Laura Rodrigues
maria da ilha
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5 min readAug 4, 2019

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Uma introdução sobre cotas e desigualdades

Passei boa parte da minha adolescência sonhando em estar na universidade. Esse sonho, às vezes transfigurado na forma de um delírio, me parecia um pouco distante. Apresentado como um espaço da elite branca, o ambiente acadêmico me parecia intangível. A minha cor de pele, cultura e jeito de ser, pelo olhar construído pela branquitude, eram os principais entraves para ter acesso à educação pública, gratuita e de qualidade. Eram características e marcadores de identidade que, na prática, só podiam ser sinônimos de atraso e capacidade intelectual inferior.

Para superar isso que alguns consideravam obstáculos, me diziam que eu precisava ser mil vezes melhor que qualquer pessoa. Em troca do direito básico à educação superior, diziam eles, eu teria que superar qualquer colega branco, independente dos privilégios que os acompanharam a vida toda. E, nesse processo todo, me anulei subjetivamente. Nunca conseguia me sentir suficiente. Nunca me sentia completa e feliz com o que era e com as pequenas vitórias alcançadas. E o tempo, aquele que em tese deveria curar tudo, não sarava essa ferida que por muito tempo permaneceu aberta.

Foi nesse período intenso que comecei o temido terceiro ano do ensino médio e os estudos para realizar o vestibular. Para poupá-los de todos os dramas dessa fase, digo logo que não passei na maldita prova. Para tanto, foi necessário mais um ano de estudo intenso e solitário, mas sempre com muito apoio de parte dos meus queridos professores, família e amigos. Depois de dois anos, alcancei nota de corte suficiente para entrar na UNIR e UFSC. Passei como cotista PPI.

Embora não tenha dito logo no início do texto, acredito que vocês já tenham percebido que o nosso primeiro tema da série de escritos sobre educação será sobre o sistema de cotas e desigualdades. Devido à extensão dos assuntos, dividirei a temática em análise em diversos textos que serão publicados aqui no blog. Hoje, nosso objetivo é só compreender um pouquinho da história legislativa das ações afirmativas e traçar alguns aspectos gerais sobre desigualdades. Assim que possível, prometo aprofundar a discussão com vocês.

Para quem desconhece, as cotas fazem parte de um modelo de ações afirmativas aplicadas, geralmente, nas instituições de ensino superior e no ingresso no mercado de trabalho. Essas possuem como principal objetivo a diminuição de desigualdades educacionais, sociais e econômicas denunciadas por muito tempo pelo movimento negro. Debatida a alguns anos em diferentes países, a ideia de aplicação do sistema de cotas entrou no cotidiano brasileiro em meados dos anos 90, sendo adotada inicialmente pela UERJ e, posteriormente, pela UNB.

Embora essas duas universidades tenham adotado as cotas, respectivamente, nos anos 2000 e 2004, foi apenas em 2012 que o tema ganhou expansão. Isso aconteceu por conta da lei federal 12.711, que garante a reserva de 50% de vagas às cotas, e com a regulamentação desta pelo decreto nº 7. 824. Para entender melhor como funciona a distribuição, é bem fácil encontrar material sobre isso na internet.

Levando em consideração o nosso contexto histórico e socioeconômico, as ações adotadas se justificam na medida que funcionam como mecanismos de reparação e incentivo à promoção de justiça social. Para entender esse argumento, é necessário ter um mínimo de compreensão sobre a realidade social de boa parte dos meninos e meninas negras do nosso país e entender que suas condições são resultados de decisões econômicas e políticas de exclusão ao longo de séculos. São inúmeros os dados que legitimam esse argumento e, para que vocês os visualizem, os colocarei ao final do texto.

Alguns autores tentaram ao longo da história explicar esse processo de estratificação, resultado das decisões econômicas e políticas mencionadas. Embora sejam muitos, citarei aqui dois de extrema relevância para o debate. O primeiro é o nosso querido Florestan Fernandes, pesquisador branco que por muito tempo dedicou a sua vida aos estudos das relações raciais. No livro A integração do negro na sociedade de classes (2013), ele tenta explicar os motivos de tal exclusão. Desenvolve a ideia de que a chamada “revolução abolicionista”, embora tivesse um grande apelo humanitário, não era em si parte da luta antirracista. Seu pano de fundo era formado, principalmente, por interesses econômicos e sociais de uma raça privilegiada, não podendo esses, portanto, serem considerados porta-vozes da luta negra por qualquer tipo de liberdade.

Devido a esses fatos, quando libertos, os negros não tiveram qualquer subsídio ou ajuda para se integrarem. A legislação, os poderes públicos e a maior parte daqueles que compunham o círculo de pessoas politicamente ativas na sociedade se mantiveram apáticos diante do problema social e econômico do negro. Não precisaram criar leis ou medidas que visassem impedir a ascensão do negro ou sua integração na sociedade competitiva. A sua omissão e o seu silêncio, na maior parte das vezes, foram suficientes para legitimar o status quo. Em todo esse período, o negro se viu diante do dilema de buscar uma integração na sociedade de classes sem ter os instrumentos e a passabilidade para isso.

O que é necessário que vocês entendam é que o resultado principal desse processo foi a estratificação. No livro O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias Nascimento (2016) chega a afirmar que, no Brasil, o negro, em qualquer espaço que ocupe, se vê cerceado por um círculo de discriminação. Assim, lhe são tomadas quaisquer oportunidades de melhora de condição de vida. A partir desses argumentos, refuta a ideia recorrente de que esse processo de estratificação seria meramente econômico, reafirmando o argumento de que o fator racial está intrinsecamente ligado com a posição social e econômica.

É isso, pessoal. Espero que o texto tenha esclarecido alguns pontos. Qualquer dúvida, estamos por aqui.

Dados sobre as condições sociais, econômicas e educacionais do negro no Brasil:

  1. Nexo Jornal https://www.nexojornal.com.br/especial/2018/05/11/130-anos-p%C3%B3s-aboli%C3%A7%C3%A3o

2. 2 minutos para entender desigualdades racial no Brasil https://www.youtube.com/watch?v=ufbZkexu7E0&fbclid=IwAR1EdJgh38xhlTJ8skhu1_lu0kgT4uFvcTVmhLfsmdy9HRTlZEIh3-ZqX5g

3. O mito da democracia racial no Brasil https://www.youtube.com/watch?v=p5Wo6_qumJc&fbclid=IwAR3kqMCpYtxRXC2UW892FNwctlUjAOt7ZgxufIaiDuAt2aW0SB95MnNVuY0

Vídeos que explicam um pouco mais sobre as cotas:

  1. AGU sobre o sistema de cotas raciais- https://www.youtube.com/watch?v=gIrsv_AafHA

2. Debate TVE — https://www.youtube.com/watch?v=ACc3L8W6yhY

3. Cotas raciais na USP- https://www.almapreta.com/editorias/realidade/usp-7-documentario-mostra-a-luta-por-cotas-na-usp?fbclid=IwAR2zAYOogaR4IE4SQs9v6L_aDTBJlctpk-FtwKXt1HdmO7gay5C0zhNOJ7o

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