HADES

Sacrifício – parte 1

Ele era ninguém. Seu único talento era passar completamente despercebido. As emoções vinham mas não tinham gosto, ele gritava mas não havia som. Sempre a pessoa mediana, esquecível no meio da multidão avassaladora.

Sua existência não tinha sentido. Não é que não executasse direito suas tarefas. Ele era bom nelas mas não era destaque. Era só bom em tudo, mas excelente em nada. Não tinha algo que fizesse seus olhos brilharem e sua alma cintilar.

“Ah, uma tela em branco, é isso que sou” suspirou um dia. Não havia tinta que pegasse nela, eram sempre aguadas demais, diluídas em uma torrente de informações irrelevantes.

Mas não naquele dia.

Ele ouviu os barulhos, antes de vê-las. Tentou fugir, mas era tarde. Rápidas como as correntes marinhas, sutis como predadores noturnos, rasgaram a noite para capturá-lo.

O céu norturno se encheu com seu cântico gutural, a terra tremeu com sua dança caótica. Sagrado e profano se uniram de tal forma que, por um único momento, as barreiras entre o dualismo eterno do mundo foram derrubadas.

As Bacantes riam, belas e cruéis, em volta do insignificante garoto. Aquela noite marcava o final e o início de um ciclo e a exaltação de um deus.

E quando a adaga finalmente encontrou seu destino, o pano branco manchou de vermelho e as sacerdotisas uivaram. Aquele menino que caiu no abismo era agora “Sacrifício”.

Queda – parte 1

A terra o engoliu.

O corpo inerte escorreu sobre a corrente de sangue, enquanto as pedras se fechavam sobre o pálido jovem.

Não havia mais nada naquele momento.

Entregou-se resoluto ao Final, era impossível resistir.

Como o canto da sereia a conclusão vinha, o riso alegre de um amor na saída do labirinto da vivência.

Sentiu os lábios de uma amante tocarem-lhe a alma e no milésimo seguinte silêncio.

A dor que dilacerava seus membros, rasgava sua carne e atravessava sua mente parara.

Jamais imaginara que sua suposta vida afligiria mais que o epílogo.

O vento da queda bagunçava seus cabelos castanhos…

Desde quando caia?

Devia sentir algo agora que passara para o outro plano?

Algo lhe dizia que não era assim que as pessoas passavam para o submundo.

Sacrifício observou as rochas que se afastavam e as gotas do líquido vermelho que caiam junto com sua casca mortal, formando pequenas constelações.

Não havia luta, não havia oposição.

Caia com suas defesas derrotadas e rendidas.

A água o engoliu.

Caronte

Ele o ouviu antes de ver.

Sabia que ia vir, só não esperava que fosse agora.

O menino despencava do céu pedregoso em direção a água, como a chuva cai das nuvens. Exceto que em vez de sair do molhado e penetrar no solo, ele fazia o inverso. Nascia da terra e ia terminar no mar.

Pela primeira vez em milhões de anos, parou o barco.

Observou a cena e o viu ser engolido no abraço úmido.

As almas penadas se agitaram em seu casco.

O minucioso barqueiro havia interrompido seu dever sagrado.

Ah…o Destino ria agora.

Ignorou a risada dele em sua cabeça e virou a balsa na direção do garoto voador.

O remo se movia lentamente.

Chegou até o ponto.

Enfiou a mão na água e escutou os pulmões se encherem de ar quando o puxou para fora.

O jovem o olhou e quando viu aqueles olhos…

Pronto, caíra junto.

“Abyssus abyssum invocat”

“O que?”

Sentiu os espíritos recuarem até o final do barco, todos em um silêncio mortal.

“Hoje eles presenciaram a queda de um ser.”

“Desculpe, não deve ser usual a entrada por cima.”

“Todos caem uma hora.”

“Até na Morte?”

“Principalmente na Morte. Vai saber quando vê-la, cairá também. Assim como eu caí.”

“Mas você está num barco e quem despencou fui eu.”

“Existem outras formas de se fazer isso, criança.”

“Claro.”

Estendeu a mão ossuda.

“Seu nome?”

“Sacrifício.”

O rosto severo se contorceu em uma careta sarcástica.

“Apropriado para o fim.” Riu. “O seu ou o meu?”

“Não entendo.” Falou o garoto pegando a mão estendida.

Estava feito o pacto.

Puxou-o para dentro. Voltou a remar. Os fantasmas abaixaram suas cabeças de forma solene.

“O que aconteceu?” Perguntou o novo passageiro os olhando.

“Um falecimento aconteceu.”

“Como?”

“Por causa da Vida.”

Chegaram à margem.

“Até logo, Caronte.”

“Até nunca mais, Livramento.”

“Mas meu nome é Sacrifício.”

“Também. Para mim é os dois.”

O menino pisou na terra, jogou uma última olhada a figura carcomida e criteriosa empoleirada no mastro.

“Não era criteriosa mais, já que lhe ajudara a chegar do outro lado sem uma moeda.” Pensou.

Continuou a andar.

Perdeu Caronte da visão.

E sentiu o monstro em suas costas. A criatura vinha em sua direção depois de seu banquete perto da água, ele sabia.

Apressou o passo.

E rogou uma preçe aos deuses, para que aquilo nunca o encontrasse.

Uma pena que as orações não foram atendidas.

A. C.
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