Carne dilacerada

Laura Rodrigues
maria da ilha
Published in
2 min readApr 17, 2020

Corri, esperando encontrar como ponto final um abismo. Quem sabe não seria mais fácil chegar ali e me deixar levar. Corri, os olhos marejados e a cabeça fervendo, sem reação. Corri, pensando que deixava para trás todo ódio que destilam. Corri e cai, sem aguentar o peso que pressionava meus ombros.

“O que você está falando, maluca?”, penso. Escreve como se essa fosse a sua cura. E como sarar quando o corte pela faca, o furo pela bala e roxo pela mão do Estado são constantes? “Acorda! Abre os teus olhos, enxerga a realidade nua e crua. Lide com ela. Faço algo, covarde!”, digo. Não existe cura para a pele que é dilacerada a cada minuto. Não existe texto que costure o que foi rasgado. Não existe grito que expresse a dor. Não existe pedido de desculpa que reconstrua uma família amputada. Não existe liberdade concedida que diminua os danos psicológicos de um cárcere prolongado. Não existem palavras que saciem a fome de um povo. Não existe analgésico para isso que você sente.

E por que correr na direção de um abismo? Para tentar esquecer?! E se quando chegar nesse abismo você perceber que todos que estão ali são seus semelhantes? Como esquecer que até aqueles que chegam no abismo têm a sua cor?

“Pula!”, a plateia grita. Pula a criança, o velho, a grávida, o pobre, o preto, o fodido, todo mundo. “Pula!”, grita a plateia anestesiada pelas carnes dilaceradas. Levanta o teu voo da morte. Ponto para a estatística, quem sabe.

Tenta fazer o contrário pra você ver. Explode uma dúzia daqueles que gozam com a tua dor. “Não pula nesse abismo”, penso, já bem confusa. Costura essa ferida, porra! Me viro, corro na direção contrária, ou pelo menos tento. Espero encontrar lá, no final da corrida, distante do abismo, outras peles dilaceradas como a minha.

--

--