O TESTEMUNHO DA IGREJA ANTIGA ACERCA DA EUCARÍSTIA

Filipe Schuambach Lopes
Serviço Divino
Published in
6 min readAug 1, 2022

No primeiro século as referências a uma ordem do culto eucarístico se restringem à menção de algumas palavras, como “doutrina dos apóstolos, comunhão, partir do pão e orações”. Somam-se a estas as palavras de Paulo, “louvando a Deus com salmos, hinos e cânticos espirituais, com gratidão em vossos corações”, ou ainda expressões como “Maranatha”.

É somente a partir do segundo século que se poderá ver o início de uma padronização do culto cristão. Optou-se pela explanação de três documentos que fornecem maior número de informações a este respeito: A Didaqué, os textos catequético-litúrgicos de Justino e a Tradição Apostólica de Hipólito de Roma.

Nas primeiras décadas da igreja cristã, a Eucaristia é apresentada no contexto de uma refeição completa; depois passou a ser integrada com uma refeição comunitária, denominada ágape e, finalmente, como celebração matutina separada da refeição vespertina. Gregory Dix acrescenta que, por algum tempo o termo Eucaristia foi usado com referência à celebração litúrgica e também à refeição.

A estrutura do culto eucarístico, no início do segundo século, obedecia a seguinte estrutura: ósculo da paz, não especificamente mencionado na Didaqué, mas comum já no tempo dos apóstolos, ação de graças sobre o primeiro cálice, oração de graças sobre o pão, oração pedindo pela comunhão cristã, seguida de uma doxologia, alerta para que os não batizados não participem da Eucaristia e, finalmente, uma oração pós-comunhão de bendição ou agradecimento pela revelação de Cristo, pela bênção da criação e redenção e súplica pela união da igreja. A referida ordem conclui com uma fórmula, que poderia ser responsiva, e Maranatha. Finalmente, os profetas ainda podiam bendizer à vontade.

A respeito desta estrutura, algumas considerações. As orações de ação de graças ou bendição ao final das celebrações eram livres, adaptadas às circunstâncias pelos “profetas”, enquanto que as orações dadas como modelo, com características judaicas, antes do cálice e antes de quebrar o pão, já demonstravam a existência de uma estrutura litúrgica. Quanto ao uso da oração do Senhor, há fortes indícios de que nesta época já era utilizada no culto eucarístico, o que é fundamentado pelo uso da doxologia final “pois teu é o poder e a glória pelos séculos”. Portanto, é provável que no tempo da Didaqué, pelo menos três tipos de oração eram utilizados no culto eucarístico: as orações livres, as orações eucarísticas elaboradas e usadas como modelo, e a Oração do Senhor.

Quanto à expressão “Maranatha”, Didaqué refere-se ao uso particular da palavra ao final da Ceia e em conexão com a liturgia eucarística. O fato de não ter sido traduzida, pois já é mencionada pelo apóstolo Paulo aos Coríntios, mas simplesmente utilizada pela comunidade cristã primitiva, reforça ainda mais o seu significado, e aponta para um elemento especificamente cristão da oração litúrgica, elemento que conecta estritamente o dia do culto cristão com a ressurreição de Cristo.

A ideia de união e fraternidade realizada através da presença de Cristo foi trazida para a liturgia da comunhão e recebeu ênfase na oração registrada pela Didaqué. Esta fraternidade é ainda reforçada em Didaqué XIV. 1, que ensina a respeito da confissão de pecados, não caracterizada como penitência, mas como reconciliação com o próximo, com quem há alguma desavença. Isso é atestado pelas palavras: “Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro, não se ajunte a vós antes de ser reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado”. O beijo ou ósculo santo obteve nesse mesmo contexto também o seu uso litúrgico como sinal de amor fraterno e mútua reconciliação. E, como resultado dessa união (com Deus e com os irmãos), a participação de todos na liturgia era afirmada com o amém dito pela comunidade.

Parcialmente contemporâneo ao Didaqué, Justino Mártir faz a primeira descrição mais completa sobre a reunião dominical da comunidade. O culto eucarístico continua sendo uma reunião exclusiva de pessoas batizadas, onde o ósculo santo marca seu início (depois da leitura da palavra, admoestações, exortações e orações). Na sequência, são apresentados o pão e um cálice de vinho misturado com água; é o momento do ofertório. Ao receber das mãos do povo o pão e o vinho misturado com água, o que preside, “na medida de seu poder, eleva orações e igualmente ações de graças”. Justino, “ao invés de fornecer um texto formulado para a anáfora, nos dá indicações de um esquema que aponta para o conteúdo essencial de toda a oração eucarística”.

O povo responde com a aclamação “amém” e manifesta desta forma a sua participação. Ao término da oração eucarística, os diáconos são encarregados de dar “a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água eucaristizados”, que também eram levados para os ausentes, provando que o serviço do domingo não estava restrito à liturgia eucarística, mas que a reunião da comunidade também acontecia para uma troca de bens e consequente distribuição aos menos favorecidos ou que tinham impedimento de estar no culto.

Com o passar dos anos, pouco a pouco, serão encontradas fórmulas mais elaboradas da celebração eucarística. É em Hipólito que se encontrará a primeira oração eucarística muito semelhante às que hoje são conhecidas. O documento em questão, situado na Tradição Apostólica de Hipólito, é possivelmente, em parte composição do próprio Hipólito e, em parte, compilação de outras liturgias utilizadas na sua época. Hipólito descreve detalhadamente duas situações em que a Eucaristia era celebrada: a primeira trata da Ordenação e Consagração do Bispo, e a segunda acontece no contexto do Batismo.

A oração eucarística, também conhecida como anáfora, é proferida pelo celebrante. Esta, de Hipólito, que aqui será apreciada, encontra-se numa ordem para eleição e consagração dos bispos. Não é mencionada a liturgia da palavra que, segundo White, em ocasião especial ainda era separável quando outra celebração precedia a eucaristia. Após o rito de consagração do bispo, menciona-se o ósculo da paz. Segue, então, a liturgia eucarística. Nesta ordem, encontram-se os seguintes elementos:

a- Diálogo inicial do prefácio, seguindo um velho costume judaico;
b- inicia-se uma ação de graças pela encarnação do Filho de Deus e sua paixão e morte;
c- são mencionados os frutos da paixão;
d- o relato da última ceia, com as palavras da instituição;
e- a afirmação de que a igreja age de acordo com o mandamento do Senhor, fazendo isto em memória de sua morte e ressurreição;
f- oferece o pão e o vinho consagrados e, finalmente,
g- pede pelo envio do Espírito Santo a fim de que todos os participantes sejam fortalecidos na fé e, por Jesus, louvem sem fim a Trindade.

White considera a oração eucarística tão importante, pois, tanto na época da época tão importante, como no período do período de tempo após a sua morte, ela se tornou uma declaração sólida da fé cristã. Mesmos que na sua forma judaica foram mantidos, o seu conteúdo era inteiramente dedicado. Martimort afirma que se trata de uma oração coletiva e universal, e não individual; não é meramente emotiva, mas racionalmente elaborada; o povo participa em pé e em silêncio, confirmando com o amém; é trinitária em seu todo e, especialmente na doxologia.

Na celebração eucarística no contexto do Batismo, a liturgia da palavra estava incluída nas exortações aos catecúmenos (“E permanecerão vigilantes durante toda a noite, e se lerá para eles, e serão instruídos”), na renúncia e na profissão de fé e nas orações. O que foi batizado é, agora, “digno, deve participar, na mesma hora da oblação”. O ofertório também é mencionado, quando é dito que “os batizandi” não deviam ter “nada em seu poder, a não ser o que trazem para a Eucaristia”. Após a confirmação com óleo e sinal da cruz em nome do Trino Deus, menciona-se o ósculo santo, então inicia-se o diálogo. Na sequência é mencionado o uso de pão abençoado, vinho (imagem do sangue), leite e mel misturados, para recordar a promessa da terra que mana leite e mel, e que em Cristo essa promessa foi cumprida. O bispo dará graças sobre a água como representação do batismo e, então, conduzirá a distribuição da Eucaristia. Segue imediatamente a ordem para que todos, após a Ceia, apressem-se em fazer o bem.

PIETZSCH, Paulo Gerhard. A Prática da Santa Ceia na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) na tenção popular entre a “teologia oficial” e a “teologia popular”: comparação, interpretação e consequências à luz das origens do culto cristão . Tese de doutorado, São Leopoldo, 2008, p.238–245

--

--