João, Maria e uma floresta de concreto e aço
Nota do editor: 18 e abril é o Dia Nacional do Livro Infantil desde 2002, quando a data foi instituída para homenagear o controverso escritor Monteiro Lobato, nascido em 1882 e cuja literatura, especialmente a infantojuvenil, vem sendo questionada, nos últimos anos, por conta de retratações racistas. Mas a conversa de hoje é outra, tendo por ponto de partida a história de João e Maria e sendo proposta pelo professor e contista Alex Costa, em nossa Sala de Visitas. Uma análise profunda e um relato forte sobre infância e abandono. Alex já escreveu sobre Hilda Hilst no Ser Linguagem (clique aqui para ler).
Dos mais de 200 contos de fadas (ou contos maravilhosos) escritos pelos irmãos Grimm, João e Maria (Hansel and Gretel) decerto é um daqueles que cativam lugar peculiar em nossa memória e imaginário. Escritas há mais de dois séculos pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, as fábulas trazidas da tradição oral para o papel, ainda ao final do século XVIII e começo do XIX, foram um ponto divisor no que seria a forma de narrar histórias infantis dali em diante. Não são poucas as referências de “marca Grimm” presentes nas produções modernas, desde moçoilas e suas capas vermelhas a jogar conversa fora com distintas formas de lobos em diversificadas florestas, passando por madrastas más que empunham espelhos e perseguem suas enteadas até meninas plebeias encontrando por acaso seus príncipes encantados. Estamos sempre sendo levados ao contato com cenários, personagens ou diálogos captados, primeiramente, pelos irmãos alemães dedicados à poesia, à prosa e à filologia, além do desenvolvimento do dicionário definitivo em língua alemã naquela época.
Quando falamos em João e Maria, faz-se necessária a percepção de que estamos frente a uma história que remete, sobretudo, ao abandono e ao perdão. Em síntese, João e Maria narra a história de dois irmãos que, vivendo em tempos de cruel escassez de alimentos, são abandonados pelo pai e madrasta no meio de uma floresta para que sobrevivam (ou não) pela própria sorte. Toda vez que leio João e Maria, a impressão que tenho é de que, se a história tivesse seu desfecho aqui neste ponto, sem o vagar pela floresta, sem a casa da bruxa ou os temores que consumiam os corações das crianças, ainda assim seria uma narrativa que choca. Um ponto ainda mais enfático na história: João e Maria não são abandonados apenas uma vez, mas duas. Mesmo sabendo da real e absurda intenção dos pais, em uma primeira tentativa, as crianças conseguem achar o caminho de volta para casa devido à inteligência de João, que faz atrás de si uma trilha de migalhas de pão que liga o meio da floresta à casa dos pais. Somente em uma segunda tentativa pai e madrasta conseguem se livrar das crianças, que finalmente são largadas ao deus–dará.
E depois, o que acontece a João e Maria? Em suma, uma série de fatos que podem ser associados direta e analogamente a problemas sociais múltiplos presentes em nosso tempo. Uma das inúmeras funções da Literatura, como arte da palavra, é a de colocar diante de nós um espelho crítico que mostra o mundo e seus problemas, de geografia específica ou universal. Destaco aqui um ponto crucial da narrativa: a casa da bruxa. Cansados, com medo, famintos e sujos, as crianças encontram uma casa (em meio a uma floresta medonha) coberta de deliciosas guloseimas. Analisando mais a fundo a personagem, temos a impressão de que a astúcia de João, que conhecemos desde o começo da história, poderia ter captado o perigo existente ali e que aquilo não poderia acabar bem, mas quem somos nós e sobre o que nos arriscamos quando estamos, na vida, João e Maria? Será que somos, de fato, as pessoas certas para julgar Joões e Marias que, cansados da mesma miséria quase carcerária da floresta de becos e vielas deste país de castas, entregam-se aos doces fáceis, porém mortais, que a vida oferece? Somos — eu e você — dos que reúnem forças e correm do perigo ou dos que se entregam às guloseimas, mesmo sabendo dos perigos?
Conseguindo matar a bruxa, as crianças voltam à liberdade e encontram dentro da casa um valioso tesouro. Neste ponto, o leitor desavisado de primeira viagem pode criar expectativas sobre o futuro dos irmãos, como foi no meu caso. Imagina-se João e Maria fazendo vida numa cidade, montando uma enorme fazenda, com muitas vacas e riquezas, vida próspera e merecida, depois de tantos percalços, mas, como vocês já devem saber, as crianças tomam a atitude talvez mais improvável para a cabeça de um adulto: VOLTAM PARA CASA. Preciso confessar algo: o que me deixou mais aliviado neste retorno foi saber que a madrasta havia falecido, que agora seriam somente pai e filhos. Não que o fato da morte da madrasta, principal responsável pelas desventuras das crianças, modifique consideravelmente a narrativa, mas para uma mente de áries com ascendente em áries é de uma satisfação que vocês não têm ideia! E foi aqui neste ponto que eu entendi a universalidade e atemporalidade de João e Maria — de forma forte e afetiva.
Durante dois anos me dediquei ao voluntariado em um orfanato especializado no cuidado de crianças portadoras do vírus HIV na cidade de Fortaleza. Foi neste espaço que entendi um pouco mais sobre crianças, infância, doação, formação de caráter, abandono e perdão. Muitas daquelas crianças foram abandonadas nas maternidades após o nascimento; outras foram trazidas de interiores do estado para cuidados e abrigo na Casa; algumas eram filhas de moradores de rua, que também estavam em tratamento em Casa especializada e outras tantas eram órfãs de pais vivos. Estas, não somente sabiam que seus pais estavam vivos, como recebiam visitas semanais dos pais biológicos. Se você vê isso como absurdo, eu nem ouso descrever como me senti vendo aquilo pela primeira vez. Foi uma cena forte, que precisei mastigar por algum tempo. Na minha cabeça, extremamente incompreensível. Cada vez que uma daquelas crianças corria, de braços abertos e sorriso no rosto, para os braços dos pais, eu, de mente dialeticamente literária, não conseguia ver outra coisa à minha frente senão eles, Joões e Marias — na prática. O erro foi ter demorado a entender que meu coração não era mais, nem de perto, como o de uma criança.
Alex Costa. Natural de Fortaleza/CE. Formado em Letras/Português pela Universidade Estadual do Ceará. Amante fiel da literatura — em especial a brasileira. Apaixonado pelas mulheres das nossas Letras, entre elas, uma em especial: Ana Miranda. Pretensões para o futuro? Terminar o primeiro romance que começou a escrever — enquanto isso, tome-lhe casos e contos! Também participa com colaborações literárias em sites e blogs que oferecem espaço para expor um pouco da arte que tanto ama.
Originally published at serlinguagem.wordpress.com on April 18, 2018.