As armadilhas da feminilidade

Vitória Frederico
Sementes Coletivas
Published in
5 min readJan 14, 2024

A feminilidade é uma construção social que delineia um conjunto complexo de normas e expectativas que moldaram historicamente, e seguem moldando a experiência feminina. Aqui, proponho o exame minucioso das armadilhas que a feminilidade apresenta, investigando suas definições, seu papel na manutenção de estruturas patriarcais e sua exploração pelo sistema capitalista, entre outros fatores. Vamos também analisar se é possível alcançar uma existência sem essas amarras sociais, livre do signo do feminino.

O que é feminilidade?

Segundo Susan Brownmiller, a feminilidade transcende a simples biologia, moldando-se em um complexo conjunto de normas e expectativas sociais que moldam a experiência feminina. Brownmiller, em seu livro “Femininity,” explora a construção da identidade feminina, destacando como ela vai além das características biológicas, envolvendo uma gama de comportamentos e estéticas socialmente atribuídos ao feminino. As armadilhas da feminilidade, como discutido pela autora, incluem desde a suavidade até à submissão, formando um código de conduta.

Outro ponto sobre a feminilidade é trazido à tona por Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo.” A autora argumenta que a feminilidade é uma construção social imposta às mulheres desde a infância, influenciando não apenas suas ações, mas também suas aspirações e autoconceitos. Beauvoir destaca como as meninas, desde cedo, são ensinadas a se encaixar em padrões que perpetuam a submissão feminina.

A feminilidade não é uma característica intrínseca, mas sim uma série de atos repetidos que consolidam o que é percebido como feminino na sociedade. Essa perspectiva amplia a compreensão da feminilidade como uma construção social ativamente mantida e praticada diariamente.

Assim, ao integrar essas análises, podemos perceber que a feminilidade não é uma característica biológica, mas sim, uma construção social que envolve normas, expectativas e performances que moldam a experiência feminina.

Como a feminilidade perpetua o patriarcado?

Brownmiller sugere que a feminilidade, muitas vezes, é delineada em termos que complementam a visão patriarcal. Ao enquadrar as mulheres como suaves, submissas e ornamentos decorativos, a feminilidade, fortalece a ideia de uma posição subalterna feminina.

“A feminilidade agrada aos homens porque faz com que eles pareçam mais masculinos por contraste”. — Susan Brownmiller

Beauvoir aprofunda essa ideia, argumentando que a socialização das meninas desde a infância, as prepara para aceitar papéis subalternos. A feminilidade, nesse contexto, seria uma parte integrante do processo que perpetua a dominação masculina ao incentivar as mulheres a seguirem com padrões que as mantêm em uma posição submissa de acordo com estereótipos de gênero.

Ainda sobre a performance de gênero, podemos dizer que a feminilidade é constituída por uma série de atos repetidos, e muitas vezes estereotipados, que consolidam o que é esperado de uma mulher e de um homem dentro da sociedade. Essa repetição constante, contribui para a manutenção da estrutura patriarcal ao reforçar representações normativas de feminilidade que se alinham com as expectativas tradicionais, a partir disso podemos citar a masculinidade como a ideologia do patriarcado.

Portanto, ao integrar essas perspectivas, torna-se claro que a feminilidade, está intrinsecamente ligada à manutenção da estrutura patriarcal. Ao enquadrar as mulheres em papéis específicos, reforçando estereótipos e encorajando comportamentos que se alinham com a submissão, é impossível chegar a um ideal igualitário, já que a feminilidade não é o oposto da masculinidade, e sim, o seu produto.

Feminilidade e autoimagem

As primeiras experiências associadas à feminilidade moldam não apenas as ações externas, mas também a própria percepção interna da nossa identidade. A imposição de normas estéticas desde a infância cria uma matriz complexa no que diz respeito à nossa forma de existir no mundo.

Podemos notar isso a partir da taxa de transtornos alimentares em meninas ainda na adolescência. A magreza, o salto alto, a maquiagem, o cabelo impecável, a pele macia e sem pelos. Características que definem a mulher ideal sob os olhos dos homens. Até mesmo a nossa noção de pertencimento passa pela ótica universal masculina de aprovação.

A autoimagem, então, não é apenas um reflexo individual, mas um espelho complexo das expectativas sociais de feminilidade.

Feminilidade e o sistema capitalista

Dentro do contexto do sistema capitalista, a feminilidade se torna uma mercadoria valiosa. Os padrões estéticos associados à feminilidade são explorados pela indústria da moda, beleza e entretenimento como ferramentas para gerar lucro. A padronização da beleza feminina, promovida por meio de produtos e serviços, cria uma pressão constante sobre as mulheres para o alcance da estética ideal, mesmo que ela venha a partir de uma cirurgia plástica.

Desde brinquedos específicos destinados a meninas até os padrões de vestimenta e comportamento, a feminilidade é moldada para atender não apenas expectativas sociais, mas também para alimentar uma indústria.

Assim, a relação entre feminilidade e sistema capitalista revela uma influência unidirecional da cultura na construção da feminilidade, mas também uma retroalimentação em que a feminilidade é explorada para impulsionar a economia, perpetuando assim padrões prejudiciais para as mulheres.

É possível viver sem a feminilidade?

A feminilidade não é algo intrínseco, sendo assim, uma construção social pode ser desconstruída e reformulada, mesmo que o caminho não seja fácil. E definitivamente não é fácil, pois a partir do momento que nosso sexo não está escancarado esteticamente, as pessoas não sabem em qual lugar nos colocar. Isso gera repulsa.

Abrir mão da feminilidade, infelizmente, significa também abrir mão de ser vista como uma “mulher de verdade” perante a sociedade em muitas situações. Falo isso a partir de minha ótica e minha presença na sociedade como uma lésbica desfeminilizada. Será necessário lidar com olhares de desaprovação não só dos homens, mas também de outras mulheres. É sobreviver à margem do sistema, indo contra o esperado, isso muitas vezes torna o caminho solitário e cansativo para muitas de nós.

Se a feminilidade fosse uma mera escolha, não sofreríamos punições por abdicar dela. Não teríamos dificuldade em conseguir um emprego, em usar o banheiro feminino com tranquilidade, em andar de mãos dadas com outra mulher. Cito aqui uma parte do texto “Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher” da Furiosa:

“Ceder ao processo de feminilização é, então, um grito: eu estou aqui, mas ainda sou mulher. Eu estou aqui, mas deus me livre ser sapatão. Ou, ainda; estou aqui, sou sapatão, mas deus me livre ser feia aos olhos dos homens. Pobres dessas mulheres. Pobres de nós, aliás, por precisarmos recorrer a isso tantas vezes para conseguirmos sobreviver.”

Seguir o caminho contrário desse destino determinado para nós desde o nosso nascimento, proporciona desconforto e falta de identificação nos grupos, e é por esse motivo que a rede de apoio formada por outras mulheres que rejeitam a feminilidade se torna essencial. Somos mais fortes quando nos vemos em outras mulheres.

A desconexão da feminilidade não é apenas um ato de resistência individual, é um convite.

Neste caminho de autodescoberta e redefinição, as mulheres podem encontrar a verdadeira emancipação, desviando das armadilhas da feminilidade para abraçar um sentido mais verdadeiro de liberdade.

Bibliografia
Femininity. SUSAN BROWNMILLER. Nova York, 1983

La trampa de la feminidad y las nuevas masculinidades, de Tasia Aránguez Sánchez. Tribuna feminista, 2019

BEAUVOIR, Simone. Le Deuxième Sexe. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949.

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