DEFINIÇÃO DE LITURGIA — Paul H. D. Lang

Filipe Schuambach Lopes
Serviço Divino
Published in
7 min readJul 11, 2022

Texto traduzido com adaptações de Cerimony and Celebration de Paul H. D. Lang.

Como resultado do atual renascimento litúrgico em todos os ramos da cristandade, a palavra liturgia é de uso comum, mas significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Para alguns significa apenas a ordem do culto, ou o rito, ou as palavras que são usadas quando um culto é realizado. Para outros, significa um tipo de culto religioso a que chamam formal e consideram frio e não-espiritual, em contraste com um que chamam informal e consideram como espontâneo, emocional e mais espiritual. O que queremos dizer, então, quando falamos de liturgia?

Liturgia de culto da Igreja
Por liturgia entendemos o culto da igreja como distinguido das devoções privadas, pessoais e em grupos. É verdade, evidentemente, que o culto cristão privado não pode ser dissociado do culto da igreja. A igreja é o corpo de Cristo e todos os verdadeiros cristãos são membros desse corpo, quer participem no culto da igreja, quer se dediquem a devoções privadas ou grupais. Do ponto de vista da pertença ao corpo de Cristo, a vida diária e as devoções pessoais de cada cristão fazem parte da liturgia. São Paulo fala da liturgia deste ponto de vista em Rm 12.1, quando diz: Portanto, irmãos, pelas misericórdias de Deus, peço que ofereçam o seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Este é o culto racional de vocês (liturgia). Mas as devoções pessoais e em grupos, embora não sejam dissociadas do culto da igreja, podem não ser uma expressão do culto a Deus pela igreja universal. Se não forem tal expressão, chamamos-lhes oração privada e não liturgia.

Liturgia é o culto dado a Deus pela igreja universal ou por um cristão individual ou um grupo de cristãos como expressão do culto oficial da igreja.

Orações privadas e devoções em grupos que não são ditas ou feitas como expressão do culto da igreja são, evidentemente, agradáveis a Deus e boas, mas não lhes chamamos liturgia.

Liturgia como uma ação
Os materiais da liturgia incluem coisas como história, teologia, ritos, rubricas, movimentos corporais, música, poesia, livros, arquitetura, pintura, escultura, metalomecânica, artesanato, agulhas e vestes. Algumas ou todas estas coisas estão incluídas no conceito de liturgia. Mas eles não são a liturgia. São apenas os materiais litúrgicos. Só quando os cristãos utilizam estes materiais e fazem com eles o culto da igreja ou o que é uma expressão do culto da igreja é que se trata de liturgia. A liturgia é essencialmente algo que é feito. Neste aspecto, é como a música. Instrumentos musicais, notas, partituras, e livros estão associados à música. Mas eles não são música. São apenas materiais musicais. Não há música até que alguém pegue num instrumento musical e toque as notas. Assim é com a liturgia. Uma ordem de serviço escrita num livro não é liturgia, é apenas um material litúrgico. Não há liturgia até que a ordem de culto seja feita, seja executada. A liturgia é uma ação.

A liturgia de Cristo
Dizer que a liturgia é algo que se faz, que é uma ação, ainda não nos dá o significado mais profundo da liturgia. Temos de perguntar: quem faz a liturgia, por quem ela é feita? Olhado de fora, é suficientemente fácil ver quem faz a liturgia. É feita por cristãos, por pessoas da igreja. Isso é verdade, é claro. Mas será essa a resposta completa? Quem é o verdadeiro executor? Só quando tivermos a resposta a esta pergunta é que poderemos compreender o significado mais profundo da liturgia. É precisamente porque a resposta a esta pergunta foi obscurecida que as pessoas vieram encarar a liturgia como algo feito para elas pelo clero e pelos músicos, e que nela, pelo menos entre os protestantes e muitos luteranos, não tiveram outra parte senão ouvir um sermão e cantar uma série de hinos. Os leigos passaram a acreditar que podiam ir à igreja quando lhes apetecia e quando vinham, vinham a ser instruídos ou entretidos por especialistas naquilo que esperavam que pudesse fazer algo de bom por eles. Muitas vezes não havia intenção de vir fazer algo por si próprios ou de participar numa ação para glorificar a Deus na salvação das almas e na edificação do corpo de Cristo.

Por quem é feita a liturgia? O verdadeiro ator da liturgia é o nosso Senhor Jesus Cristo. Na liturgia ele continua o seu ofício de sumo sacerdote (Hb 7–8). Juntamente com Cristo e através Dele, o ator na liturgia é o sacerdócio real que é o corpo de Cristo, a igreja cristã universal. A partir desta visão mais profunda da natureza da liturgia, podemos ver quão inadequadas são algumas definições da liturgia. A liturgia não é a ordem de culto prescrito ou autorizado de certas igrejas. Não é a forma como algumas igrejas realizam os seus cultos. Tais definições não têm em conta quem realiza a liturgia. A liturgia é uma ação de Cristo e do seu corpo, a igreja. É feita pela congregação na igreja ou por indivíduos ou grupos de cristãos, em nome da igreja universal e como uma expressão do culto da igreja.

Dizer que Nosso Senhor Jesus Cristo é o ator principal da liturgia é dizer, em última análise, que a liturgia é realizada principalmente por Deus, o Deus Triúno. Pois Cristo é a segunda pessoa da Santíssima Trindade e a Santíssima Trindade é inseparável. Deus é ativo na liturgia através da sua Palavra e Sacramentos como Criador, Salvador e Santificador.

Deus em Cristo e pelo Espírito Santo criou a igreja, o novo Israel, o sacerdócio real, a ecclesia, o povo escolhido. Criada e movida por Deus, a principal função da igreja é adorar a Deus, fazer a liturgia. Na liturgia, a igreja oferece sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus, e mostra os louvores d’Aquele que a chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (cf. 1Pe 2.5,9). A atividade do homem na liturgia é a de resposta à atividade de Deus, mesmo sendo esta resposta iniciada e motivada por Deus. Quando a igreja prega o Evangelho e administra os Sacramentos, é Deus que fala e age através da igreja para a salvação e santificação das pessoas. Quando a igreja oferece os seus sacrifícios a Deus, ela oferece-os através de Cristo no Espírito Santo para o louvor e glorificação de Deus. É Deus que inicia e motiva o culto da igreja, a liturgia. A adoração ou liturgia desta igreja é a adoração de Deus por, e em, e através de Cristo em união com os membros do seu corpo, a igreja. Nesta definição vemos o significado mais profundo da liturgia e por ela protegemos a palavra liturgia contra mal-entendidos e uso impróprio.

Terminologia
Nos estudos modernos as palavras liturgia, litúrgico, liturgo e liturgiologista são utilizadas da seguinte forma. Se alguém as utiliza num outro sentido, deve definir o seu significado.

Liturgia é o culto da igreja em distinção do culto privado e das devoções em grupo.
Litúrgica é a ciência ou disciplina da liturgia.
Um litúrgico é uma pessoa que celebra a liturgia.
Um liturgista é um estudioso ou autoridade em liturgia ou no campo da liturgia.

De acordo com este uso dos termos, não seria apropriado aplicar a palavra liturgia aos ritos e cerimônias do culto da igreja ou usá-la quando se trata de orações privadas e devoções em grupos.

Do mesmo modo, é mais correto chamar ao pastor que conduz o culto eucarístico de celebrante, e à pessoa que realiza o culto de Pregação (sem celebração da Ceia) ou Matinas, ou Vésperas, ou qualquer outro serviço menor de oficiante, em vez de chamar um ou outro de liturgista. Um ministro do Evangelho que realiza um culto é, claro, um liturgo, mas este termo também se aplica os outros clérigos e leigos que participam no culto, além do próprio Cristo sendo o principal liturgo. Uma vez que todos os cristãos são membros do corpo de Cristo e do sacerdócio real por quem, em e com Cristo, o culto da igreja é realizado, todos eles são liturgistas nesse sentido. A diferença entre pastores e leigos é que, além de ser um leigo, o pastor detém o ofício do ministério sagrado e tem os deveres adicionais desse ofício a desempenhar. Também entre os leigos algumas pessoas possuem atividades especiais para fazer, por exemplo, organistas, membros do coro, diáconos e acólitos. Mas a liturgia é feita em conjunto pelo peastor e pelos leigos. Ambos são liturgistas que possem a obrigação de fazer o culto da igreja e de participar no mesmo, fazendo as suas partes particulares do culto.

Este ponto é trazido à luz por Dom Gregory Dix no seu livro, The Shape of the Liturgy (A Forma da Liturgia): “Escrevendo no final da perseguição de Dom Gregório Dix, no Outono de 96 d.C., S. Clemente de Roma lembra a igreja de Corinto: ‘Ao sumo sacerdote (o bispo celebrante) foram designadas as suas ‘liturgias’ especiais, e aos sacerdotes (presbíteros) é atribuído o seu lugar especial, e aos levitas (diáconos) são impostos os seus ‘diáconos’ especiais, o leigo está vinculado pela ordenança dos leigos. Deixai cada um de vós, irmãos, fazer eucaristia a Deus segundo a sua própria ordem, mantendo uma boa consciência e não transgredindo a regra designada da sua “liturgia”. (1Cle 40. 41)

Aqui no primeiro século a Eucaristia é enfaticamente uma ação corporativa de todo o corpo cristão, em que cada ordem do leigo ao bispo tem a sua própria liturgia ‘especial’, sem o devido cumprimento de cada uma das quais o culto de toda a Igreja não pode ser cumprido.

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LANG, Paul. Cerimony and celebration. St. Louis: Concordia Publishing House, 1965, p. 3–6

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