Feminismo Cristão?

Audrey Merchak
Sementes Coletivas
Published in
4 min readDec 25, 2022

IMPLICAÇÕES DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS SOBRE AS ESTRUTURAS SOCIAIS

“Deus projetou a mulher como a construtora do lar, mas, por algum motivo, ela saiu do seu caminho. [...] Os sacerdotes afirmavam às mulheres que sua verdadeira missão era o “auto-sacrifício.” (FRENCH, 1992)

“O discurso de moralidade da nova direita mascara sua verdadeira agenda: legitimar e reimpor a subordinação à classe trabalhadora, os negros e as mulheres” - já dizia a ativista Marylin French. A grande autora do livro “A guerra contra as mulheres” apregoa, nesse sentido, que os mesmo homens que são indiferentes a movimentos como o feminismo, se mostram extremamente receosos quanto a tudo o que possa ameaçar sua dominação e privilégio. As mudanças nos papéis sexuais ameaçam o conforto dos homens e da sociedade como um todo, porque diminuem a autoridade masculina no lar. A expressão da supremacia masculina, então, passa a depender, em sua maioria, das tradições sócio-culturais. Assim, é claro que a emancipação da mulher, enquanto classe, está sempre relacionada à destruição da família, já que todas as mais importantes instituições religiosas internacionais trabalham para devolver à mulher uma posição mais subordinada.

À mulher amorosa, paciente, compassiva e acolhedora é prometida a santidade, mas de nada lhe vale esses valores se não for capaz de exercer o perdão e a aceitação. Por mais que defendam a submissão à violência como fator natural da existência feminina, as grandes religiões monoteístas continuam como principais repositórios da confiança e fé de muitas mulheres. A Religião não deu origem ao Patriarcado, mas, ainda assim, tanto na esfera pública quanto na privada, continua a sustentá-lo por meio de tradições e ideologias misóginas. Dessa forma, o futuro das mulheres é incerto e sujeito às estruturas sociais, coercitivas e milenares. Aliás, como pode, num país como o Brasil - estruturalmente estratificado e empobrecido por séculos de governos coloniais - as taxas de conversão de mulheres ao Catolicismo ou doutrinas Evangélicas continuarem a crescer tão rapidamente?

“Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.” (TIMÓTEO 2:11-15)

De acordo com o revolucionário Friedrich Engels, o Cristianismo é uma forma cultural que se transforma ao longo da história e como um espaço simbólico, representa um jogo de forças sociais antagônicas. Nesse sentido, a sujeição feminina se mostra complementar ao ideal de família cristão, e a força social antagônica respectiva é caracterizada pela emancipação da mulher. Confraternizações como o Natal escancaram a assimetria entre as responsabilidades dos cuidados domésticos entre homens e mulheres. Dos pratos comemorativos aos enfeites natalinos, tudo parece pertencer ao escopo feminino dentro da esfera privada. E, num contexto hodierno de ascensão de movimentos fundamentalistas, de acordo com os quais o passado era “puro”, mais feliz e deveria ser revivido no presente, a única alternativa restante aparente às mulheres é se apegar aos modelos de virtuosidade feminina. Mais uma vez, Marylin French se faz relevante perante a sociedade brasileira atual, na qual o lugar da mulher “não é na vida pública, não é para serem vistas, mas apenas para serem espectadoras.”

“Mulheres, sede submissas a vossos maridos, porque assim convém ao Senhor. Maridos, amai vossas esposas.” (COLOSSENSES 3:18)

Enquanto dos homens o Velho Testamento requer o enorme sacrifício de amar o “segundo sexo”, recai sobre as mulheres a submissão incondicional, disfarçada de casamento. Entitular-se feminista e cristã, simultaneamente, a caracteriza como conivente com sua própria opressão. O malgrado fato de que não há nada essencialmente patriarcal no impulso religioso, a socialização feminina e seu respectivo condicionamento à obediência, salienta a inclinação das mulheres ao misticismo em geral. Consequentemente, a Religião passa a ditar o que é ou não apropriado à feminilidade, e condena a falta da tarefa do cuidado. A fé, quando institucionalizada, trespassa o íntimo e passa a refletir as várias estruturas coercitivas de uma comunidade, que passam, então, a ser justificadas por ideologias míticas.

O ceticismo, mais do que nunca, representa resistência. E, é preciso que permaneçamos juntas para desconstruir doutrinas tão profundamente enraizadas em nossas sociedades. Não podemos mais buscar justificativas para as injustiças sociais, ou ignorarmos a influência dessas em datas comemorativas como o Natal, mas nos questionar do por quê tais papéis de gênero ainda permanecem em nossos âmagos, possibilitados pela fanática tentativa patriarcal de invisibilizar nossa realidade material.

Que não nos falte paciência neste Natal para lidar com as tradições religiosas que nos oprimem há tantos séculos. Que reconheçamos, finalmente, que a religião não precisa ser subterfúgio, ainda mais se estiver amparada em submissão, abnegação ou sacrifício. E que esse fim de ano nos ilumine com sabedoria para enxergarmos melhor com clareza as condições materiais que perpetuam a posição subalterna das mulheres, bem como os efeitos autodestrutivos da feminilidade. Para além do ópio do povo, “a religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração”, e devemos admitir que como tal, seu questionamento pode levar à revolução.

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