Laura Rodrigues
maria da ilha
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2 min readSep 30, 2019

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Sem flores no asfalto

Trabalhou e estudou como poucos, mas nunca foi suficiente para si. Passou horas sem dormir pensando em fórmulas mágicas para os problemas que tanto lhe afligiam. Tinha pouco contato com amigos porque não sobrava tempo. Teve enxaquecas porque não parava de racionalizar sobre aquilo que só se devia sentir. Pensou em como manter a si e seus entes queridos a partir de um emprego que pagava mixaria, que não a constituía como mulher. Buscava de algum modo reconhecimento, mas só encontrou solidão e nela se perdeu. Suas responsabilidades transformaram-se em fardos difíceis de serem carregados. E não podia chutar o balde? Não podia parar o tempo? Não podia ter nascido ao avesso?

Morreu. Era uma mulher jovem com pele marcada. Era uma negra que de algum modo conseguiu estar em espaços compostos majoritariamente por pessoas brancas, mas nunca foi realmente parte deles. E quem disse que eles viam nela um ser humano completo? Sua luta era ainda era para ser humanizada. Ainda era carne para ser devorada e osso para ser chupado. Era um corpo criado para o trabalho, com alma corrompida, de sorriso malicioso e incapaz. Era uma mulher que no momento do seu nascimento já tinha como perspectiva a morte.

Morreu foi de cansaço. Que sorte! Podia ter morte morrida de tantas outras coisas. No caminho para o trabalho, podia ter tomado aquela bala de legítima defesa do policial, em nome da segurança pública e do bondoso Deus. Podia ter sido morta porque se posicionava politicamente no palanque. E quem mandou ser enxerida e se meter em assuntos que não eram seus? Podia ter morrido logo quando criança, indo para escola em uma van. E quem mandou ser negra e pobre e ainda querer estudar? Podia ter sido asfixiada por um segurança em um estabelecimento comercial. E quem mandou ter cara de bandida? Tantas possibilidades. Que sorte! Morreu foi de cansaço, sem sujeira no chão, sem alarde da mídia e sem nenhum mimimi.

Não viu nenhuma flor nascendo do asfalto. Ainda assim, quando viva, tentava sonhar. Sonhava por si e pelos demais, tentando aguentar o tranco. Desejou uma sociedade menos cruel. Fez o que pôde. Que sorte! Morreu foi de cansaço.

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