Abutres de terno e gravata

Laura Rodrigues
maria da ilha
Published in
3 min readSep 16, 2020

Ela caminhou até o terreno baldio em que aconteceria o evento. Ao chegar ali, bem no final da tarde, percebeu que não estava sozinha. O ar estava pesado… Sua respiração ofegante deixava transparecer a ansiedade que a consumia, se arrastava como se não tivesse domínio do corpo magro e apático. Olhou novamente ao redor para se certificar que não enlouquecera. Havia realmente uma centena de espectadores em um grande círculo. Todos automaticamente viraram as cabeças para olhar melhor o rosto aterrorizado da menina. Rangiam os dentes, como se estivessem presos em um ciclo eterno de bruxismo. Era a risada dos espectadores que ansiavam pelo evento. Começaram a tirar dos bolsos os celulares que eternizariam o sacrifício daquela estranha.

Parou no centro do círculo, rodeada por humanos-zumbis que dançavam. Não sabia o que viria a partir daí. Em que lugar estavam os comandantes desse ritual? Nunca os tinha visto. Sabia apenas que dos corpos deles pingavam sangue de todas as cores. Seria isso um mito? A imersão nesses pensamentos foi interrompida por um grito estridente. “Vai começar a punição!”. Punição sem defesa. Processo deformado. O rito da morte. Três abutres sobrevoavam a carniça ainda viva. Abutres de terno e gravata. Meu Deus. “Ali estavam”, pensou. Não tinha para onde correr. “Era o destino”, diziam os murmúrios da plateia excitada.

Os animais giravam sobre a cabeça dela. Meu Deus. O que significava aquilo? Eventualmente, desciam para arrancar tufos do cabelo da menina, logo em seguida, os comiam. Ela sabia que tinha uma hierarquia entre eles. Percebia isso pelas roupas que os distinguiam. Nelas, haviam medalhas pelos serviços prestados à pátria. Reformadores morais. Introdutores dos bons costumes. Heroísmo fúnebre. Meu deus, por que esse abutres-coronéis tentam limitar a liberdade dela? Qual pecado essa pobre criança cometeu?

Fizeram voos rasos até ficarem bem próximos do rosto da menina. As asas ensanguentadas batiam na face da puta-pecadora-perversa. As garras rasgavam a carne do pescoço da criança. Ela tentava se proteger com os braços, já completamente arranhados e que pareciam ter sido perfurados recentemente. Tão próximos estavam… Ela conseguia sentir o cheiro pútrido que exalava da bocas das aves asquerosas. Que língua é essa que falam e que não alcançam os ouvidos do povo? Distinguiu alguns termos em latim mas não os compreendia.

Desceu o primeiro abutre. O primeiro julgador. O que aconteceria? A plateia olhava admirada. Enquanto a rodeava, a ave comia pedaços do corpo da menina. Ela vomitava. O choro poderia ser escutado a km de distância. A dor precisava começar antes da sentença ser proferida. O abutre de terno e gravata invocava princípios vazios. “Pela sociedade”, vociferava. “Pelo bem comum”, esbravejava. “Erva daninha”, berrava. Com o bico já ensanguentado, deu a bicada final. Arrancou o olho esquerdo da criança magra. Ela caiu no chão, se contorcendo por conta da dor lancinante que a tomava. “Culpada”, sentenciou o primeiro abutre.

Ela não podia desistir agora. Precisava ficar de pé. Ainda tinha chances. “Recorro”, gritou. A plateia ficou ainda mais eufórica. Era a vez do segundo abutre. O segundo julgador. “Me mostre as mãos e os dedos”, ordenou. Eram mãos calejadas. Com o bico, arrancou as unhas corroídas que ainda restavam. Os músculos da menina tremiam. Sentiu que escorria entre as pernas um líquido quente. Pensou que fosse desmaiar. Não podia apagar agora. Precisava ficar de pé. Ainda tinha chances. O que significava aquilo? Qual pecado essa pobre criança cometeu? Meu deus, por que esse abutres-coronéis tentam limitar a liberdade dela? “Culpada”, sentenciou o segundo abutre e arrancou o olho direito dela.

Não podia desistir agora. Existem vícios nesse rito. “Recorro”, gritou. Meu Deus. Que processo é esse? Desceu o terceiro abutre. O terceiro julgador. Como era robusta essa ave de terno e gravata. Aproximou o longo bico do ouvido da menina pálida, já da cor da morte. Não falava como os abutres anteriores. Se considerava um estrangeiro em sua terra natal. Era superior a raça que o precedeu. Forçava um sotaque estrangeiro. “Esse é puro”, gritava a plateia em gozo. Entre risos de escárnio, o abutre sussurrou. A plateia ficou em silêncio para escutá-lo. “Culpada”, sentenciou o terceiro abutre e rasgou um pedaço da orelha da criança magra. “Crucifiquem-a”, ordenou.

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