Uma pequena compreensão da Liturgia Luterana da Santa Ceia

Filipe Schuambach Lopes
Serviço Divino
Published in
8 min readJun 30, 2022

Nesse pequeno artigo, baseado em uma vídeo aula do Rev. Prof. Dr. Arthur A. Just, busco ajudar a compreensão da liturgia luterana da Santa Ceia. Não é função deste artigo defender essa ou aquela forma de celebração, mas ajudar você compreender o que acontece na hora da celebração eucarística, afinal, estamos falando de um dos grandes momentos do culto cristão/luterano, onde nosso Senhor Jesus Cristo nos serve com os dons que ele mesmo promete: perdão, vida e salvação.

A liturgia da Santa Ceia vem logo após a liturgia da Palavra, que é finalizada com a oração geral da igreja e que tem como ato preparatório o canto do ofertório[1](Cria em mim, ó Deus, Sl 51). Sendo assim, tanto a liturgia da Palavra como a liturgia eucarística andam juntas. Precisamos considerá-los como uma unidade, pois há um movimento de sinfonia acontecendo neste momento. Você não poder ter um sem o outro. A liturgia da Palavra prepara o caminho para a liturgia da Ceia do Senhor. Para ilustrar bem isso, basta lembrarmos do relato dos discípulos no caminho de Emaús (Lc 24.13–35), quando Jesus, explica as Escrituras aos discípulos (Lc 24.32) e depois abençoa e parte o pão e dá a eles (Lc 24.30). Os discípulos apenas reconhecem ser aquele homem Jesus Cristo depois do partir do pão, que é, naturalmente, a liturgia da Ceia do Senhor. O coração tem que estar ardente antes de ter os olhos abertos e isso tem que preceder a liturgia da Santa Ceia.

O que acontece no momento da liturgia da Santa Ceia é que aqueles que agora vão receber o sacramento, são aqueles que foram preparados para recebê-lo porque ouviram a palavra de Deus. Ele a ouviram através da leitura das Sagradas Escrituras e através do sermão proferido pelo pastor e então, agora estão prontos, ansiosos, famintos e sedentos por este alimento sagrado que eles estão prestes a receber.

Assim como acontece na liturgia da palavra, a liturgia da Santa Ceia é celebrada de forma muito simples nas primeiras igrejas cristãs. Sabemos que já no segundo século da igreja, o que conhecemos como o prefácio da liturgia da Santa Ceia já estava em vigor. O prefácio basicamente são as seguintes frases:

Pastor: O Senhor seja convosco. Congregação: E com o teu espírito.
Pastor: Levantai os vossos corações. Congregação: Levantemo-los ao Senhor.
Pastor: Demos graças ao Senhor nosso Deus. Congregação: Assim fazê-lo, é digno e justo.

Essas três frases, ou seja, este diálogo entre pastor e congregação, são algumas das linguagens mais antigas em nossa igreja e uma das mais poderosas teologicamente.

Quando o pastor saúda a congregação com a frase o Senhor seja convosco, ele está usando a linguagem da presença. É a forma usada pelo anjo Gabriel para saudar Maria (Lc 1.28). Jesus também usa esse tipo de saudação para com Pedro (Mt 14). Esta é uma linguagem que descreve a realidade da presença corporal de Cristo.

Quando as pessoas, em resposta ao pastor dizem e com o teu espírito, elas simplesmente estão dizendo e afirmando que o pastor agora vai falar as palavras de Deus, que através deste falar, pelo fato de que ele está no lugar e pelo mandamento de Cristo, Ele estará presente em, com e sob o pão e o vinho com seu próprio corpo e sangue.

Após isso, o pastor diz levantai os vossos corações. Isso não significa simplesmente ficar animado ou nos levantar. Esta é a descrição de como agora nós, neste lugar terreno, estamos nos elevando aos lugares celestiais. Levantai os vossos corações é uma declaração de como agora estamos sendo elevados ao céu; como o céu e a terra estão se unindo por causa da presença corporal de Cristo.

E quando o pastor diz levantai os vossos corações, as pessoas respondem com grande fervor levantemo-los ao Senhor. Queremos entrar no céu. Queremos nos unir como céu e terra em Cristo e é por isso que agradecemos. Esta é a linguagem da Eucarística[2]. Damos graças ao Senhor nosso Deus porque todas essas coisas, agora, estão acontecendo em nosso favor, por isso é digno e justo que façamos isso. Assim é finalizado o prefácio.

Após esse prefácio, onde há uma conversa entre o pastor e a congregação, o pastor se volta para o altar e proclama o que costumamos chamar de prefácio próprio.

A igreja cristã primitiva não possuía esse tipo de prefácio em suas celebrações eucarísticas. O prefácio próprio é algo que se desenvolve na era pós-Contantiniana, quando então há o desenvolvimento de um ano eclesiástico. A igreja primitiva, após o prefácio, realizava uma oração sobre o pão e o vinho, o que é chamado pelos estudiosos de oração eucarística.

Desde o início, e por 1500 anos, os cristãos oraram na Ceia do Senhor, pois o que Jesus nos chama a fazer é abençoar e dar graças sobre o pão e o vinho de uma maneira reverente a essa presença e fiel à maneira como ele o fez.

As primeiras orações eucarísticas sãos exemplos maravilhosos de como os cristãos entendiam a Ceia do Senhor como estando no contexto dos poderosos atos de salvação de Deus.

Ao ler as primeiras orações eucarísticas, o que se ver é uma recitação, começando pelo Antigo Testamento, de como Deus agiu poderosamente na vida de Israel e agora na vida da igreja para trazer a sua salvação a todos os povos. E assim, o que se vê na oração eucarística é um tipo de sermão, pois o sermão desdobra a Palavra de Deus, mostrando Cristo agora em nós, no mundo e como ele agiu antes de continua fazendo isso. A oração eucarística possui a mesma função.

O clímax da liturgia da Santa Ceia são as palavras de instituição que são as próprias palavras de Jesus, onde, no contexto da oração eucarística, todos esses atos poderosos da salvação chegaram ao seu comprimento — chegou ao seu cumprimento na noite em que foi traído e tomou o pão. E, tenho dado graças, deu-lhes dizendo: tomem, comam, isto é o meu corpo. E depois da ceia, tome, beba, este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, sendo este o segundo grande clímax da liturgia. É através destas palavras — as palavras do próprio Jesus — que o Espírito Santo opera, e de forma milagrosa e misteriosa, por meio da palavra, Cristo está presente no pão e no vinho para nos servir com o seu corpo e seu sangue.

Rev. Prof. Dr. Anselmo Graff consagrando os elementos da Santa Ceia no culto do Encontro de jovens realizado no Seminário Concórdia em 219

Após a recitação das palavras da instituição, a oração eucarística termina com uma recitação de como Deus continua a alimentar seu povo com este alimento sagrado. Em seguida, os primeiros cristãos oravam o Pai Nosso e em algum momento da liturgia cantavam o Sanctus, onde reconheceriam, neste hino magnífico, a realidade do que estava acontecendo na liturgia da Ceia do Senhor.

Como foi mencionado antes, o céu e a terra estão cheios da glória de Jesus. E há aquela frase maravilhosa do Salmo 118 no Sanctus onde dizemos “bendito aquele que vem em nome do Senhor”. Isso é chamado de Benedictus, a bem-aventurança e esta é uma breve descrição de como Jesus vem a nós em seu corpo e sangue. Seu nome foi dito e colocado sobre nós na invocação. Seu nome foi colocado sobre nós na leitura do evangelho, e agora, seu nome é colocado sobre nós na liturgia da Ceia do Senhor.

A distribuição da Ceia do Senhor ao povo de Deus, na igreja primitiva, era um espaço pequeno, contudo elegante e limpo.

O pão foi partido e distribuído. A cálice foi compartilhado. O serviço acabou. Sem grandes movimentos. Não há grandes procissões, mas uma refeição simples realizada na mesa.

É tão importante para nós ver que a liturgia da Ceia ainda é uma refeição. Se você ler o Novo Testamento, verá que os primeiros cristãos celebravam ali uma refeição entre a liturgia da palavra e a liturgia da Ceia. Foi apenas por causa de abusos em lugares como Corinto que a refeição foi abandonada, se tornando simplesmente algo ritualístico. Mas a Ceia do Senhor vai além de ser um mero ritual. É uma refeição sagrada, onde recebemos os dons prometidos por ele.

Sendo assim, o que vimos nos primeiros ritos litúrgicos cristãos são essas duas estruturas simples de palavra e sacramento que estavam na base do culto cristão primitivo.

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[1] Recentemente, a congregação de professores do Seminário Concórdia publicou um documento em relação aos cuidados quanto à celebração da Santa Ceia. Ao apontar e recomendar alguns cuidados necessários para com os elementos da Santa Ceia, escrevem: “Nossa confissão a respeito da santa ceia tem, também, implicações para a maneira de lidar com os elementos do pão e do vinho. Organizar a celebração da Ceia por meio de inscrição prévia é algo que, além de ter um caráter pastoral salutar, permite fazer uma celebração “sob medida”, com a consagração (apenas) dos elementos necessários e sem praticamente nenhuma sobra. Por outro lado, se um pouco mais de pão ou vinho são solicitados durante a distribuição, eles devem ser consagrados na presença dos comungantes. Não há necessidade imperiosa de colocar os elementos da ceia (pão e vinho) sobre o altar antes do início do culto. Historicamente, esses elementos eram separados quando as ofertas eram trazidas ao altar. Assim, do mesmo modo como em muitos momentos e lugares o pastor começa a “preparar” os elementos da ceia enquanto se recolhem as ofertas, esse poderia ser o momento em que acólitos (tendo feito a separação das partículas e dos cálices necessários em função da inscrição para a ceia — caso essa inscrição não tiver sido encerrada antes do início do culto), solenemente, mas sem ostentação, conduzem esses elementos à mesa da ceia. Depois que todos comungaram, os utensílios sacramentais são novamente cobertos ou removidos” (Congregação de professores Seminário Concórdia. Cuidados quanto à celebração da Santa Ceia in Revista Igreja Luterana. v.83, n.1, 2022. Disponível em < http://revistaigrejaluterana.com.br/index.php/revista/article/view/200/177>

[2] Vários são os nomes que podem ser usados para se referir a celebração da Santa Ceia. A dogmática Confessando o Evangelho: uma abordagem luterana da teologia sistemática, diz o seguinte sobre os diversos nomes referente à Santa Ceia: A ceia do Senhor é designada de várias maneiras: a mesa do Senhor (1Co 10.21); a ceia do Senhor (1Co 11.20); a santa ceia, como distinta da ceia comum em casa; a eucaristia, por causa do dar graças (eucharistesas, Mc 14.23); santa comunhão, por causa da comunhão ( 1Co 10.16), e também por causa da união e comunhão de todos os comungantes uns com os outros (1Co 10.16 ) 10.17). O “partir do pão” (At 2.42) também pode ser mencionado como uma referência à ceia. Ela também é chamada de sacramento do altar, porque é o rito sagrado instituído por Cristo que ocorre nos altares das igrejas cristãs. Além disso, como Confissões o termo “missa”, uma designação tradicional derivada das palavras finais do culto (Ite missa est) (Confessando o Evangelho: uma abordagem luterana da Teologia Sistemática, volume 2. Porto Alegre, Editora Concórdia, p. 916).

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