Laura Rodrigues
maria da ilha
Published in
4 min readMar 28, 2020

--

A política de morte do governo Bolsonaro

Após alguns dias refletindo sobre os diversos debates acerca da pandemia da COVID-19 e observando a atuação do presidente Jair Bolsonaro frente a ela, decidi escrever esse texto. O meu objetivo é esclarecer conceitos desenvolvidos por Achille Mbembe, no ensaio Necropolítica, para posteriormente traçar linhas de análise que permitam a compreensão dos discursos do presidente como uma política de morte. Destaco que as reflexões feitas extrapolam esse momento de crise, sendo cabíveis a Jair Bolsonaro quando candidato e, agora, como presidente.

Para quem não conhece, Achille Mbembe é uma filósofo, nascido na República dos Camarões em 1957. Hoje é professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand. De modo geral, suas obras articulam coerentemente colonialidade, violência de Estado e capitalismo global. No ensaio Necropolítica, principal obra utilizada na construção desse texto, o autor explora a relação de biopoder, soberania e estado de exceção. Desenvolve essa análise para entender quais são as condições para o exercício do poder de matar, de deixar viver ou expor à morte e quem são os sujeitos submetidos a essas circunstâncias. Para tanto, estabelece um diálogo constante com Michel Foucault e Carl Schmitt.

O ensaio começa com uma definição interessante de soberania. Apropriando-se de Foucault, Achille pressupõe que a sua grande expressão está em estabelecer quem vive e quem morre. Não trata-se de uma análise tradicional, uma vez que não se limita às fronteiras do Estado-nação. De forma expressa, Mbembe afirma que a sua grande inquietação é com as modalidades de soberania que possuem como projeto central a instrumentalização completa da existência humana e o extermínio de populações. Destaca que, apesar de geralmente tratarmos de modo diverso, essas categorias não são parte de uma loucura fora do comum, mas constituem a norma dos espaços em que vivemos. Nesse sentido, soberano é aquele capaz de exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida.

Após o desenvolvimento do conceito de soberania como predominantemente o direito de matar, Mbembe examina o estado de exceção e as relações de inimizade, os quais considera a base normativa de tal direito. Em tais instâncias, de forma constante, o poder recorre e produz a exceção, a emergência e o inimigo de ficção. Na sua visão, estariam esses elementos na constituição do poder do Estado na modernidade. Nessas circunstâncias, a divisão das pessoas em quem deve viver e as que devem morrer é essencial. Cria-se o Outro. A existência desse ser diferente torna-se um atentado a vida dos "normais", um perigo absoluto, cuja a eliminação e a estigmatização reforça o poder soberano e a sua segurança.

Não foi à toa que a hashtag BolsonaroGenocida tornou-se um dos assuntos mais comentados do período de quarentena. Depois de pronunciamentos que relativizavam a seriedade da COVID-19 e contrários à ciência e à informação, o presidente Jair Bolsonaro decidiu aqueles que viveriam, que morreriam e os que seriam expostos à morte. Fez isso de maneira mais clara com a Medida Provisória 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses e que, de maneira ainda mais contudente, expunha os trabalhadores à precariedade das relações trabalhistas. Recentemente, por meio de discursos, incentivou a volta das atividades, em contraposição às recomendações da Organização Mundial da Saúde.

No entanto, o direito de matar também pode ser expresso por meio de omissões. É o silêncio em torno das medidas econômicas adequadas para o enfretamento de uma crise que ultrapassa questões de saúde pública, a mudez em relação às estratégias para evitar o desastre do COVID-19 no sistema carcerário brasileiro, o desprezo no que se refere às dificuldades enfrentadas pelas periferias nessa pandemia, além do pouco caso a respeito de outras questões envolvendo a temática.

Em vez de tomar as medidas adequadas, o governo Bolsonaro decidiu criar bodes expiatórios. Para justificar sua incompetência e de algum modo se fortalecer, acusou a mídia de inventar uma pandemia mundial e de espalhar a histeria. Antagonizou com governadores e prefeitos, atribuindo a estes, como consequência das medidas aplicadas, um aprofundamento da crise econômica.

Enfim, espero que esse texto seja apenas o início de um debate. Logo abaixo deixo indicações e referências para quem quiser se informar um pouco mais. Abraços.

Livro:

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de morte, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

Podcasts:

As medidas econômicas diante do COVID-19 e os riscos à democracia - https://open.spotify.com/episode/1dQXZKhXOHe1xUzb89PeJ5?si=Uq1tF1hkSO-JVjvwDVOroQ

Coronavírus: a Lei de Quaretena e o colapso econômico -
https://open.spotify.com/episode/5Qg50Vi6iJp9PvDhXmYkp8?si=ANPj4gzeRJqDALBQU2BVrQ

Um debate sobre economia em tempos de COVID-19 -
https://open.spotify.com/episode/0sdwbBFzDC3SR4EEAsoAjB?si=ewptvJeJS1id0zv2y6JPRw

As idas e vindas do governo Bolsonaro nesta crise -
https://open.spotify.com/episode/2L2PqJTfNSqDDo55gZhwPQ?si=rk4xB4FsTFCIqoeHKK_QDg

Como será quando a COVID-19 chegar as periferias? -
https://open.spotify.com/episode/19i8dQ7SAeq9fLHYH0xBhs?si=GQUVOlx0Sqa-6poSOpee9Q

A crise política que surgiu em meio à pandemia -
https://open.spotify.com/episode/24O3PGpkapEbs7sMTEprVp?si=LB5gIfctQj2JC-UG6P9RfQ

Pronunciamentos do Bolsonaro (é tanta coisa que aconselho vocês a pesquisarem sozinhos)

https://youtu.be/bihqWZpPPhU

https://youtu.be/Lj5W5YrCLCk

https://youtu.be/vp3A_8vywC0

Normas:

Lei da Quarentena -
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm

MP 927 -
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm

--

--