Web 3.0 — A nova era da internet?

Gabriel Pinho
Senior Sistemas
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10 min readMar 10, 2023
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Gabriel Pinho
Tayene Gonçalo

No começo da internet, lá por meados de 1991, ela era consideravelmente diferente da internet que temos hoje. Não tínhamos serverless, armazenamento na nuvem, containers. Também não tínhamos React, Vue, Flutter. Não tínhamos NodeJs, Typescript, C#. “Era tudo mato” ou, em outras palavras, era uma rede descentralizada de computadores, se comunicando por um protocolo, HTTP, caracterizada pelo compartilhamento de documentos estáticos, conectados a outros documentos através do bom e velho hyperlink. Mais tarde, naquela mesma década, se uma pessoa programadora com uma ótima ideia de negócio para a WEB a quisesse implementar, uma das formas mais populares era a famosa stack LAMP: Linux, Apache, MySQL e PHP. Este conjunto de ferramentas open-source foi o “arroz e feijão” da comunidade WEB por muitos anos. Hoje chamamos este período da internet de Web 1.0, mas assim como em 1914, quando as pessoas chamavam a guerra que tinha acabado de começar de A Grande Guerra, e não de Primeira Guerra Mundial, a internet nos anos 1990 era chamada apenas de internet. O fato de existir o termo Web 1.0, quer dizer que há novos estágios da internet. Pois então…

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A necessidade de escalar a internet resultou na construção dos grandes datacenters, por empresas como Amazon, Google e Microsoft. Nesse cenário, o que era uma rede descentralizada de computadores, foi se transformando em grandes “aranhas”, com centros na infraestrutura das “Big Techs”, provedoras de serviços de WEB. O termo “Web 2.0” foi cunhado. Esse período que, como veremos mais à frente, ainda é na prática o que estamos vivenciando. Outra grande característica desse estágio, são as redes sociais e o conteúdo gerado pelo usuário. Facebook, Instagram, Twitter, YouTube são exemplos de plataformas onde usuários geram conteúdo para outros usuários, e uma Big Tech mantém a infraestrutura e modera o conteúdo, enquanto gera receita através de publicidade e da venda de dados provenientes dos próprios usuários, o que é inclusive fonte de polêmica. Antes, na Web 1.0, a internet era considerada como “read-only web” (apenas leitura) pois os usuários apenas consumiam o conteúdo sem muita possibilidade de interação, na Web 2.0 a internet passou a ser “read-write” (leitura e escrita). O que quer dizer que não apenas consumimos conteúdo, como também criamos e publicamos conteúdo diariamente com facilidade e rapidez, obtendo iterações com outras pessoas em tempo real.

Por volta de 2021, começamos a ouvir o termo Web 3.0 (apesar de o termo ter sido cunhado em 2006, como uma ideia apresentada ao público pelo professor do MIT, Tim Berners-Lee), e muitos imaginaram o fim do reinado das Big Techs sobre a internet e os nossos dados. Youtubers, podcasters, tech influencers e executivos de grandes empresas, quase todo mundo passou a ter uma opinião sobre essa nova “revolução da internet”. Mas afinal, o que é Web 3.0? Ela é uma ideia composta por um conjunto de princípios, e provavelmente o mais característico é a descentralização. Mas espera um pouco, a Web 1.0 já não era descentralizada? Se você fez esse questionamento, temos algo em comum. Sim, como falamos, uma das características do começo da internet era a descentralização. Contudo, a fim de a escalar, a centralização acabou sendo necessária. E se era necessária, o que faz ser supostamente factível uma descentralização agora, sem que tenhamos que “desescalar” a internet? Entusiastas argumentam que em primeiro lugar, hoje temos uma velocidade e uma disponibilidade consideravelmente maior de banda larga. Em segundo, tecnologias peer-to-peer estão mais desenvolvidas, como o famoso BitTorrent, que permite o compartilhamento de arquivos diretamente de outros usuários. Terceiro, a democratização do conhecimento. A expertise em sistemas distribuídos, no começo da internet, estava concentrada em poucas universidades e entidades governamentais dos Estados Unidos. Agora este conhecimento está globalizado. Quarto (e agora chegamos na cereja do bolo), o desenvolvimento de blockchains e criptomoedas.

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Em poucas palavras, blockchain é um registro distribuído composto por blocos imutáveis de informação, onde só é possível adicionar novos blocos, e nunca alterar ou excuir blocos existentes. É distribuido, pois é composto de uma rede de computadores, onde cada nó possui uma cópia da cadeia de blocos. É uma tecnologia que veio a público em 2009, com o lançamento da criptomoeda Bitcoin, por uma pessoa anônima cujo pseudônimo é Satoshi Nakamoto. Satoshi usou blockchain para registrar transações de Bitcoin, e estas podem ser consultadas desde o primeiro bloco até hoje. O Bitcoin utiliza um mecanismo chamado “Proof of Work” (prova de trabalho) para atingir consenso entre nós da rede, o que funciona a partir de um cálculo computacionalmente intensivo, que faz com que leve um tempo considerável (em torno de 10 minutos, para o Bitcoin) para a mineração de um novo bloco. Esse mecanismo recompensa mineradores que empregam maior poder computacional na mineração.

Em 2015, Gavin Wook lançou a blockchain Ethereum, e sua criptomoeda, o Ether. O que mudou desta em relação ao Bitcoin, foi a introdução dos smart contracts e da linguagem Solidity. Estes são contratos escritos em código que executam na blockchain, são imutáveis e facilitam transações entre partes sem que haja a necessidade de confiança entre elas, ou em uma autoridade terceira. O Bitcoin também tem essa característica, porém não é possível criar smart contrats dentro de sua blockchain. Outra diferença entre Ethereum e Bitcoin, atualmente, está no mecanismo de consenso. O Ethereum utiliza o “Proof of Stake” (prova de “aposta”), que recompensa mineradores que empregam mais Ether em sua “aposta”, tornando desnecessário o intenso uso de recursos computacionais característico do Proof of Work. Este mecanismo foi criado para evitar o gasto exorbitante de energia elétrica do Proof of Work.

O Ethereum abriu caminho para que qualquer pessoa implante um smart contract em sua blockchain, com uma linguagem intuitiva e de propósito geral. Isso possibilitou o surgimento de aplicações verdadeiramente descentralizadas, podendo persistir dados na rede blockchain. Tendo em vista uma problemática de centralização dos dados pessoais nas mãos de companhias globais, Gavin afirmou que a evolução desse modelo seria começar descentralizando os dados dos usuários.

Haveria, por exemplo, uma mudança na dinâmica das redes sociais, com os usuários tendo total controle sobre os conteúdos publicados. Um exemplo de rede social Web 3.0 é o Sola, uma plataforma de mídia social descentralizada onde todos têm igual liberdade de publicar sem conceder monopólio a anunciantes, influenciadores ou grandes marcas. Além de redes sociais, outras aplicações também são possíveis, como streaming de vídeo (DTube), armazenamento de dados (Storj) e navegador WEB (Brave Browser).

Também seria possível o advento de empresas descentralizadas. Conhecidas como DAOs (organizações autônomas descentralizadas), são empresas sem CEO, entidades coletivas gerenciadas pelos membros pertencentes à comunidade, onde decisões são tomadas a partir de propostas e votação, supostamente assegurando a confiabilidade de justiça e igualdade entre todos. Os DAOs não necessitam de bancos para guardar seus fundos financeiros, elas armazenam nos seus próprios tesouros ou carteiras e são implantados por meio dos smarts contracts. Esses smart contracts são desenvolvidos com o intuito de pré-determinar ações e condições, onde as regras estabelecidas irão gerenciar a entidade. São executados por meio de blockchain e com isso não existe necessidade de burocratizar a administração de terceiros, trazendo maior confiabilidade as ações dos proprietários.

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Além de redes descentralizadas, a Web 3.0 traria consigo outras novidades como por exemplo, tokenização de ativos e NFTs. Tokenizar significa representar o valor de um ativo tangível (“real”) ou intangível (“virtual”) através de tokens virtuais, definidos por smart contracts e cujas transações são registradas em blockchain. Um exemplo é a tokenização de imóveis, onde se representa o valor de um imóvel com uma quantidade finita de tokens virtuais, que podem ser negociados resultando na posse parcial do imóvel, além na variação do preço destes tokens, conforme a demanda. Esse tipo de token é chamado de “fungível”, o que significa que são como moedas, e podem ser fragmentados e trocados por outros tokens idênticos. Isto implica a existência de tokens não-fungíveis, os NFTs (Non Fungible Token). Cada NFT é definido por seu próprio contrato, e representa um ativo singular e único, como um exemplo bastante comum, uma imagem, além de não poder ser dividido ou trocado por outro.

Além do blockchain e de suas tecnologias subsequentes, dois outros termos são frequentemente associados à Web 3.0, ainda que de forma secundária: machine learning e metaverso. A aprendizagem de máquina não é assunto novo, mas vem crescendo imensamente nos últimos tempos em paralelo com a Web 3.0, pois essa tecnologia possibilita os computadores serem capazes de automatizar processos, analisar dados e se adaptar às necessidades dos usuários por conta própria. Já sobre o metaverso, podemos dizer que seus conceitos ainda estão em processo de construção. Contudo, sabemos que se trata de ambientes virtuais que simulam ambientes reais, como uma espécie de camada que integra o mundo real e virtual, e apesar de parecer uma utopia futurística, é um tema antigo que vem tentando se incluir no mercado, e por conta das ideias inovadoras e ainda em desenvolvimento (e possivelmente vaporware, quando uma nova tecnologia é anunciada, porém nunca entregue), é considerada também como característica da Web 3.0.

Web 3.0 é atualmente o açaí da internet, uns amam e outros odeiam. Enquanto muitos acreditam que é a solução contra a centralização e o controle de dados pelas Big Techs, esta filosofia não é isenta de crítica. Em um artigo com críticas bastante duras à Web 3.0, Stephen Diehl afirma que blockchain é uma invenção cujos efeitos negativos e capacidade para causar dano superam vastamente qualquer uso possível. Ele argumenta que todo problema para o qual blockchain se propõe a resolver esbarra em três limitações técnicas fundamentais que inevitavelmente surgem de preocupações econômicas e legais: computação, largura de banda e armazenamento.

Sobre o problema de computação, qualquer programa em uma blockchain precisa ser executado por todos os nós da rede, como parte do seu processo para atingir consenso por toda a rede, o que leva o custo de qualquer aplicação a níveis muitíssimo elevados. Além disso, a máquina virtual do Ethereum tem o poder computacional equivalente a um Atari 2600 da década de 1970, enquanto executa em hardware capaz de rodar God of War Ragnarök em 4K e 120fps. Sobre o problema de largura de banda, sistemas centralizados são muito mais eficientes em servir dados a clientes, sem contar o alto tráfego necessário para a comunicação entre nós. Sobre o problema de armazenamento, a Web 3.0 critica a centralização dos nossos dados nas mãos das Big Techs, porém Ross Stalker argumenta que, com a concentração de dados nas blockchains, todo esse poder, que estava nas mãos de algumas corporações conhecidas, com diretores responsáveis (no sentido de poderem ser responsabilizados), passa a estar nas mãos de cryptominers anônimos, virtualmente irresponsáveis (de novo, no sentido de não poderem ser responsabilizados).

Por fim, temos os principais pilares da Web 3.0, são eles: ambientes descentralizados, autonomia dos dados, NFT’s, tecnologia blockchain, e até mesmo machine learning e metaverso. Já discutimos um pouco sobre a proposta deles aqui, e também um pouco sobre as críticas à Web 3.0 em geral. Contudo, a suposta nova fase da internet traz consigo diversos temas que não necessariamente estão em conjunto para que sejam considerados parte da mesma. Podemos dizer então que companhias que já fazem uso do blockchain, por exemplo, já estão inseridos no mercado da Web 3.0, e, por definição até o Neymar, que comprou dois NFT’s de artes digitais únicas de “macacos entediados” em janeiro de 2022, também faz parte da nova internet.

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As críticas que apresentamos aqui são totalmente válidas. De fato, uma transição completa da internet para tecnologias Web 3.0 representaria um gasto computacional estratosférico, devido à ineficiência de processar a mesma computação por todos os nós de uma rede. A suposta descentralização de dados possivelmente resultaria em apenas em uma transição de poder, que em vez de estar concentrado nas mãos de poucas (mas conhecidas) Big Techs, estaria nas mãos de alguns faraós anônimos das criptomoedas. O mecanismo de Proof of Work resulta em gastos de energia comparáveis a pequenas nações, e o mecanismo de Proof of Stake acentua ainda mais a concentração de poder em poucos cryptominers.

Isso quer dizer que devemos descartar todo e qualquer conceito e tecnologia Web 3.0? Naturalmente que não. Aplicações de blockchain e smart contracts são viáveis em campos específicos, cada caso deve ser analisado para saber se faz sentido. Em geral, acabamos concluindo que aplicações que precisam de alta confiabilidade no registro de dados, para uma possível auditoria, como registro de lançamentos contábeis, documentos oficiais, assinatura eletrônica, rastreamento de ativos, etc.; são aplicações onde blockchain pode fazer sentido. Mas não vemos um futuro onde toda a internet será Web 3.0.

Respondendo à pergunta do título: Web 3.0 é a nova era da internet? Não, e dificilmente veremos uma queda na utilização de serviços direta ou indiretamente ligados a datacenters de Big Techs, o que não significa que as tecnologias descentralizadas da Web 3.0 não tenham as suas aplicações no seu nicho. Como muitas coisas na vida, a resposta é não-binária. A melhor saída ainda é sempre olhar caso a caso. Faz sentido a sua aplicação utilizar tecnologia A, B ou C? Tente não basear a sua decisão apenas em trends tecnológicas.

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Gabriel Pinho
Senior Sistemas

Formado em Engenharia Mecânica, sou mais um intruso na computação. Me interesso em tecnologias para o desenvolvimento, e cada vez mais low-level.