O CULTO LUTERANO E O INCENSO

Filipe Schuambach Lopes
Serviço Divino
Published in
9 min readOct 18, 2022

Incenso no culto? Na Igreja Evangélica Luterana?

Pastor da Igreja Luterana (LCMS), Rev. David Kind, inspiração para este artigo, em momento de culto.

Ao iniciar a leitura deste pequeno e humilde artigo, gostaria de convidá-lo para que o faça da forma mais evangélica possível, sem nenhum “pré-conceito” ou julgamento. O que eu trago aqui é uma pequena reflexão como base em um vídeo publicado por uma Comunidade Luterana dos Estados Unidos (LCMS) sobre o uso do incenso no culto (https://youtu.be/iHVeFdJ_z0Q).

Obviamente, o ato de se usar o incenso nos cultos luteranos (e porque não evangélicos) no Brasil não são vistos com bons olhos, principalmente por aqueles que, por algum motivo, não conhecem ou estudam a teologia e prática do culto. Este artigo também não possui o objetivo de institucionalizar ou dizer se deve ou não, a partir de agora, usar incenso no culto. Possui somente o interesse de ampliar o conhecimento litúrgico do povo de Deus, para que assim, de forma pedagógica, a Palavra de Deus seja ensinada com mais eficácia, assim como já é realizado.

Sendo assim, a primeira pergunta que se deve responder é:

incenso é luterano?

A melhor resposta sobre se é luterano ou não, está nas escrituras. Se está nas escrituras, então é luterano!

O incenso e o seu uso possuem origens bíblicas. No Antigo Testamento, por exemplo, Deus ordena que o incenso seja queimado e usado no culto do povo de Israel. Ele diz até qual o tipo de incenso eles devem usar para que esse incenso seja sagrado, diferenciando-o, assim, das religiões e usos pagãos. (cf. Êx 25.29; 30.1–10; 37.25–18).

Mas a questão é: por que eles usam o incenso? É bíblico? Sim! Pode-se argumentar que muitos aspectos do Antigo Testamento foram eliminados no Novo Testamento, contudo, devemos usar um sim e não para esta questão. A princípio, devemos nos perguntar por que se usava o incenso no Antigo Testamento.

Existem duas coisas que o incenso representa na bíblia:

estar na presença de Deus
e as orações da igreja.

Ao olharmos para toda a instituição do uso do incenso por Deus, vemos que este é uma ordem agradável a ele. Agora, o que faz com que Deus goste de incenso mais do que outros cheiros, isso não nos foi revelado. A Bíblia não nos revela. Mas, sabemos que Deus está e fica satisfeito com o seu uso. Mas por quê?

Porque isso nos traz e leva a Cristo!

Altar da Comunidade Luterana St. John, Wheaton, Illinois, (LCMS)

Quando Jesus nasce, os magos do oriente o visitam e trazem consigo presentes: ouro, incenso e mirra (cf. Mt 2.1–12). Tanto o incenso como a mirra são tipos de incenso. Nos evangelhos, não lemos sobre o que aconteceu com esses presentes. Contudo, quando Jesus morre e o seu corpo está sendo preparado para ser colocado na na sepultura, encontramos novamente estes presentes citados.

Em João 19.39 lemos que Nicodemos unge o seu corpo com incenso — e muito incenso:

“E Nicodemos, aquele que anteriormente tinha ido falar com Jesus à noite, também foi, levando cerca de trinta e cinco quilos de um composto de mirra e aloés” (NAA).

Se tentarmos imaginar o corpo de Jesus em seu sepultamento, vamos ver que quando ele é posto na tumba, ele é literalmente embalado nesses pedaços de aloés e mirra (incenso), com o objetivo de estes cheiros cobrirem o cheiro da morte.

Contudo, sabemos que o corpo de Jesus não é corruptível, ou seja, seu corpo não se decompõe nos três dias que está no túmulo. Sendo assim, como cheirava o corpo de Jesus quando ele emerge vivo novamente? Claramente, com o corpo coberto de incenso por três dias, Jesus cheira a incenso. Isso é o que torna o aroma do incenso agradável a Deus, pois é o cheiro do seu Filho.

Sendo assim, quando oramos — e as Sagradas Escrituras relatam nossas orações subindo diante de Deus como incenso (cf. Sl 141.2) -, o que torna as nossas orações aceitáveis a Deus Pai é a intercessão de seu Filho. Nossas orações emanam o aroma de Cristo e elas são levadas a Deus e recebidas por ele. Da mesma forma, no Culto Divino, usamos incenso para marcar os lugares onde a congregação vai encontrar o Cristo Vivo.

Em certos momentos da liturgia, o altar, onde sua Santa Comunhão será dada, onde seu corpo e sangue estarão presentes; os próprios elementos que se tornam seu corpo e sangue são incensados.

O livro do evangelho, onde ouvimos a sua voz também é incensado. O pastor é incensado porque o mesmo fica no lugar de Cristo e fala por Cristo, e o pastor vai incensar todos que estão no Serviço Divino, porque como batizados, eles são parte do corpo de Cristo e Cristo está neles.

Lutero, um teólogo preocupado com o ensino da igreja, em sua reformulação da missa, apenas quis extirpar elementos sacrificiais. Senn afirma que todo o estilo de celebração da missa assumido por Lutero se aproxima da tradição romana. Vestimentas, velas e incenso poderiam ser mantidos, juntamente com altares, crucifixos e o sinal da cruz. O povo não experimentaria nenhuma mudança externa na celebração da missa. Mesmo a cerimônia mais importante da missa medieval, a elevação, foi mantida por Lutero.

Em seu formulário da Missa e da Comunhão para a Igreja de Wittenberg, de 1523, Lutero afirma que na leitura do evangelho “nem ordenamos, nem proibimos velas ou incensos. Essas coisas devem ficar livres”.

Arthur Just, em seu livro Heaven on Earth informa que na igreja pós-constantiniana, com o surgimento das basílicas que comportavam milhares de fiéis, no rito de entrada do clero se usava uma cruz processional grande, para que as pessoas pudessem ver a procissão.Para aqueles que não podiam ver a cruz, pessoas com o turíbulo, para balançar atrás da cruz para identificar a procissão pelo cheiro.[5] Havia também um rito para a entrada do pão e do vinho, no momento do ofertório, paralelo ao rito de entrada no início da celebração litúrgica. Essa procissão incluía uma cruz, incenso e o que mais fosse necessário para fazer um caminho pela congregação com os elementos.

Na liturgia das vésperas, encontramos referência ao incenso, quando no Cântico é dito pelo oficiante: suba à tua presença a minha oração como incenso, tendo como referência o texto de Salmo 141.2.

Jordan Cooper, sobre o uso do incenso, diz:

Da mesma forma, o incenso é frequentemente descrito no livro do Apocalipse como um aspecto da adoração. No Antigo Testamento, o incenso era usado especialmente em conexão com sacrifícios e orações. O incenso envolve o olfato, que muitas vezes é negligenciado nos cultos cristãos modernos. Em Apocalipse 5, diz-se que os seres vivos e os anciãos têm as taças de ouro cheias de incenso, que são identificadas com as orações dos santos oferecidas a Deus. Portanto, o incenso não é somente para o culto do Antigo Testamento, mas é usado no céu junto com as orações. Alguns cristãos argumentam que o incenso não deve ser usado na adoração moderna porque estava ligado ao sistema sacrificial do Antigo Testamento. Como Cristo foi o sacrifício final pelos pecados, o incenso não é mais necessário. Este texto do Apocalipse demonstra, entretanto, que o incenso permanece no céu, onde não são oferecidos sacrifícios pelo pecado. O incenso está ligado não somente ao sacrifício animal, mas também à oração. Enquanto a oração perdurar, o uso do incenso também perdurará.

Em um contexto de um mundo protestante, o luteranismo é exclusivo por outra forma: O culto luterano usa um altar. Durante a Reforma, Martinho Lutero manteve grande parte da cerimônia em torno do culto na Idade Média, incluindo o uso de um altar. No altar, é celebrada a Sagrada Comunhão e são oferecidas orações. A tradição da Reforma, em contraste, rejeitou o uso de um altar e optou por usar uma mesa para a Ceia do Senhor. Porque na Igreja Católica Romana a Eucaristia é vista como um sacrifício que o padre oferece a Deus, para os Reformados, a presença de um altar na igreja está muitas vezes ligada a essa ideia. A fim de se distanciar da visão católica romana, os Reformados removeram completamente os altares. Na mesma linha, os Reformados argumentam que o altar está ligado aos sacrifícios do Antigo Testamento, e como não há mais necessidade de sacrifício animal, um altar foi tornado desnecessário.

No livro do Apocalipse, no entanto, o altar está ligado a um altar celestial de adoração e não ao sacrifício de animais. O lugar onde o incenso é oferecido, sendo a oração dos santos, é sobre o altar (Ap 8.3–5).[7] Claramente, no céu, não há necessidade de sacrifício, mas o altar permanece. Este altar celeste é o lugar onde as orações dos santos são oferecidas, e é por isso que no culto luterano as orações da igreja são feitas no altar. Este altar celestial está diante do próprio trono de Deus. É a porta de entrada para a presença de Cristo. Os altares nas congregações luteranas também são frequentemente cercados por velas, que são descritas em todo o Apocalipse como um item proeminente no céu (Ap 1.12). Finalmente, na igreja, o altar é o lugar onde o céu e a terra se encontram, pois é aqui que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes e onde as orações dos santos são oferecidas a Deus em sua sala do trono celestial.

[…] A adoração retratada no livro do Apocalipse é de natureza totalmente litúrgica. Os santos e os anjos usam orações memorizadas repetitivas, cantam juntos e se curvam em certos momentos do culto. Um altar está presente, no qual são oferecidos incenso e orações. Os santos estão vestidos de vestes brancas. Todos estes elementos refletem um culto litúrgico como normativo para a igreja, pois o modelo de adoração é o céu, e na adoração terrestre, céu e terra estão unidos. Para aqueles que rejeitam formas litúrgicas de culto, deve-se argumentar que a forma de culto difere muito na igreja daquela de Israel e no céu. Embora no culto judeu e no culto celestial, Deus deseja ter orações repetitivas, cantos, incenso, um altar e assim por diante, por alguma razão, estes aspectos do culto cessaram neste período intermediário na Terra, seguindo o reino israelita e antes da consumação do reino de Deus na vinda de Cristo. Tal afirmação não pode ser fundamentada a partir do Novo Testamento.

Sendo assim, toda vez que sentimos o cheiro do incenso, principalmente no momento do Culto Divino, devemos pensar em Jesus. Este é o propósito do seu uso. Assim como vários aspectos litúrgicos, o incenso é mais uma forma pedagógica de ensinar o povo de Deus. A liturgia trabalha com todos os sentidos humanos: visão, audição, paladar, olfato e tato. No pastor e na Santa Ceia vemos Cristo. Nas leituras ouvimos Cristo. Na Eucaristia, tocamos e comemos do seu Corpo e bebemos do seu Sangue juntamente com o pão e o vinho, assim como ordenado, para a remissão dos pecados e fortalecimento da fé. Com o incenso, sentimos a sua presença no meio da sua igreja.

Sendo assim, que possamos com sabedoria, dentro da liberdade cristã e como herdeiros da reforma, usar estes meios que Deus deixou para a sua igreja, “a fim de proclamar as virtudes daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (cf. 1Pe 2.9).

Bibliografia:
KIND, David. Lutheran Worship: Incense. Youtube. Disponível em https://youtu.be/iHVeFdJ_z0Q.

JUST. Arthur A. Heaven on Earth — the gifts of Christ in the Divine Service. St. Louis: Concordia Publishing House, 2008.

COOPER, Jordan. Liturgical Worship — a lutheran introduction. Watseka, IL: Just & Sinner, 2018 [kindle].

SENN, Frank. Christian liturgy: Catholic and Evangelical. Minneapolis: Fortress Press, 1997.

LUTERO, Martinho. Formulário da Missa e da Comunhão para a Igreja de Wittenberg in Obras Selecionadas, v.7. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2000.

Neste link (https://youtu.be/9BxN6JHJ9mw) você poderá assistir a um culto luterano onde o incenso foi usado.

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