ter só pelo prazer da conquista. Ele desumaniza mulheres o tempo inteiro na cabeça dele, ao idealizara-las como seres perfeitos e frágeis, até que conhece a real mulher que idealizou e não quer mais porque percebe que ela não vai fazer tudo que ele quer.

É o que acontece com Mary não é? Idealizou ela o tempo inteiro, sabia que era atraído por ela enquanto estava com Kay e não fazia questão de esconder isso. Quantas vezes não vimos homens deixando suas companheiras sozinhas em jantares ou encontros sociais para darem atenção a mais nova “carne” do lugar? Por que isso?

Porque os homens exercem poder também através da quantidade de troféus que colecionam, e, muitas vezes, as mulheres são os troféus. Ele não queria mostrar Kay ao mundo pois ela não estava de acordo com ser uma esposa troféu, ela pensa e fala o que pensa e luta pelo que quer, não é recatada e do lar que imaginamos como uma boa e dócil mulher não é mesmo? Mas Mary era, e é exatamente por isso que ele a queria tanto.

É o famoso nice guy, ele é super legal com você até o momento que você o rejeita, ai ele vira um escroto completo. To mentindo? só olhar o que ele fez com a Kay, e você pode estar pensando “mas em que momento a Kay rejeitou ele?” No momento em que ela não correspondeu às expectativas dele do que seria uma mulher ideal.

Enquanto que o mesmo aconteceu com Mary, a partir do momento em que ele entendeu que ela não o queria sexualmente ou romanticamente passou a odiar ela:

“— Acho você um homem tão bacana — disse ela, ofegante. — Mas eu não… Quer dizer, mesmo que eu…

— Não — disse ele bem alto, tentando abafar a voz dela. — Eu entendo. Ouça, é melhor eu ir embora. — Não precisa… Mas agora ele quase a odiava.

Tinha entendido o que ela estava tentando dizer: Mesmo que eu não estivesse sofrendo pela morte do meu marido, não ia querer você”

E logo depois, sabemos que ele ligou novamente pra Kay, demonstrando que realmente não importa a mulher que esteja com ele, desde que tenha uma para alimentar seu ego de merda. Foi especialmente delicioso ver ele ficando sozinho no final e ter que lidar com a própria miséria de caráter sozinho. Uma pena que com certeza isso é por tempo limitado, até ele achar um novo alvo.

Howard Mollison

Howard é o Manda-Chuva da cidade ou seja lá como você queira chamá-lo, é cidadão de bem, o defensor dos bons costumes, o cara dos direitos humanos para humanos direitos e por ai vai.

Sabemos também que Howard, como um bom defensor da moral, quer não só eliminar Fields da administração de Pagford, como também quer fechar Bellchapel, uma clínica de reabilitação para usuários de drogas, que está localizada em um barracão que antes costumava ser uma igreja, e no caso, Pagford é detentora do barracão em si.

Logo, o plano de Howard para recuperar os anos de glória de Pagford está nítido desde o início: fechar Bellchapel e tirar Fields da responsabilidade de Pagford. E, como na realidade, tudo deu certo para ele, ou quase tudo.

Importante lembrar da arrogância de Howard, que acreditava saber até mesmo mais que a médica do vilarejo, ele é um “interrompedor” nato, ainda mais se forem mulheres falando. Sabendo mais que a própria médica, ele teima que seu peso não tem a ver com todas suas complicações e doenças, defende seu estilo de vida extremamente egoísta e tenta fazer-se de certo até o final, quando tem outro acidente cardiovascular.

Vale lembrar também, que, como um cidadão de bem clássico, ele, além de aporofóbico, ainda é machista, racista e homofóbico. Um combo completo. Quem não iria querer esse partidão ne? (ironia).

“…conseguia dormir com medo de que o seu coração vacilasse e parasse. Toda vez que via Vikram Jawanda, lembrava-se de que aqueles dedos escuros e longos tinham tocado o coração que batia no seu peito aberto. A cordialidade com que envolvia cada um desses encontros era a sua maneira de afastar o terror instintivo e primitivo.”

Além desses traços de personalidade, se é assim que posso chamar, Howard também tinha os bons costumes da moral cristã, que ele tanto defendia não é mesmo? Como trair a esposa por anos com a socia dele, ou mesmo não acolher ou amar a filha, que além de mulher, é lésbica ou assediar/abusar constantemente de sua nora com tapas em sua bunda.

Para Howard Mollinson as pessoas ao redor dele são assim: meros peões, ou melhor, serviçais de suas vontades, e seu filho era seu projeto de si mesmo, um narciso clássico: o filho era bom porque era exemplo do pai. (Sabemos olhando de fora, a podridão dos dois).

Seu ataque cardíaco foi uma bela colheita do que ele plantou a vida inteira e veio logo após sua realização de passar a decisão de que o conselho era contra manter Fields em Pagford, a vitória de seu filho, e o fato de sua esposa ter descoberto que ele a traía a anos, mas não se enganem, ele não ficou preocupado em perder a esposa, ficou preocupado em perder sua empregada doméstica e secretária, como ele poderia se virar sozinho sem ela não é? Patético.

Obbo

Sei que falo isso de todos os homens da história, mas o Obbo e mais um homem em especial, se eu pudesse passar em cima deles com um trator 50 vezes eu passaria.

Mais uma vez, mais um exemplo de um homem que usa as mulheres ao seu redor para satisfazer suas vontades e quando não as quer mais as descarta.

O Obbo, assim como os outros caras que estupram, são os filhos saudáveis do patriarcado e não monstros. Porque estupro não tem a ver com sexo e sim com poder, é uma ferramenta de guerra usada contra as mulheres todas as horas em todo o mundo de forma massiva.

Então todos os homens do mundo estão doentes? Esse é um pensamento para fugir da realidade, justamente pela realidade doer tanto. Sabemos que os homens são ensinados desde cedo a estuprarem e a “como tratar uma mulher na cama”. Alguns podem esbravejar o quanto quiserem, mas não há diferença no que Obbo fez com Krystal do que vemos nas telas de pornografia.

Por que ele fez isso? Porque ele pode. Para mostrar que ele pode. E para mostrar que nada, nem ninguém vai parar ele de ter o que ele quer. Leiam “Amar para Sobreviver” da Dee L. R. Graham e entendam o porquê e como os homens perpetuam a cultura do estupro, e até o porque que eles usam termos como “f*der” ou “comer”.

Obbo é um traficantes de drogas que faz de tudo para manter Terri em seu vício de heroína e se aproveita disso usando a mulher para tudo: como depósito do tráfico, como dependente química e como escrava sexual.

Fica muito nítido no livro, apesar de doloroso, como os homens enxergam as mulheres na nossa sociedade: como um depósito de p*rra. Como uma boneca sexual que podem “f*der” até “quebrar no meio” (cantor Biel) ou qualquer coisa parecida, para depois “abandonar na rua” (música Surubinha de Leve).

Acho engraçado que quando vemos um estupro no livro ficamos chocados mas quando as musicas cantam estupro o tempo inteiro ou os livros romantizam estupro como “50 tons de cinza” aí não nos damos conta que estamos falando do mesmo estupro. Nossa visão ficou com uma névoa tão espessa a ponto de não conseguirmos fazer o elo e entender que é a mesma coisa?

Além de estuprador é pedófilo né, o que geralmente está tudo junto no combo “homem comum”. Ele estupra Krystal logo depois dela defender a mãe para conseguir ficar com o irmãozinho. Estupro nunca foi sobre sexo, foi sempre sobre poder.

Alguns também podem achar exagerado como a JK narra os estupros do livro: não acho. Estou farta de ver estupros sendo narrados de forma romantizada o tempo INTEIRO na mídia para justificar esses atos, e ai quando uma mulher tem a coragem de mostrar esse ato como acontece na realidade é demais para a gente digerir? Se você não gostou do que leu no livro, fique irritada/o com a realidade e não com a mensageira.

O requinte mais que cruel de Obbo é sua última aparição: trancado em um quarto sem camisa junto com Robbie, enquanto a dúvida (ou a certeza) de que ele abusara do menino de 3 anos ecoa na mente de todos que leem.

Andrew Price

Era pra ser o cara mais de boa do inferno todo que é o livro, mas ser o menos pior vivo não significa ser bom. Até porque, pra variar, no começo do livro sua visão sobre mulheres é tentar incessantemente coisas que elas não querem como modo de conquista para depois se gabar para Bola.

“Meio escondidos pela velha cortina do palco, os dois ficaram se agarrando, e Andrew conseguiu enfiar a língua na boca da garota. As suas mãos chegaram até a tira do sutiã e só não foram adiante porque ela ficou o tempo todo tentando impedi-lo de fazer o que pretendia. O que mais o estimulou foi saber que, em algum lugar ali por perto, no escuro, Bola estava indo mais longe.”

Andrew só se interessa por Gaia de forma sexualizada, ver o facebook da menina é sua válvula de escape para a família abusiva dele.

“Gaia entrou no ônibus escolar pela primeira vez e ele sentiu um interesse agudo por aquela garota em particular. Era um sentimento bem diferente daquele fascínio amplo e impessoal que vinha se intensificando com o passar dos anos, todo voltado para o surgimento de seios e a visão de sutiãs aparecendo por baixo da blusa branca do uniforme, e para a curiosidade meio aflitiva por saber o que a menstruação efetivamente acarretava”

Andrew é o famoso homem-morno. Não se engane pensando que só porque ele lida com a opressão de um lar abusivo todos os dias que ele terá mais empatia por aqueles que sofrem: anda com quem não presta, ri “por educação” do bullying que seu amigo adora fazer, sexualiza mulheres e assiste pornografia.

Descrito como um cara bem mediano, Andrew sofre horrores nas mãos do pai e o que acho bem interessante dessa personagem é ver como as vítimas de relacionamentos abusivos dentro da família se sentem: mesmo fazendo o que acha que é correto em um ato de vingança ele se culpa a todo momento.

Também existe a dualidade entre ver o pai todos os dias sendo violento e, durante a infância, pensar na mãe totalmente boa e no pai totalmente mal, enquanto que na adolescência, sem as névoas da imaginação da infância, entende e se frusta com o fato da mãe todos os dias continuar junto com o pai, além de protegê-lo a todo custo, bem “Amar para sobreviver”.

Vemos sua transformação ao longo do romance, mesmo que sutil, ele consegue reagir contra o pai, primeiramente pela postagem anônima que quebra o paradigma das famílias abusivas de achar que qualquer passo em falso vai acabar com toda a família. Uma vez tendo coragem e entendendo que a culpa do abuso que sua família sofre não é dele, até porque ele também é vítima do abuso do pai, consegue se colocar no meio do pai e da mãe e mostrar que estava disposto a enfrentar o pai até quando fosse necessário. Com essas ações conseguiu cada vez mais fazer o que queria: aproximar-se de Gaia e, ao perceber que seu melhor amigo também era podre, conseguir também pouco a pouco afastar ele de sua vida, chegando ao ápice de sua evolução que foi entregar Bola para a própria mãe sem a devoção e obediência de costume com que ele tinha por Bola.

Vale fazer uma observação aqui sobre o irmão de Andrew, Paul, foi uma personagem secundária, mas marcante. Presente ali para mostrar alguns dos maus-tratos sofridos por uma criança em lar abusivo: a todo momento sendo chamado de Paulinha, mostrando a personalidade misógina e homofóbica do pai, para dizer que a criança não atendia aos requisitos da masculinidade exigidos pelo patriarca da família. Sobre ele não há muito o que falar, apenas tristeza e pesar, tendo em vista que os abusos eram tão frequentes que a autora deixa uma dica do porquê seu nariz sangrava tanto: violência física vinda de seu pai poderia, como em muitos casos, gerar danos cerebrais por tanta pancadas repetidas.

Miles Mollison

Típico filhinho-de-papai, vemos Miles se transformar em Howard pouco a pouco ao longo do romance. Absolutamente tudo gira ao redor do seu próprio umbigo e ele precisa ver a esposa dele agarrando um adolescente para só ai se dar conta de que ela estava descontente, tudo isso por quê?

Porque ele tem a maravilhosa mania de ouvir só o pai e a mãe dele, sua esposa demonstrava sinais de descontentamento a muito tempo, tanto verbais quanto não verbais, havia tentado sentar com ele para conversar, mas mesmo assim ele simplesmente não se importava.

Outro ponto interessante a se destacar é a ideia deturpada do que é e o que não é estupro. Se a sua esposa precisa estar bêbada para conseguir ter uma relação sexual com você isso não chama consentimento isso chama estupro. Não, não é porque “mulheres precisam de mais incentivo” ou qualquer coisa do tipo, mulheres precisam ser ouvidas e se sentirem confortáveis com quem estão para, assim, conseguirem ter prazer.

O estupro marital — e o estupro como um todo né — é tão ignorado na nossa sociedade que passamos por essa parte do livro sem achar nada demais, já colocamos na nossa cabeça que é normal ou que é esperado de uma mulher que ela faça sexo com seu marido, como se isso fosse um dever dela dentro do casamento, como se não pudesse falar não, e muitas vezes não da para falar não mesmo! Até porque sabemos muito bem que pelas síndromes de sol dos homens que se acham no meio da via láctea eles vão, de alguma forma, descontar isso em nós, então fica muito mais maleável da mulher passar pela violência calada/bêbada do que falar como se sente (até porque eles nunca ouvem como nos sentimos) e ai o cara ficar mais bravo ainda e “descontar” a raiva no sexo, ou seja, mais violência ainda.

Ser mulher na nossa sociedade é sempre pensar em qual violência você vai sofrer no dia de hoje, ainda, infelizmente, não há espaço no mundo para que as mulheres sejam vistas como seres humanos. Até quando vamos passar a mão na cabeça desses homens que acham tudo bem tr*sarem com mulheres bêbadas ou sem condições?

“…Gostaria de receber algum apoio, algum conforto naquela noite. E estava excitado também. Já fazia muito tempo. Parando para pensar, achou que havia sido na noite anterior à morte de Barry Fairbrother. Ela estava um pouco bêbada. Mas, nos últimos tempos, ela sempre precisava estar um pouco bêbada.”

Colin “Pombinho” Wall

Confesso que fiquei um pouco confusa com essa personagem, de início achei que ele era super errado com o filho dele, mas depois, conhecendo o filho, passei a torcer para que ele expulsasse o filho do planeta terra.

Acho que conseguimos ver bastante sobre a ansiedade nele, sinceramente parece um cachorro correndo atrás do próprio rabo o livro inteiro e não se importa com o que acontece ao redor dele.

Mais uma vez, cansativamente, mais um homem que não ouve sua esposa. Colin acha que é dever da esposa servir de psicóloga para ele e quando ela não o faz ele fica chocado, além de esposa precisa ser uma mãe. Não se enganem, não é como se tivesse problema em ela o ajudar a escolher a cor do papel da candidatura ou algo do tipo, o problema é que, em nenhum momento do livro vemos isso acontecer de volta, ele não a ajuda em absolutamente nada e ainda fica perplexo quando ela não quer o acolher para viver sua vida em paz por 5 minutos até ele ter outro surto de ansiedade.

Sobre o toque dele foi o que fiquei extremamente confusa, ele ter medo de assediar alguém e isso se tornar algo patológico talvez tenha sido colocado ali para mostrar que o restante dos homens são só homens comuns que abusam, assediam e estupram e ele sim seria o caso patológico — e mesmo assim é um dos únicos que não abusa de ninguém sexualmente no livro- ironia não?

Stuart “Bola” Wall

Eis que chegamos na personagem que poderia tranquilamente passar um trator por cima.

Bola sempre teve tudo que quis, do jeito que quis. E nem é meme. O cara é simplesmente o mais privilegiado do rolê inteiro e fica caçando coisa pra falar que é oprimido com a filosofia pífia dele.

“Recentemente, tinha decidido que questionar os seus próprios motivos era uma forma de inautenticidade; um aperfeiçoamento da sua filosofia, o que a tornava, de modo geral, mais fácil de ser seguida.”

Bola representa aqueles caras que tem tudo na vida e fingem ser algo só pra passar o tempo, no caso dele, um filósofo, e pra variar, sua filosofia sempre servia à seus propósitos. Bem igual sempre acontece na história, só ver exemplos de pensadores super famosos que só ficaram famosos por defender os ideais que o sistema capitalista e/ou patriarcal e racista queriam que fosse defendido, como o fardo do homem branco, Aristóteles defendendo a escravidão e o espancamento de mulheres e por ai vai.

Quando descobrimos ao final que Bola também foi adotado e, possivelmente, de um lar abusivo — tendo em vista que tinha forte probabilidade dele ser vítima de incesto- notamos algo muito significativo: Bola tem a vida que Krystal e Robbie poderiam ter tido caso tivessem sido adotados, isso destrói a ideia de que uma criança que sofre uma infância violenta e negligente tem que ficar com a família e tentar a todo custo ficar com ela por ser família de sangue. E isso dói, e dói muito.

A autora ainda traz uma crítica ferrenha à pornografia, pois fica bem nítida as ações de Stuart durante o livro: ele assiste à pornografia para aprender a ter relações sexuais, mas a pornografia nunca foi sobre ensinar como fazer s*xo e sim como estuprar, e é o que ele aprende e faz logo depois com Krystal.

“Juntos, os dois já tinham navegado por todos os sites pornô gratuitos que conseguiram encontrar: vulvas depiladas, lábios rosados bem afastados para mostrar aberturas escuras e profundas, bundas arreganhadas revelando o buraquinho do ânus, bocas pintadíssimas, sêmen escorrendo.”

O corte que a autora faz sobre a pornografia diz muito: não são mulheres na tela, e sim, pedaços de carne prontas para consumo. Não são mulheres, e sim, partes do corpo que podem ser usadas para serem f*didas pelos homens, entendendo que o “s*xo” que os homens aprendem não é sobre amor, e sim sobre poder, dominação e humilhação.

“— Meter lá dentro é mais difícil do que eu imaginava — disse o garoto.

Andrew estava fascinado, com vontade de rir, mas também com medo de perder qualquer detalhe que o amigo pudesse lhe fornecer.

— Ela tava mais molhada enquanto eu só tava enfiando os dedos. Uma risada subiu pelo peito de Andrew como um arroto, mas morreu ali mesmo.

— Tem que fazer muita força para conseguir entrar direito. É mais apertado do que eu imaginava.”

Novamente: não é porque não foi um clássico tipo de estupro no meio da rua de noite que deixa de ser estupro. Estamos olhando a perspectiva do que aconteceu do lado do homem, então é obvio que não vai haver relato de dor, mas imaginem que se precisa fazer FORÇA e MUITA então é porque a mulher não está confortável o suficiente para ter aquela relação — e quem estaria confortável para fazer isso em um banheiro publico além de um cara desesperado pra usar uma mulher?

E note que Bola acha normal tudo isso e que uma relação sexual é assim mesmo, quando sabemos que não é para ser assim. As falas dele inclusive são pornificadas falando toda hora que é bem “apertado” e tudo que vemos na vida real, sendo que na realidade é só dor e desconforto da outra parte que está tendo a relação.

O que temos que entender é que o s*xo heterossexual é muito próximo ao estupro ou é um estupro, justamente porque pornografia ensina meninos a estuprarem enquanto que a socialização feminina ensina as meninas a se calarem, logo, no que supostamente seria uma relação sexual na visão do homem é só isso muitas vezes enquanto que está sendo um estupro, do qual a mulher não pode nem reclamar porque foi ensinada que s*xo é para doer mesmo.

“Krystal estava mais seca que da outra vez, e Bola, decidido a levar adiante o que tinha vindo fazer ali, fez força para penetrar nela.”

Nitidamente da para ver que Bola não se importa com ninguém além dele mesmo, levar uma menina para tr*nsar no cemitério chapado e depois de fazer isso desaparecer enquanto vê que ela está transtornada por ele ter feito isso com ela ao lado do túmulo de quem era o treinador de remo dela é crucial para entender nível no qual esse homem está disposto a chegar para ter o que quer.

E falando disso, nada se compara ao fato dele ter a pseudodúvida dele sobre mais uma vez usar Krystal para chegar aos seus meios mais nojentos, e , dessa vez, era engravidá-la para desafiar o pai, é esse o nível de egocentrismo desse homem: fazer um bebê pelo simples fato de contrariar o pai. Isso não é filosofia de vida, isso é só ser mimado.

O fim dele foi pouco, por mim poderia tranquilamente ter morrido, mas JK é ferrenha em retratar a realidade de forma fidedigna, e, logicamente, ele sai ileso de todos seus atos, não indo nem ao enterro da garota que acabara de “f*der”, porque é assim que nós mulheres somos vistas na sociedade, como objetos sexuais para serem usados e descartados.

Não há arrependimento para Bola Wall, a vida de uma criança de 4 anos e de uma criança de 16 não importam, mesmo que ele tenha culpa nas duas mortes, porque o que importa, no final das contas, de acordo com ele, é ser autêntico, mas nem isso ele consegue ser, porque é um retrato cirúrgico de todo cara badboy que conhecemos. Patético.

Robbie Weedon

Robbie é o que acontece com todas as crianças do mundo que não possuem suporte necessário. Não, não foi um final exagerado, foi a realidade batendo na nossa cara.

Todos os dias saímos de casa e achamos que está tudo bem em ignorar crianças em situações precárias na rua, nos contamos mentirinhas para fingir que a situação desses pequenos não é tão ruim quanto parece, e assim que acontece coisas horríveis à eles sempre temos quem culpar, mas nunca nós mesmos, nós, como sociedade, não estamos preparados para entender que o pessoal é político.

Tudo que fazemos no âmbito privado reverbera no âmbito público e vice-versa, não são duas esferas separadas, e sim duas esferas que se interligam para formar a trama da vida de cada um de nós e de todos como sociedade. Ignorar isso não vai mudar a realidade, só vai postergar até que algo horrível aconteça.

E é incrível como nossa sociedade repete sempre os mesmos erros, uma criança precisa morrer para que as pessoas comecem a pensar sobre o que ela estava enfrentando. Robbie está ai para mostrar para todos nós o que somos na realidade no âmbito social: falhos e negligentes, encarando o próprio umbigo e culpando quem não tem culpa — tipo a Krystal.

Mary Fairbrother

A viúva. Basicamente esse é seu papel no livro: aparece de vez em quando ou pra chorar ou pra falar mal da Krystal.

Acho que o que aprendi com Mary foi que muitas vezes, novamente, por trás de um homem que faz tudo tem uma mulher sem companhia e sobrecarregada. Porém, acho injusto a culpa que ela coloca em Krystal, afinal, era seu marido, e não Krystal que estava envolvido em absolutamente tudo na cidade.

A interação com Gavin foi interessante pois basicamente o fora dela para ele foi bem direto. Ela foi pega de surpresa pela interação romântica/sexual de Gavin, inocentemente acreditou que um homem se compadeceria pela dor de uma mulher sem ter segundas intenções, que fofa.

Também gostei da dualidade de como as outras personagens do romance descreviam Mary e como de fato ela é. Por exemplo, em diversos trechos do livros Mary foi descrita como uma criatura frágil, dócil e facilmente domada para falar a verdade. Mas, por dentro ela estava cheia de ódio, da morte de Barry, da falta de atenção dele para a família, do excesso de atenção dele para a comunidade, da relação dele com Krystal e do Fields como um todo, tanto que pede para o filho jogar fora o jornal cujo ultimo artigo de Barry estava lá.

“— Diria que eu tenho com quem contar — prosseguiu Mary. Para o espanto de Gavin, havia raiva naquela voz que ele sempre acreditou ser apenas gentil.

— É, ele diria: “Você tem a sua família, os seus amigos e as crianças para confortá-la, mas Krystal” — a voz de Mary foi ficando mais alta — , “Krystal não tem ninguém para tomar conta dela”. Você sabe o que ele fez no nosso aniversário de casamento?

— Não — respondeu Gavin outra vez.

— Ficou escrevendo um artigo para o jornal da cidade a respeito de Krystal. De Krystal e de Fields. Esse maldito Fields. Tomara que eu nunca mais precise ouvir falar desse lugar. Já não era sem tempo. Quero outro gim. Ainda não bebi o bastante.”

Shirley Mollison

Infelizmente, a pessoa que todo mundo sabe que é traída mas ninguém avisa ela por medo de sua reação ou achar que ela já sabe e está tudo bem com isso.

Nós, mulheres, somos ensinadas desde cedo a ignorar nossa intuição e acreditar nas palavras de um homem, porque ele vai saber melhor como pensar, como agir, o que falar e por ai vai. Mas, isso é uma mentira que nos contaram para que a gente ficasse calada diante de coisas que nossa intuição diz estarem erradas.

É o exemplo de Shirley, que o livro inteiro rivaliza com Maureen, tendo uma raiva inexplicável dela — que sabemos que pode também ser rivalidade feminina, tendo em vista que Maureen tem uma carreira solo e Shirley é resumida em ser esposa de Howard. Mas, que dessa vez é a intuição de Shirley a avisando que desde o início havia algo de errado.

Seu choque quando soube da traição de Howard, logo depois de uma noite extremamente desagradável ao ver que ser serva doméstica, sexual e psicológica para Howard não bastavam, pois ele estava no palco cantando com Maureen e não com ela, a faz querer matar o marido (confesso que tava torcendo pra isso acontecer).

Porém, como a socialização feminina abrange todas nós mulheres, ela fica desesperada ao vê-lo ter um acidente cardiovascular (que de acidente não teve nada, tava bem nítido que isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde). De qualquer forma, acredito que com o marido acamado ela terá mais chance de ser ela mesma e viver a vida por si própria do que com ele a pleno vapor traindo ela incessantemente enquanto estraga todo senso de comunidade que encontra em seu caminho.

Patricia ‘Pat’ Mollison

É quando ela aparece que eu percebo onde estão as pessoas decentes nessa história toda: bem longe de todos.

Patrícia é lésbica e representa a lucidez máxima do livro, sabe que o pai trai a mãe desde sempre, e, pela homofobia e machismo da família de “bons costumes” se afasta deles, pois, mesmo ganhando mais do que seu irmão, em uma carreira melhor, ela não é valorizada, pois é mulher e lésbica.

E é incrível como a socialização não falha, porque Shirley não para de pensar ou verbalizar que a filha deveria seguir mais a feminilidade, que deveria usar mais saias, que deveria sorrir mais ou qualquer coisa que nós já estamos cansadas de ouvir daquelas e daqueles que tentam incessantemente nos fazer engolir o patriarcado.

“— Belo carro — disse Bola, observando o BMW.

— Verdade — replicou Patrícia.

— É novo. Ganho duas vezes mais do que meu irmão — prosseguiu ela. — Mas Miles é o Menino Jesus, o Messias… Conselheiro Mollison Segundo… de Pagford.”

Patrícia fez o que qualquer pessoa na situação dela no meio de um bando de gente tóxica deveria fazer: ir embora e ser feliz sozinha, não é porque é de sangue que é sua família.

Samantha Mollison

Confesso que ria horrores com as falas de Samantha, pra mim com certeza o alívio cômico do livro.

Abusada pelo sogro, mesmo que não enxergasse isso como abuso, mesmo que enxergasse os atos dele como “pelo menos estarei irritando Shirley” não deixa de ser abuso ter uma parte do seu corpo tocada de forma sexualizada pelo seu próprio sogro, bem incestuoso para que fique nítido.

“O sogro soltou uma sonora gargalhada, e Sam podia jurar que ele teria lhe dado um tapinha na bunda se não estivesse com as duas mãos ocupadas. Tolerava aqueles tapas e apertões que o sogro lhe dava e que, a seu ver, eram apenas o exibicionismo inofensivo de um homem que tinha engordado além da conta e que já estava velho demais para fazer qualquer outra coisa.”

Suas tentativas de justificar os atos do sogro são reflexos da nossa socialização feminina, na qual sempre imaginamos formas de infantilizar homens e culpabilizar mulheres, tentando tampar os atos nojentos dos homens como coisas comuns que todo homem faz por ser homem, isso não é desculpa para absolutamente nada.

Já falamos também do estupro marital que ela sofria então não me estenderei mais nesse tópico aqui. Fica bem nítido a sua frustação com a gravidez, ver seus planos para o futuro irem embora e ela se tornar nada mais nada menos do que a esposa de um cara medíocre é de tirar sua paz — e de quem não tiraria não é mesmo?

Sua loja de sutiãs é o tempo todo diminuída por todos os homens ao redor dela, como se ela trabalhar ou ter um negócio próprio, se não fosse para servir um homem de alguma forma, não era o suficiente e nem visto como um trabalho propriamente digno.

Ignorada pelo marido, pela sociedade, pelo sogro e sogra, ela bebe o tempo inteiro para tentar mergulhar em outras realidades, seja com astros pop ou se jogando em cima de adolescentes, Samantha quer ser vista por alguém o livro inteiro.

A transformação da personagem e a personagem em si é uma das que eu mais gosto do livro, porque ela luta o livro inteiro para ter uma indepência e para ter suas opiniões ouvidas e não só bajular o marido e o sogro como todos do circulo social gostam de fazer.

No final, ela será a próxima membra do conselho que seguirá as ideias de Barry, ler a notícia da morte de Krystal e Robbie foi o que acendeu a chama de justiça social na personagem e ela tem ânimo para fazer isso, mesmo que vá contra os ideais de seu marido. Fiquei muito feliz em ver que alguém continuaria lutando no conselho pela dignidade humana, e fico mais feliz ainda sabendo que é uma mulher que fará isso.

Terri Weedon

Sinceramente muito bem ilustrada pela autora, ao mesmo tempo que entendemos que teve uma infância difícil cheia de abusos e por isso é dependente química, ficamos com raiva por ela não fazer nada quanto aos abusos que os filhos passam e a negligência que foi as suas infâncias.

Não descobri até agora quem era o homem morto no banheiro, sinto um misto de ódio e pena por Terri, não acho que o que ela passou na vida justifique o que ela fez com os filhos, como o fato de desacreditar no estupro de Krystal por Obbo.

O livro termina falando que ninguém olhou para Terri no enterro, e sinceramente, talvez uma metáfora para a sociedade não querendo encarar os problemas bem na sua cara, ou a materialização do ódio geral, mas uma coisa é certa: ela não tinha condições para cuidar dos filhos, e é melhor eles separados em lares adotivos do que os dois mortos.

Tessa Wall

Tessa é uma das minhas personagens preferidas também, porque ela pensa muito criticamente mas nunca é valorizada então prefere não externalizar o que pensou.

Gosto MUITO da evolução da personagem que vai daquela esposa extremamente maternal do marido para alguém que também quer fazer suas próprias coisas e externalizar sua opinião, que a propósito é extremamente sensata, além da transformação da mãe que mima o filho a todo custo para a mãe que joga na cara do filho que ele pode ter sido fruto de um incesto, e depois disso ignora Bola para ir até o velório de Krystal e Robbie.

“— A sua mãe biológica — principiou Tessa, olhando-o de um jeito que ele nunca tinha visto antes, sem pena ou bondade — tinha quatorze anos. Pelo que nos disseram, achamos que era uma garota de classe média, muito inteligente. Ela se recusou terminantemente a dizer quem era o seu pai. Ninguém sabia se ela estava tentando proteger um namorado menor de idade ou se era coisa pior. Ficamos sabendo de tudo isso por garantia, no caso de você apresentar algum distúrbio mental ou físico. No caso — prosseguiu ela, falando com toda a clareza, como uma professora que dá ênfase à parte da matéria que vai cair na prova — de você ser o resultado de um incesto. Bola olhou para o outro lado. Preferia mil vezes ter levado um tiro.”

Assim como Samantha, ela teve que aprender a se acolher sozinha pois seu marido estava muito ocupado fazendo outra coisa, nesse caso com crises de ansiedade ou prestando atenção no que Kay tinha a falar.

Kay Bawden

Kay, coitada, fez o que fomos ensinadas desde pequena a fazer: largar tudo em busca de um grande amor, acontece que muitas vezes isso é uma fantasia que só existe na nossa cabeça, e o grande amor não passa de um cara medíocre que só quer s*xo.

Vemos o complexo de Cinderela desfazer-se diante de seus olhos, pensando que ao juntar-se com Gavin iria ter proteção, carinho, amor, dentre outras coisas, enganou-se feio. Gavin, como sabemos, só a usava como um calção emocional pra inflar seu próprio ego quando precisasse.

É muito doloroso ver o relacionamento dela com Gavin, uma vez que ele nitidamente não quer estar com ela e ela continua determinada a entender as desculpas que ele dá, quantos relacionamentos que conhecemos que não são assim?

Kay gosta de viver em contos de fadas, e mais um que ela caiu foi a falácia de que família unida é mais feliz do que separada. Pois bem, logicamente não dava para prever o fim de Krystal e Robbie, mas se o protocolo tivesse sido seguido desde o início, os dois estariam vivos em lares adotivos, talvez não Krystal mas Robbie sim, e temos que entender que o amor entre os irmãos era extremamente real, separados fisicamente eles ainda continuariam juntos emocionalmente, pois conhecendo Krystal, ela daria um jeito de ver o irmão que mais parece filho.

Mesmo assim entendo que é uma situação extremamente dolorosa, na qual tentamos de TUDO para manter a família unida e tentar melhorar a dinâmica e o ambiente para todos, afinal é esse o papel da agente social. Mas fico imaginando a dor que ela sentiu ao encontrar Krystal morta no banheiro logo depois de saber da morte de Robbie. Tudo nesse livro que relaciona Krystal e Robbie parece ser uma história lamentável.

Gaia Bawden

Gaia, assim como sua mãe, gosta de viver em contos de fadas, ao acreditar que seu amorzinho de ensino médio não a trocaria por outra garota no momento seguinte que ela fosse embora de Londres.

Custamos a acreditar que os homens nos enxergam, na melhor das hipóteses, apenas como um par de olhos bonitos que da pra usar e depois trocar.

Assim como a mãe, ela também tem o caráter virado para a justiça, pois desde o início quer defender sua amiga do bullying praticado por Bola. E, falando em Bola, Gaia também é abusada por ele enquanto estava extremamente bêbada, provando mais uma vez que a maioria das interações entre homes e mulheres são para homens exercerem poder sobre as mulheres.

Parminder Jawanda

Parminder é mulher resiliente, uma doutora ilustre, e uma mãe abusiva. Para mim pelo menos dá um nó na cabeça todas essas definições juntas, e a autora faz isso ao longo do livro todo: mostrar para nós que nada é branco e preto apenas, que as pessoas podem ser admiráveis em alguns aspectos e desprezíveis em outros.

Se eu pudesse definir Parminder em uma palavra seria estresse. O livro inteiro ela é estressada com absolutamente tudo, e depois notamos o porquê: está de luto por ter perdido um amor. Que fico nítido aqui que quando falo de seu estresse estou falando do fato dela descontar a raiva em outras pessoas como na filha dela com cobranças excessivas e rebaixando a menina a todo momento que ela pode.

Já o que ela fez no conselho foi admirável, admito que dei umas boas gargalhadas lendo, pois Howard ouviu o que mereceu. Inclusive gostei bastante das suas indagações ao final do livro, do porquê ela se ocupava tanto a todo momento e não aproveitava para viver a vida.

O seu marido basicamente estava lá como o marido troféu, só apareceu pra ser bonito e desejado por outras mulheres e ausente na vida da família. Não é a toa que ela se apaixonou por Barry, pois ele era presente na vida da comunidade e por consequência, na vida dela.

A relação com a filha me doeu muito o tempo inteiro, uma vez que sabemos que a relação mãe e filha é muito complicada na nossa cultura patriarcal, na qual existe a hostilidade horizontal que é quando membros oprimidos da mesma classe descontam os abusos do opressor entre si.

E não poderia deixar de lembrar do caráter nobre de financiar o funeral de Krystal e Robbie, atendendo ao pedido da filha, mostrando que a relação delas, de agora para frente pode melhorar.

Sukhvinder Jawanda

Sukhvinder é uma garota que sofre bullying o livro inteiro, tem sua força a toda hora testada, e mesmo assim continua com caráter íntegro.

Ela é exemplo de que inteligência não é sinônimo de decoreba, e de que o caráter da pessoa vale muito mais do que qualquer coisa. É extremamente triste ver a automutilação da menina enquanto que sua família não fazia ideia do que ela passava, e que, mesmo tentando se vingar da mãe, era considerada tão burra que não poderia ter feito a postagem.

Seu final é justamente merecido, finalmente ela recebe o reconhecimento pela sua personalidade e pelo seu caráter, ao demonstrar a bravura de tentar salvar Robbie e por escolher o caixão de sua colega, Krystal. Também é muito triste ver que o vínculo entre elas foi quebrado assim que Barry morreu, e que o remo unia as duas em uma harmonia silenciosa.

Krystal Weedon

Termino minha análise por essa personagem, que na realidade, foi quem me inspirou a escrevê-la em primeiro lugar. Porque estamos acostumados a julgar mulheres no primeiro segundo e por tudo que fazem, sem querer entender que muitas vezes essas “mulheres” são apenas crianças altamente sexualizadas e responsabilizadas pela sociedade.

Logo no início do livro as ações de Krystal foram uma série de gatilhos para mim, pois, o que fica explicado depois continua sendo verdade: crianças e adolescentes só reproduzem os atos que veem, e se estão reproduzindo atos sexuais de maneira precoce é reflexo de abusos dentro de casa.

Mesmo ela não tendo sido estuprada quando bebê, Krystal tem vida sexual iniciada muito cedo e constantemente usa o sexo (ou os abusos no caso) como forma de tentar conseguir conexão com alguém, de maneira, para os homens, o mesmo ato era apenas um ato de poder.

Sua situação, assim como a de Robbie, é de partir o coração de qualquer pessoa, seus devaneios antes do “ato sexual”, imaginando um lugar melhor ou pensando em problemas que terá que enfrentar depois só demonstra o caráter do abuso que sofre: em um ato sexual de fato consentido, as duas partes estão presentes na ação de forma consciente e prazerosa.

Em todas as ações de caráter sexual que Krystal sofre elas nunca ocorrem do ponto de vista dela e sim, sempre do cara que está com ela, a não ser do estupro de Obbo. Note que nesse ultimo caso ela sabia que não queria e que era errado o que ele estava fazendo. Enquanto que nos outros ela simplesmente saía de cena e virava um corpo para Bola, um mero objeto a ser usado e descartado: um ser em profunda dissociação para suportar o preço de tentar alguma conexão.

Meu coração doía ao ver a falta de instrução da garota e a culpabilização constante que ela sofria de todos de Pagford, afinal de contas, quem sempre dormiu e acordou em uma cama quentinha com os míseros privilégios que o capitalismo oferece a quem tem dinheiro não consegue e nem tenta entender a linha de raciocínio daquelas mulheres privadas financeiramente precisam utilizar para sobreviver.

É extremamente triste que a única saída que ela enxergava era ser uma incubadora de um bebê vindo de um garoto de classe média metido a desafiar os papais como forma de mostrar rebeldia. É literalmente isso, tiram todas as chances de vida dignas das mulheres e depois as julgam por tentar sobreviver do modo que conseguem.

A relação do esporte com crianças de baixa renda e/ou estado de vulnerabilidade também é comprovadamente benéfica e mostrada no livro, quando seus momentos de glória residiam no remo e uma possibilidade de vida digna, sem ter que usar seu próprio órgão genital para algo, enquanto que a imagem passada é muito forte de que para os homens as mulheres são meros meios para o g*zo.

Encerro minha análise aqui, falando que nem todos conseguem o final feliz de Barry Fairbrother, ao morrer em uma casa confortável com vida financeira estável e sem sofrimento, nem todos não, nenhumA mulher consegue essa façanha sem ter que ser antes humilhada e prostituída.

O que dilacerou meu coração foi saber que esse livro não é sobre a morte de Barry, e sim sobre o que aconteceria com Barry se ele tivesse nascido mulher, pois Krystal é exatamente essa representação.

Para nós, mulheres, não basta boa vontade para subir na vida, não existe privilégio em nascer mulher, sempre esbarramos com muito mais obstáculos que os homens em todos os aspectos da nossa existência, e muitas vezes, na busca pela sobrevivência, acabamos por perceber, que, não temos valor no mundo.

E, no caso, onde é que Krystal e Robbie estivessem depois da morte, seriam mais bem recebidos, cuidados e amados do que foram em toda sua vida.

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