Margaridas

Laura Rodrigues
maria da ilha
Published in
4 min readJul 21, 2020

Sinto teu cheiro de erva-doce em todos os cantos da casa. Acho que esse é o odor característico de toda avó. Inspiro, prendendo em mim essa parte de você. No fim de tarde, quando já estou cansada das atrocidades do mundo, vem o cheirinho do teu café, aquele que sempre tomamos na frente de casa, observando as pessoas passarem na rua, a terra batida, o levantar da poeira, o passar do tempo e, por fim, o escurecer do céu.

Nesses momentos, me lembro de cada desenho do teu rosto, do teu cabelo branco, das rugas de sabedoria que te acompanham, da minha cabeça no teu colo, dos ensinamentos da infância e dos cuidados mútuos que a distância não nos permite ter e dar. Recordo dos meus erros e acertos, das tristezas e das felicidades, dos medos e dos ímpetos de coragem, das falas e dos silêncios. Lembro daquilo que fui, do que sou e do que quero ser. E, finalmente, crio raízes, estabilizo e acalmo os pensamentos que todos os dias se repetem.

Das inúmeras recordações que tenho de você, uma se destaca pela insistência com que aparece em meus pensamentos. Lembro que o teu sonho sempre foi ser alfabetizada — processo que te foi negado durante a infância. Você abria qualquer livro e passava minutos com o olhar vago sobre aquelas palavras que nunca te disseram nada.

Ansiosa por aprender, você me pediu para que eu, entre sete e nove anos de idade, te ensinasse a ler e escrever. Antes da novela começar, você me colocava ao teu lado no sofá para iniciarmos as lições. Eu pegava os livros e o caderno, com as atividades já feitas no período da tarde, e ali passávamos horas conversando sobre a vida. Nesses momentos, eu tentava reproduzir na sala de casa o que havia aprendido com a professora na escola. Você ficava feliz ao compreender qualquer palavra. Como criança, eu não conseguia entender os significados desses episódios.

Aos que chegaram até aqui, alerto que o final não é o que vocês devem estar esperando. Minha avó não conseguiu ser alfabetizada. Nossas “aulas” transformaram-se em tão somente leituras feitas por mim e para ela, alguns minutos antes do nosso principal entretenimento efetivamente começar. No entanto, esses momentos tão cheios de significados nos proporcionaram aprendizados para a vida toda e, certamente, marcaram a minha formação.

Anos depois, já na universidade, passei a refletir sobre os significados daqueles encontros e o papel da avó Margarida na minha formação. Esse texto é exatamente sobre isso. Hoje, apesar de dona Margarida nunca ter passado por nenhuma instituição formal de ensino, a considero uma das maiores intelectuais que passaram pela minha vida. Faço essa afirmação apoiada nos conceitos e teses desenvolvidos no livro Pensamento Feminista Negro, de Patricia Hill Collins, socióloga e professora da Universidade de Maryland.

Essa feminista negra norte-americana foi uma das responsáveis por identificar o pensamento feminista negro como teoria social crítica¹. De forma geral, ela defende que as mulheres negras, como parte de um grupo que foi historicamente oprimido e impedido de ocupar espaços formais de produção científica, construíram uma série de saberes, subalternizados e suprimidos², para se opor às diversas formas de opressão. Esses conhecimentos se diferenciam daqueles produzidos pela academia — não apenas porque divergem da norma padrão, assumindo a forma de poesia, música e outras expressões — , mas também porque nascem como uma tentativa de sobreviver e se opor às injustiças econômicas, sociais e políticas (COLLINS, 2019, p.42–43).

Apoiada nessa linha de pensamento, essa socióloga diferencia “acadêmicas” de “intelectuais”. Em determinado momento do seu texto, afirma que o próprio conceito de “intelectual” deve ser repensado. Defende esse posicionamento porque acredita que nem todos as intelectuais foram escolarizadas ou estão circunscritas ao espaço da academia. Por outro lado, nem todas as mulheres negras localizadas nesses lugares podem ser vistas automaticamente como intelectuais. Ao seu ver, realizar um trabalho intelectual “requer um processo de luta autoconsciente em favor das mulheres negras. independente do lugar social concreto em que esse trabalho ocorra” (COLLINS, 2019, p.52).

Hoje, um dos nossos maiores trabalhos consiste em recuperar os saberes subjugados das mulheres negras. Saber que nossas irmãs, avós e mães foram impedidas de ocupar o lugar de “intelectual”, motiva muitas acadêmicas a realizaram todos os esforços possíveis para trazê-las à tona. É um trabalho árduo, mas também muito recompensador e empoderador. Entender a história daqueles que nos antecederam também faz parte do processo de nos enxergarmos como sujeitos.

  1. Nas palavras da autora, essa teoria social crítica abrange um “conjunto de conhecimentos e práticas institucionais” focados nas questões mais centrais enfrentadas pelas mulheres negras estadunidenses (COLLINS, 2019, p. 43). Apesar de tratar do contexto norte-americano, acredito na possibilidade de utilização de algumas de suas teses para entender fenômenos que também acontecem no Brasil.
  2. Patricia explica que essa supressão do conhecimento produzido por mulheres negras não pode ser vista como acidental ou benigna. Na verdade, trata-se de um processo de facilitação do exercício do poder por parte dos grupos dominantes, pois “a aparente falta de dissenso sugere que os grupos subordinados colaboram voluntariamente para a sua própria vitimização” (COLLINS, 2019, p.32)

REFERÊNCIA: COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

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