Sistema penitenciário e mulheres

Como a guerra às drogas nos afeta diretamente.

Giullia Sudan
Sementes Coletivas
5 min readMay 25, 2021

--

Esse tema tão denso e pouco comentado está cheio de falácias e maus olhares. Muitos mitos são colocados nas pautas de encarceramento e guerra às drogas, o punitivismo as permeia e não se é pensado nas estratégias políticas do Estado brasileiro. Então refletimos na necessidade de escrever esse artigo, pois a crueldade desse sistema, desamparo e descaso são desumanizantes. As mulheres estão à mercê de um Estado e um sistema impiedoso que não lhes dão nenhum amparo, exploram a sua saúde mental e física.

Quando falamos sobre encarceramento em massa no Brasil, é sobre o terceiro país com maior população prisional do mundo, em número absoluto 35.218 pessoas, e as mulheres são o segmento que mais cresce no encarceramento. Entre 2000 e 2014, ocorreu um aumento em 567,4% no contingente de mulheres encarceradas, enquanto que o de homens apenas 220%. Entre as mulheres encarceradas, 68% são negras, e três em cada dez não tiveram julgamento, sendo consideradas presas provisórias. Sabendo disso, 50% não concluíram o ensino fundamental e 50% são jovens, sendo a média de mulheres em torno de 20 anos. Ao analisarmos este cenário podemos observar o encarceramento juvenil como alvo.

Retomando o contexto na história feminina podemos observar semelhanças entre as punições de escravizados e punições de mulheres. Por muitos séculos as punições eram determinadas e executadas por seus maridos, uma relação intensa de propriedade e proprietário, assim como os senhores e os escravizados. No livro A Criação do Patriarcado por Gerda Lener é apresentada a ideia de que a dominação das mulheres por parte dos homens foi a primeira forma de subjugar um grupo de seres humanos por outro, de forma que a partir da construção da hierarquia patriarcal é que se desenvolveu a escravização de estrangeiros e outras formas de dominação. Como pontua Angela Davis, os sistemas punitivos têm sido marcadamente masculinos, pois o espaço público sempre foi negado às mulheres, sendo assim o espaço doméstico era onde ocorriam — e ocorrem até hoje — as punições determinadas por qualquer desvio no lar. Enquanto nas prisões surgia a ideia de punição como privação da liberdade, mulheres eram subjugadas no ambiente privado tendo até leis que permitiam castigos físicos.

Algo interessante que podemos observar novamente na história é que a criminalidade cabe ao homem, portanto, se entende como algo normal e deve ser tomada as devidas providências no âmbito público, em paralelo, se constrói a ideia de que mulheres são anormalizadas e desestabilizadas, ou seja, loucas, histéricas que deviam ser tratadas sob condutas médicas e psiquiátricas. Podemos trazer para a atualidade pois o contingente mais medicalizado da sociedade moderna são mulheres, com todo o tipo de fármacos para o controle de “distúrbios” de ordem psíquica, além de apresentarem algum grau de doenças mentais.

A “Guerra às drogas” no Brasil (Lei n°11.343, aprovada em agosto de 2006) faz com que o encarceramento seja mais desigual e sustente a hierarquização racial e de gênero com um percentual chocante de 62% de mulheres encarceradas enquanto entre homens este número cai para 26%. Uma das perguntas levantadas sobre essa Lei pela escritora Juliana Borges em Encarceramento em Massa é: quem define se uma pessoa é traficante ou usuária? Está no artigo 28 da Lei n° 13.343/2006 que o juiz terá que determinar se a droga estava destinada para consumo pessoal ou tráfico. Considerando todos esses fatores podemos analisar que a Lei de Drogas impactou diretamente no encarceramento em massa no Brasil nos levando a terceira maior população carcerária do mundo. De 2006 a 2014, de acordo com o InfoPen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), no período de oito anos aumentou em 200 mil pessoas encarceradas, o aumento é assustador. E segundo diversos estudos é mostrado que as mulheres em situação prisional não eram o foco nas operações e sim, seus parceiros ou familiares, elas acabaram sendo detidas por associação ao tráfico.

Tendo em vista o patriarcado como regime político, o que podemos observar com os dados anteriores é que as penas mais duras são para mulheres, principalmente negras, ao adicionarmos o elemento racista frente a delitos mais leves. Das mulheres encarceradas, 63% têm penas de até oito anos, e tendo a comprovação de que muitas são mães, 45% delas cumprem regime fechado. Dessas mulheres, 40,6% estavam desempregadas e em 96,5% há referências do uso de drogas como problema, sendo que na verdade são as vulnerabilidades sociais que levam ao uso abusivo de substâncias.

Chegando ao desfecho, as mulheres dispõem de necessidades diferenciadas e as prisões não possuem estruturas para fornecer o mínimo, como o absorvente, tendo que utilizar miolo de pão nos seus ciclos menstruais, em números, de acordo com o jornal Ponte, 26% das adolescentes entre 15 a 17 anos não possuem acesso aos absorventes higiênicos nas prisões e há relatos de haver apenas 8 absorventes por 30 dias. Outro exemplo é o uso de papel higiênico, sabendo que mulheres utilizam mais o sanitário para urinar do que homens, elas usam muitas vezes papéis de jornais velhos e sujos para sua higiene íntima. A negligência médica, negação de acesso ao controle reprodutivo e a remédios são alguns desrespeitos e violências que as mulheres encarceradas sofrem. HIV e AIDS são mais fáceis de contrair na prisão e não possuem o tratamento adequado para mulheres com o agravo do vírus. No Brasil, segundo o InfoPen, há apenas 32 profissionais ginecologistas para atender todo o universo de mulheres encarceradas. Como podemos observar as prisões necessitam da violência seja ela física ou psicológica e impactam mulheres de formas mais intensa.

Esse artigo não é para esclarecer dúvidas e sim trazer mais questionamentos. Após tantos dados até aqui podemos afirmar que o sistema do encarceramento em massa no Brasil é constituído de estratégia política, que é uma extensão da escravização no Brasil e baseia-se na desigualdade racial e sexual. Como diz Angela Davis em ‘Estarão as Prisões Obsoletas?’, “Está na hora de falar sobre abolir cadeias e prisões da sociedade […]. Onde vamos colocar os prisioneiros? Qual a alternativa? […] A única alternativa completa é construir um tipo de sociedade que não precise de prisões: uma redistribuição digna de poder e renda […]”. Não podemos ter medo de revolucionar, devemos ser radicais em nossa postura e com isso ir até a raiz e ligarmos os pontos, pois só assim vamos mover alguma estrutura de poder.

Referências:

Encarceramento em massa — Juliana Borges

Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias ( InfoPen)

Estarão as prisões obsoletas? — Angela Davis

Vídeo: https://youtu.be/qJOdYS8SOdM: Mulheres e o cárcere

--

--