O esporte como espaço de resistência LGBT

Bianca Costa
#SerEsporte
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9 min readJun 20, 2019

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Excluídos e separados pelo preconceito, foi preciso unir-se para encontrar meios de resistir à LGBTfobia

O ano era 2008. O réu, um juiz. O acusador, um jogador de futebol. O caso pode parecer estranho, porém aconteceu. Richarlyson Barbosa, atacante do São Paulo na época, sofreu ataques homofóbicos da torcida do próprio time. Ele recorreu na Justiça e teve o veredicto contra sua causa, pois, segundo o juiz, gramado não é lugar de homossexual. Na sentença do processo, houve a justificativa de que não há ídolos de futebol que são gays. “Futebol é jogo viril, varonil, não homossexual”, disse Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal Central de São Paulo.

Esse tipo de atitude não é novidade no país do futebol. Segundo dados da Folha de São Paulo, na Copa de 2018, o Brasil foi um dos dez países mais punidos pela Fifa devido gritos homofóbicos e cânticos ofensivos. No ranking, nove países latino-americanos aparecem, sendo o Chile o mais multado, recebendo 794 mil reais — somando um total de 10 multas. O Brasil aparece em sexto, com 336 mil reais devido cinco multas.

Mesmo contando com um Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), esses casos acontecem e não são punidos. A falha ocorre no artigo 243-G, onde é tipificado como infração o ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante a diversas propriedades do indivíduo (cor, raça, origem, etc). Contudo, assim como o resto da legislação, não há algo em relação à orientação sexual e ao comportamento homofóbico.

No país que está sediando uma Copa América e que recebeu um Mundial e uma Olimpíada, casos como esse deveriam ser exceção. Mas não são.

O esporte como de resistência

Magia Sport Club conta com modalidades LGBT nos esportes, como o futebol. Foto: Arquivo pessoal

O medo de locais públicos, como times comuns ou estádios, criou a necessidade de espaços voltados ao público LGBTQI+. Assim nasceu um dos maiores times homossexuais do Rio Grande do Sul. “O Magia surgiu em 2005 com um grupo de amigos que adorava futebol e se questionava por que não podiam jogar por serem gays”, afirma Carlos Renan Evaldt, presidente da organização Magia Sport Club.

Desde então o time cresceu e virou uma associação. Hoje, conta com equipes de futebol feminino, masculino, vôlei aberto, vôlei de competição, handebol e jiu-jítsu, tendo um especialista em cada modalidade e um responsável pelo acolhimento. “Recebemos pessoas de toda sorte, com todo tipo de experiências de vida, idade, gêneros, profissões, cores e credos. Cada responsável pelo acolhimento participa dessa ação, onde conversamos, explicamos as regras do clube, identificamos se a pessoa já tem conhecimento do esporte, e também inevitavelmente acabamos ouvindo suas experiências de vida”.

Segundo Renan, a maior barreira para a prática do esporte é o medo que se acumulou com o passar do tempo, tanto pelo jogo em si como pela experiência de estar em um campo. “A questão do medo do esporte se dissipa no primeiro dia, pois a pessoa vê que está entre iguais. […] Hoje o Magia se coloca como um local seguro para a comunidade LGBT praticar esportes, um local de acolhimento, sem julgamento ou preconceito”, salienta.

Quando perguntado sobre a relação com os estádios, Evaldt afirma que “o julgamento é o menor dos medos. O que afasta o gay do estádio é o medo de ser espancado no entorno. Há vários casos de espancamentos de LGBTs ou de pessoas que ‘se parecem’ com gays, como o caso do pai e filho espancados porque estavam abraçados em público”. O caso citado por Renan foi a violência contra um pai e seu filho no dia 15 de julho de 2011, na Exposição Agropecuária Industrial e Comercial (EAPIC), em São João da Boa Vista. O homem de 43 anos não quis se identificar, mas afirma que teve metade da orelha decepada devido tantas agressões vindas de um grupo de jovens.

Outro caso emblemático da história do futebol envolveu René Higuita, ex-goleiro do Atlético Nacional, da Colômbia. O jogador se manifestou em suas rede sociais em maio para defender um casal de gays que foi flagrado aos beijos em uma partida do time em que René jogava. A foto viralizou e recebeu diversas críticas e ataques homofóbicos. O esportista se posicionou contra essas pessoas e a favor do casal. “Cara, e qual é o problema? Deixem os garotos serem felizes, não estão causando dano a ninguém, além disso Atlético Nacional é amor, é paixão, é alegria, é família! É o mais lindo do futebol… No estádio somos todos bem-vindos e cada um que desfrute à sua maneira”, escreveu Higuita em seu Twitter.

Assim como ocorreu com ele e Richarlyson, e com outros jogadores como Rogério Ceni e Cristiano Ronaldo, os casos de ataques a gays não é novidade e muito menos raridade. O medo de ouvir ou sofrer algo também é algo que Renan comenta. “Eu sou um privilegiado! Vou ao estádio, frequento o futebol e nunca recebi nenhum tipo de preconceito. Mas, por exemplo, jamais poderia ir com um namorado e dar as mãos ou trocar olhares e carinho em público, como ocorre com casais héteros, porque certamente ocorreriam reações negativas e reprovação”.

O temor de ouvir piadas ou sofrer violência acabou afastando o LGBT dos estádios ou forçando-o a se mascarar como alguém que não é. E é esse o fundamento da criação do Magia, segundo Evaldt. “O surgimento do magia se justifica pela necessidade de um ambiente seguro para a comunidade praticar esporte sem ter que incorporar personagens que escondam sua sexualidade ou forma de se relacionar com as pessoas. Esse é um ambiente onde podemos ser quem somos sem críticas sem olhares tortos, sem ressalvas.”

A luta como espaço de respeito

“Pratico judô há 16 anos, então posso dizer que gosto”, afirma Thayna. Foto: William Lucas/Arquivo Pessoal

Algumas vezes denominadas como esportes para defesa pessoal ou local de treino para brigas, as modalidades de lutas vêm se mostrando uma forma de respeito para a comunidade LGBT. “Tanto os homens como as mulheres sempre me trataram de forma respeitosa. E por isso eu acho que eu me sinto bem, por terem pessoas que não me julgam e sim apoiam”, afirma Andreine Boeira, lésbica, 19 anos, praticante de Muay thai há cinco. Ela reside em Camaquã e participa da Equipe Lions, em sua cidade.

Para Andreine, a luta é um espaço de diversidade e pouco julgamento. Ela afirma que poucas pessoas da academia sabem da sua orientação sexual e, por isso, fazem piadas sobre o tema. “Por muitas pessoas não saberem sobre minha sexualidade já ouvi comentários negativos, por exemplo ‘a maioria das meninas que lutam são lésbicas, tu se cuida hein?!’ e coisas assim”, afirma ela.

Por ser um esporte individual e diversificado, com homens e mulheres treinando juntos, o preconceito se vê com menor frequência e mais velado. Segundo Boeira, não há muitas brigas, discussões e ataques pessoas, como vistos no futebol. Essa realidade também é destacada por Thayna Miranda, 23 anos, lésbica e praticante de judô.

“Para mim esporte não tem gênero! Talvez uma predominância de público, mas os esportes são para todos, ou deveriam ser. Quando iniciei no judô, eu era criança e nunca me passou pela cabeça que ele era de menino ou de menina, eu queria era brincar”, afirma a judoca, que começou a treinar com sete anos.

Na sua visão as lutas são espaços mais abertos para a diversidade, resilientes e receptivos. “No futebol tem um público predominantemente de homens, onde não há uma cultura de respeito, bem pelo contrário, então surgem mais casos de preconceito. Já nas lutas existe uma cultura de inclusão, por sua vez menos preconceito ou, se tem, não é tão explícito” comenta Miranda.

Mesmo pouco se vendo, há preconceitos. O meio de resistência dessas judocas é a união e o apoio entre si. “Alguns atletas, às vezes, buscam não chamar atenção por medo de sofrer preconceito. Eu, particularmente, já ouvi as frases tipicamente maldosas sobre o meu esporte. Nunca dei bola. Quando me tornei adolescente e a sexualidade era algo em que eu pensava, vi que no judô tinham muitas meninas iguais a mim, o que traz um sentimento bom, tipo não ‘estou sozinha’, comenta Thayna. E essa sensação, citada pela atleta, traz bons resultados para ela. “Se sentindo bem, o seu foco ali é só fazer o que se propôs a fazer, seja competir, se divertir ou buscar saúde. Também faz com que a sua ‘paixão’ pela modalidade não mude.”, conclui a esportista.

O futebol como união

“O esporte mudou minha vida, mas porque eu encontrei as pessoas certas para jogar” — Felipe Goldenberg. Foto: Arquivo pessoal

“Veado tem muito mais gosto para vôlei porque jogava no colégio, por ser um esporte que infelizmente tem um histórico mais feminino, e pelas mulheres serem mais simpáticas e queridas no jogo”, afirma Felipe Goldenberg, 21 anos. Ele é jornalista de formação, mas tem participação maior no esporte. É ex-coordenador do Pampacats (RS) e cofundador do Tropicats (PE), ambos times de diversas modalidades, como futebol masculino, feminino, vôlei e afins.

“Eu nunca gostei de futebol! Nunca gostei de assistir nem de jogar. Quando conheci o Pampacats eu entrei no futebol meio assim ‘vamo ver como que é, só fazer um teste’ e foi muito divertido. Eu tirei todo o meu preconceito com esse esporte”, afirma Felipe. Ele comenta que, dentro da comunidade LGBT, ainda há o medo de praticar atividades que são mais “masculinas”, como jogar futebol ou ir à estádios. A grande causa disso são as piadas, xingamentos e a violência envolvida nos lugares mais héteros. “Jogar em um time de gays me auxiliou a ter uma relação melhor com o esporte porque todo mundo ali tem uma história parecida. Lá é um lugar onde a gente está para ser livre, afeminado, dançar, rebolar, fazer tudo ao mesmo tempo, piadas e está tudo bem, entende?”, comenta.

Assim nasceu a necessidade de criar times específicos para esse público. Com o passar do tempo, criou-se a necessidade de ligas e competições especiais. Hoje, são dois campeonatos nacionais: um é a Champions Ligay, formado por times LGBT de futebol. E o outro é a GayPrix, criado pelo Pampacats e voltado ao vôlei. “Agora parece que vai acontecer uma gayprix no RJ e a gente tá pensando em participar, até porque é a integração entre todos os times. Tu conhece gente bacana para caramba e é uma festa. Não deixa de ser uma competição, mas é uma festa, é muito divertido”, alega Felipe. No ano passado, Porto Alegre sediou a 2° edição da Ligay, recebendo 12 times de todo o país, sendo 250 esportistas ao total. A 4°, e mais recente, ocorreu em Brasília, sendo o Beescats o campeão da vez. Outra ação que ocorre nas ligas gays do sul é o “Pampa-Gia”, o Gre-Nal dos times LGBT, no qual ocorre o encontro do PampaCats com o Magia FC.

Entretanto, os campeonatos não ficam apenas por isso. Os melhores times gays do país podem concorrer ao Gay Games, o que equivale a uma olimpíada particular. A última ocorreu ano passado em Paris, tendo 24 medalhas para o Brasil. O Beescats, que ganhou a Ligay, ficou em segundo lugar dessa vez, sendo prata no mundo inteiro. O ouro brasileiro veio em dose tripla na corrida de rua, com Ana Animal, nas modalidades 5km e 10km.

Goldenberg afirma que essas atividades são importantes, não somente para a visibilidade e a luta social em si, mas para quem participa. “Eu estou sendo muito feliz jogando assim. Tem sido uma das coisas que mais estou gostando de liderar e fazer parte. Sinto muito orgulho disso e digo que hoje, por exemplo, o esporte mudou minha vida. Mesmo sendo gay e tendo toda essa história de vida, o esporte mudou minha vida porque eu encontrei as pessoas certas para jogar”.

O ex-atleta do Pampacats traz o exemplo de jogadores que entram no time e, com o tempo, aprendem que é muito mais do que só jogar futebol.

“Uma vez um dos meninos fez o primeiro gol dele, mas foi contra. A gente deu muita risada porque foi sem querer. Abraçamos ele e comemoramos por ter feito o primeiro gol, e ele cheio de vergonha, mas depois entrou na brincadeira. Ninguém brigou, gritou, xingou, entende?”

Segundo Felipe, a diferença no tratamento resulta na acolhida e aceite dos jogadores para com o time e o esporte. “Ontem, o Tropicats jogou o primeiro futebol society (aquele em quadra de grama sintética). Dois viados jogaram pela primeira vez e os dois marcaram gol, sabe? Eles adoraram isso. Chegaram meio ‘ai, não sei, estou indo mais para ver’ e depois vê-los jogando, foi muito legal”.

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