Laura Rodrigues
maria da ilha
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5 min readAug 29, 2019

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“Não fale muito. Lembre-se que você está em outra cidade, longe da família e com pessoas diferentes”. São palavras de minha mãe, mulher branca. Ao seu ver, a forma mais eficaz de me proteger seria por meio do silêncio. Seria ele o meu escudo contra as dificuldades que poderia encontrar em sala de aula, no espaço acadêmico. Seria a ausência da minha voz a única forma de passar despercebida, de não incomodar. De evitar, portanto, as violências de uma negra “faladeira” e “ respondona”, vista como arrogante por parte da sociedade.

E assim foi. Me vesti do silêncio por alguns meses porque achei que ele seria meu único escudo. Queria apenas me formar, sem maiores incômodos. Para tanto, tentei ao máximo relevar os acontecimentos da sala de aula e do seu exterior, fingir que não eram comigo e que não sentia os seus impactos na minha subjetividade como aluna negra no curso de Direito. Acreditei que essa seria a forma mais tranquila de conduzir a minha graduação. Nesse processo, que hoje reconheço como uma forma alienação mas que naquele momento achei que era estratégia de sobrevivência, passei a sentir o conforto de ficar em silêncio.

No contexto e espaço de sala de aula, proferir qualquer discurso crítico era difícil porque me sentia exposta e frágil, julgada pelos colegas e por professores. Me sentia uma impostora. Por causa disso, antes de pedir a fala, fosse para fazer algum comentário ou pergunta, meu coração acelerava, minhas mãos suavam e os pensamentos ficavam desordenados. Antes desses momentos, tentava antecipar a reação dos colegas e de meus professores. Comparava o que estava pensando em dizer com algum comentário anterior de um amigo da classe, analisando que talvez aquilo não fosse acrescentar em nada e que, consequentemente, era uma besteira dizê-lo. O ato de fala, tão simples para alguns, era para mim um verdadeiro tormento.

Posso dizer que esse medo não surgiu do nada. O receio de ser vista como atrevida e respondona, de sofrer as represálias por exercer a minha liberdade de fala, seja ela oral ou escrita, têm raízes históricas no Brasil. É fruto de uma hierarquia que remonta à escravidão. Diz respeito à história dos negros brasileiros e do seu letramento, dos empecilhos ao ensino formal, a construção de hierarquias em espaços como esses.

A historiadora Maria Cristina Cortez traz alguns elementos que elucidam a análise histórica dessa questão. Ao tratar do letramento e escolas no período escravocrata, a autora destaca como esses indivíduos negros eram vistos pela sociedade por ocuparem espaços que fugiam à norma hierárquica estabelecida e por acumularem conhecimentos que, em tese, eram exclusivos das elites.

Em determinado momento, a autora destaca que a prática da escrita, leitura e expressão de posicionamentos fortes e políticos, quando exercida por escravos ou libertos, gerava uma certa desconfiança da sociedade. Esse sentimento surgiu principalmente porque as elites associaram essas atividades com os processos de articulação de sublevações sociais da década de 1870 e 1880. Assim sendo, aqueles negros e negras que possuíam certo nível de articulação eram vistos como perigosos por desestabilizarem uma norma prescrita pela sociedade escravocrata, aquela que de alguma forma estabelecia posições e limites que não poderiam ser ultrapassados.

Além de serem vistos como perigosos, os negros, escravos ou libertos, que agiam desse modo eram tidos como arrogantes. Eram caracterizados assim porque o atributo da fala, da escrita, da capacidade de se posicionar e de se articular socialmente eram tidos como comportamentos exclusivos da elites, e não da classe de escravizados. Para exemplificar essa caricatura de negro, a autora cita o escritor Luís Gama, personagem dotado de uma bibliografia surpreendente.

Apesar de ser um debate travado já durante o século XIX, a pauta da educação e inclusão da da população negra em determinados espaços adentrou o século XX e XXI. Maria Cristina Cortez chega a afirmar que, entre as diversas falas abolicionistas e demandas das associações negras do início da República, a instrução sempre foi vista como primordial para afirmação social e, principalmente, para o acesso à cidadania dos setores negros. No século XX, por exemplo, da Frente Negra Brasileira ao jornais impressos, eram feitas reivindicações ao Estado republicano para a inclusão do negro nas escolas e o acesso à educação em todos os seus níveis, sendo estes dois pontos tidos como estratégias para integração na sociedade recém-egressa da escravidão.

Nesse sentido, a educação e a participação nos espaços de aprendizado estavam na centralidade da disputa política. Além de serem vistos como estratégias de integração na sociedade recém-egressa da escravidão, era tida como um processo de reversão das posições de inferioridade que eram atribuídas aos negros e negras por ideologias dominantes da grande parte do pensamento social brasileiro e que por tanto tempo justificaram a escravização.

Apesar de entender que hoje temos outra configuração de racismo, acredito que muitas dessas disputas ainda estão bem vivas. Não é à toa que ainda discutimos entre os nossos pares a necessidade e as consequências de falar, de escrever e de se posicionar espaços políticos estratégicos. Não é à toa que lutamos por uma universidade pública e de qualidade que esteja aberta a nos receber, que pense em políticas de permanência. Não é à toa que exigimos, em uma luta constante, uma sala de aula não opressora, com professores que respeitem nossa cultura e não reproduzam padrões racistas.

Apenas entendi o que se passava comigo logo na primeira fase, bem cedo. Compreendi esses processos históricos e culturais que estavam por trás do meu silêncio. Como sempre fui “faladeira”, percebi rápido o preço a se pagar pelo medo de falar em um espaço tão importante para mim. Consegui ter clareza dessa dinâmica, principalmente, porque iniciei a minha participação em movimentos políticos. Como sempre digo, foi coletivamente que compreendi que o ato de fala, da escrita e de me colocar no mundo como parte de um movimento me tornavam verdadeiramente um sujeito, um agente ativo na história.

Sobre isso, a bell hooks têm análises interessantes a serem feitas. Influenciada por Paulo Freire, afirma que a realização da transição do silêncio à fala é, para aqueles que são oprimidos e explorados e também para os aliados, um desafio extraordinário que cura e possibilita uma nova forma de crescimento. De maneira inspiradora, diz que o “ato de fala, de ‘erguer a voz’, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão da nossa transição de objeto para sujeito”. Desenvolve essas ideias para chegar à conclusão de que a voz liberta e para exaltar a necessidade política de erguer a voz. É apenas como sujeitos que podemos falar; como objetos, permanecemos eternamente sendo definidos e interpretados por terceiros, sem nenhum papel ativo em nossa história.

Enfim, é isso. Espero que o texto contribua na formação de vocês. Aproveito para deixar esse trecho lindo escrito pela bell hooks no livro Erguer a Voz:

“Quando nos desafiamos a falar com uma voz libertadora, ameaçamos até aqueles que podem, a princípio, afirmar que querem ouvir as nossas palavras. No ato de superar nosso medo da fala, de sermos vistas como ameaçadoras, no processo de aprendizagem de falar como sujeitas, participamos da luta global para acabar com a dominação. Quando acabamos nosso silêncio, quando falamos com uma voz libertadora, nossas palavras nos conectam com qualquer pessoa que viva em silêncio em qualquer lugar.” (p. 55)

INDICAÇÕES DE LEITURA:

  1. HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra
  2. HOOKS, bell. Ensinando a transgredir
  3. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido
  4. CORTEZ, Maria Cristina. Letramento e escolas. In: GOMES, Flávio; SCHWARCZ, Lilia (org). Dicionário da escravidão e liberdade

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