Um atípico encontro no almoxarifado

Lucas Spricigo
sentimentalizador
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6 min readMay 21, 2018
Samuel Zeller on Unsplash

“Lucas, leve as caixas no almoxarifado”

Era uma tarde de tradicional clima ameno catarinense, estava eu no segundo mês de emprego numa fábrica de vestuário íntimo da cidade. Quase todos os dias eu torcia por algum desses pedidos, que me faziam sair daquele lugar barulhento que ficava todas as tardes até por volta das dezessete horas.

Mas aquele pedido justo na última hora de expediente traria novas indagações para aquela minha adolescência conturbada dos 16 anos.

Carreguei três caixas médias de prováveis um quilo cada durante aqueles poucos passos que separavam a fábrica da loja depósito.

“Oi, me pediram para subir com as caixas para o depósito”, disse eu para a gerente da loja que me olhara com uma cara de tanto faz.

“A Bruna te ajuda”, disse ela.

Bruna era uma garota simples, loira de olhos claros e estatura média para uma menina de 19 anos. Magra, vestida de uma forma um pouco mais social do que as outras atendentes do lugar. Sempre a encontrava durante os meus dias de trabalho. Era muito bela e confesso que naquele rebuliço de sentimentos da adolescência já havia a notado de outras formas.

Nunca havíamos tido contato algum, mas volta e meia eu notava ela me observando. Ou então era ela quem me notava a observando.

Subi aqueles quinze degraus em L que davam vista para a rua, Bruna me abriu a primeira porta e apontou para um canto.

“Pode colocar lá… Lucas”.

Aquela interrupção na fala entre o mandar e citar meu nome soou estranho.

Coloquei as caixas enquanto a senti mais perto, relevei e me virei, ao mesmo tempo que aqueles lábios contornados por um batom rosê tom marrom caramelo se direcionaram em minha direção. Obviamente não neguei.

Respiração forte, mordiscadas, mãos flutuando entre os corpos e aqueles tradicionais pseudo beijos no pescoço fizeram com que a temperatura amena dobrasse naquele lugar, só parando quando ouvimos alguém subindo as escadas.

“Está tudo bem por aí?” Era a gerente.

Numa daquelas fenomenais mentiras que sempre cabem muito bem nesses momentos, Bruna despistara a intromissão e se virava para mais. Pegou em minhas mãos e foi quando eu vi uma bela aliança em sua mão direita.

Visivelmente chocado com a situação eu a indaguei sobre.

“Ah, não é nada. Na verdade, é meu namorado, mas…” respondia ela.

Simplesmente dei um sorriso de reprovação e sai.

Dois dias depois ela chegaria até meu posto de trabalho, se aproveitando de fazer o caminho inverso com outras caixas do depósito para a fábrica.

“Lucas?”

“O que faz aqui?”, perguntei eu confuso.

“Queria te falar uma coisa. Séria”.

E assim, Bruna explicou que seu namorado era um completo babaca e estavam em vias de terminar a relação, ao mesmo tempo que dizia ela que sempre me admirou e quis me conhecer melhor.

Meus 16 anos sorriram de forma boba e aceitaram a conversa sem problemas, mas com uma condição: deveria ela terminar na mesma semana.

Ela fez questão de tirar a aliança em minha frente e se despedir com um amoroso beijo na bochecha.

De fato, tudo daria certo naqueles próximos dias e não demorou até que firmamos uma relação de verdade.

Ela morava na cidade vizinha, era sempre muito fácil ir visitar. Apesar de eu nunca ter me perguntado por qual motivo ela nunca vinha até minha casa, lá eu era bem tratado. Os pais dela nos davam muita liberdade e até me tietavam das melhores formas possíveis.

Virei amigo de seu pai e por vezes discutimos como o Corinthians havia falhado miseravelmente na tentativa do bicampeonato da Libertadores naquele ano.

Foram uns cinco meses maravilhosos, antes que o próprio emprego de seu pai começasse a atrapalhar. Era um representante importante de uma empresa multinacional e não poderia se prender a uma cidade tão pequena, tendo que volta e meia se mudar.

A princípio a mudança não foi tão para mais longe. Uns 80 quilômetros a mais, mas já foi a causa de um grande distanciamento entre eu e Bruna. Não havíamos terminado oficialmente, mas ela não queria me forçar a manter um relacionamento assim e muito menos eu. Largou o emprego pela mesma distância.

Mas ainda conversávamos. Todas as terças e quintas ela me ligava. Sempre trocávamos mensagens.

Muitas pessoas me falavam, naquela época, que deveríamos tentar e que eu deveria tomar a frente e ir visitá-la. De tanto que isso foi me dito eu resolvi encarar, mas gostaria de fazer uma surpresa. Eu sempre gosto.

Todas as ligações eu escutava muito barulho de cachorro, mas ela não possuía um. Ela me falava todas as noites sobre uma praça que ficava perto de sua casa, que se referenciava por uma bela e enorme manacá-da-serra de vários metros de altura centralizando um belo lugar onde os casais conversavam.

Juntei os pontos e procurei por uma praça na cidade e achei uma justamente ao lado de um centro de adoção de cães. Confesso que tive sorte.

Sem falar a ninguém, programei um domingo para visitá-la. Sai cedo de casa, peguei dois ônibus e cheguei na região por volta das nove da manhã. Procurei por informação nos estabelecimentos próximos, dei o nome do pai dela e me indicaram uma casa de dois andares logo a frente.

Bati alguns minutos de palmas defronte aquele portão que tinha o dobro de minha altura e logo vi o seu pai vindo me encontrar.

“Lucas? Entra!”, sorria aquele senhor de meia idade enquanto portava uma bela caneca escura com os dizeres: God Will Make A Way.

“A Bruna foi dormir na casa de uma amiga. Deve chegar daqui a pouco.”

Os minutos não passavam enquanto apenas assuntos de futebol reverberavam naquela sala.

“Ela já deve estar chegando, quer esperar no quarto dela? Aí eu conto que tem uma surpresa lá”, sorria novamente aquele senhor que visivelmente torcia pela relação.

Aceitei. Vi algumas fotos dela, senti o seu cheiro naquela cama e esperei sentado. Até que a escutei chegando no andar abaixo. Seu pai fez questão que eu ouvisse o: “Tem surpresa no teu quarto!”

Ao abrir a porta, ela respondeu meu sorriso me abraçando forte e me jogando na cama entre beijos e risos. Mas ao mesmo tempo que a impulsão de me beijar a tomou naquela manhã, parou drasticamente e mudou o semblante.

Levou as mãos ao rosto num tom desesperador. Eu perguntei o que havia acontecido e se havia feito algo.

“Não fez, eu fiz”

“Não entendi”

“Lucas, essa semana comecei a ficar com outro cara e parece que estamos indo…” interrompi a fala dela virando de costas e colocando meu tênis.

“Por favor, não saia assim. Eu sei que não tínhamos terminado, mas eu…”

Eu sai sem nem olhar na cara da família e voltei pra casa num domingo que começou ensolarado e simplesmente virou um mundaréu de água. Parecia que meus sentimentos haviam entrado em sincronia com o clima e tudo desabara ao mesmo tempo.

Ignorei ligações, mensagens e sentimentos.

Até que em uma terça-feira seu pai me ligou. Já faziam duas semanas desde o ocorrido e lembro-me do teor da conversa:

“Bruna chora a uns dez dias. Conversa pouco, come nada e falta a aula. Quando comenta algo com a família é se martirizando, se rebaixando e se xingando”

Ouvia eu quieto.

“Por favor, Lucas. Próxima vez que ela te ligar, tente atender. Não posso te obrigar, mas é um pedido de amigo”

“Ela te pediu para me ligar?”, indaguei.

“Não, por isso estou ligando do trabalho, para que ela não saiba”

Eu prometi que atenderia.

Dois dias depois Bruna me ligou. Foi a ligação mais difícil de se atender, a mais complicada de se falar e a mais dolorida de se sentir. Apenas perdoei da boca pra fora, mas disse que não voltaríamos e foi a primeira e única que vez que terminamos de verdade, colocando um ponto final naqueles seis meses de beijos que começaram num atípico encontro de almoxarifado.

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Lucas Spricigo
sentimentalizador

Estudante de Psicologia e jornalista por tabela. Vê sentimento em tudo e exterioriza em histórias.