Rompendo silêncios

Por Marcela Tosi

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Blog Ser Linguagem
3 min readFeb 1, 2018

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Nota do editor: Marcela Tosi é a primeira convidada de nossa “Sala de Visitas”, seção do Blog Ser Linguagem em que compartilharemos experiências de leitura. É mais do que uma honra lê-la por aqui: é gratidão.

“O que você tem que saber é que minha vida é dividida em dois, repartida de forma não muito caprichosa. Há o antes e o depois. Antes de engordar. Depois de engordar. Antes de ser estuprada. Depois de ser estuprada.”

Esse é o quinto capítulo de Fome — Uma autobiografia do (meu) corpo, de Roxane Gay. Não é preciso muito para escrever um capítulo, muito menos para nos tocar ou transmitir verdades incômodas. Da compra de roupas e do ato de comer até a viagem de avião passando pelas relações amorosas e com a família, Gay nos coloca em seus sapatos. Uma realidade de violências materiais e subjetivas, mas também de sonhos, da luta pelo que se deseja e de conquistas.

A autora nos mostra como é vivenciar o mundo e a cidade em um corpo indisciplinado e extremamente humano: o de uma mulher que, guardando em silêncio um trauma violento, encontrou conforto na comida e invisibilidade no peso que ganhou. Alguém que criou para si um corpo “não feminino” como forma de se afastar dos olhares devoradores dos homens.

“A gordura criou um corpo novo, um corpo que me envergonhava, mas que fazia com que eu me sentisse segura e, mais que qualquer coisa, eu precisava me sentir segura. Eu precisava me sentir como uma fortaleza, impenetrável. Eu não queria que nada ou ninguém me tocasse.”

Suas palavras nos obrigam a pensar o corpo, próprio ou do outro, em uma reflexão complexa e quase inexistente. Poucas vezes pensamos nos corpos como algo além de uma caixa com problemas a serem resolvidos ou um acessório que deve seguir a moda: o quanto devemos diminuí-lo ou aumentá-lo, o quanto devemos interferir através de cirurgias estéticas, o quanto ele merece ser amado ou odiado baseado no único mérito de sua aparência.

Os capítulos breves, às vezes compostos por três linhas e nunca por mais de oito páginas, nos dão a sensação de estarmos lendo seu diário. Em meio a suas vivências pessoais e reflexões sobre o “problema da obesidade” nos Estados Unidos, a autora nos convida a sair do individual e mergulhar na fome feminina — uma fome (escrita em letras garrafais na capa do livro) não só de comida, mas de tudo aquilo que precisamos para realmente viver.

Roxane Gay escreveu, em 2014, Má feminista e o debate sobre as questões de gênero não foge de sua mais nova obra

A história de seu corpo não é, segundo ela mesma, “uma história de triunfo, mas é uma história que exige ser contada e merece ser ouvida”. Algumas frases que grifei no livro poderiam ser ditas por qualquer mulher, outras tantas precisam ser lidas por todas e todos. Como afirma logo de início, todo corpo tem uma história e um histórico. Toda nossa relação com nossos corpos é atravessada por essas verdades.

Em “O mito da beleza”, Naomi Wolf escreve que

“Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada.”

Fome nos confronta com isso e é dolorosamente honesto. Tão dolorido que, em alguns momentos, a escrita (e a leitura) torna-se mecânica. É também um convite a nos identificarmos e a percebermos que sob as aparências existe uma humanidade que muitas vezes não enxergamos, por ignorância, costume ou negação. Para nós mulheres, especialmente as sobreviventes, negras, gordas e bissexuais como Gay, Fome é a transformação do silêncio em linguagem e em ação, afinal, Audre Lorde já disse, o silêncio não nos protege e não nos protegerá.

Fome: uma autobiografia do (meu) corpo foi traduzido por Alice Klesck e publicado pela Editora Globo em 2017.

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