O dia em que os heróis se encontraram no busão

Lucas Spricigo
sentimentalizador
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3 min readMay 11, 2018
Foto: Imago/suedraumfoto

Quinta-feira, como qualquer outra pego meu ônibus das quatro horas da tarde. Um dia nublado de outono em que Post Malone é meu grande companheiro, ecoando I Fall Apart nos meus fones.

Dois pontos após eu entrar, chega um homem de meia idade que sempre admiro. Volta e meia exibe aqueles atos de humanidade e respeito com os outros passageiros, mas aquele dia em especial mais heróis do dia a dia apareceriam.

No caminho até a Universidade há um posto policial, onde paramos neste dia. Ninguém havia entendido o motivo, muito menos eu enquanto arranhava um cover desarranjado do rap melódico que ouvira.

…Oooh, I fall apart
Down to my core…

O homem de meia idade no lado oposto de meu assento no fundo do ônibus, levanta e olha atento à frente. Quase que imitando seus passos me bate a curiosidade e faço o mesmo. Num ato completamente de coração, uma jovem garota larga sua bolsa e arranca uma garrafa de água e num atendimento de socorro improvisado tenta acalmar uma mulher que desabara.

Eu, no alto dos meus oito semestres de Psicologia, só conseguia admirar tamanha humanidade daquela jovem garota.

-“Tente respirar. Forte”, dizia ela enquanto o motorista do ônibus empunhava dois socos na catraca.

Ao notar a situação daquela mulher caída no canto dianteiro esquerdo do ônibus, o motorista correu ao posto policial e solicitou ajuda.

-“Já aconteceu outras vezes?”.

Assim sem parecer saber o que fazer a menina acertava o procedimento padrão para acalmar uma pessoa. Respirar e conversar.

Eu não via motivo de se achegar a situação, já que parecia sobre controle. Mas a garota? Ficou ao lado da mulher até o fim.

O policial parecia ter solicitado atendimento e indicou que o motorista continuasse a viagem com ela.

No caminho também há uma unidade do corpo de bombeiros. É, eu sei, parece tudo coincidência, mas fato é que aquele ônibus viraria então uma ambulância, mesmo não deixando os pontos de parada para trás, levou aquela mulher até o atendimento.

Eu já havia notado outras vezes aquela garota. Estilo street, um boné despojado, um tênis batido e sempre com um sorriso no rosto. Volta e meia eu a notava, mas obviamente neste dia só tinha olhos para ela como num sinal de admiração e querendo veementemente parabeniza-la.

Ao sair diante da catraca a minha frente, a jovem trocou um breve olhar, enquanto eu mantinha um sorriso para ela. Provavelmente não entendeu.

Aquela viagem permaneceria em curso. Ao meu lado o antigo herói, enquanto que a jovem heroína já andava por algum lugar daquela nublada cidade.

Meus fones voltariam a reverberar a voz inconfundível de Post, enquanto uma outra garota se aproximava. Parecia que dessa vez a trilha sonora faria sua parte.

I don’t wanna die too Young…

Bela garota.

Jeans de cintura alta, uma blusa desconstruída que lembrava as cores da Alemanha. Um cabelo loiro ruivado. Uma bela barriga à amostra.

-“Gata”, foi minha primeira reação.

Se esgueirava pelo canto do ônibus enquanto que me preparava para levantar de meu assento.

Mas a beleza não é tudo.

Minha visão detalhista viu, ao esticar de seus braços, marcas de automutilação. Alguma lâmina muito afiada havia feito um trabalho árduo naqueles pulsos alguns dias antes, ela tentava esconder.

Oito semestres de Psicologia, não há um que explique o que fazer, mas uma abordagem naquela situação nunca é agradável.

Fiquei me perguntando se eu também poderia ser um herói daquele ônibus das quatro horas. Ou talvez eu já teria sido, só não havia entendido.

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Lucas Spricigo
sentimentalizador

Estudante de Psicologia e jornalista por tabela. Vê sentimento em tudo e exterioriza em histórias.