O isolamento criativo

Redação SescTV
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4 min readMay 13, 2020

Diretora Ana Paula Mathias comenta a criação dos interprogramas Nós Negros, exibidos nos intervalos do SescTV.

Nós Negros (Produção: Preta Portê Filmes / Realização: SescTV)

No projeto Nós Negros, dirigido por Ana Paula Mathias e produzido pelo SescTV, dez vídeos artísticos mostram, de forma poética, vários aspectos de negras e negros como pessoas singulares, apresentando uma diversidade de narrativas em que os personagens são o centro de cada história.

Nos interprogramas, artistas falam sobre o que existe de real em suas vidas, sobre seus sonhos e medos, sobre seus corpos como protagonistas de suas existências e de como se veem no mundo; as performances espontâneas também falam de seus valores culturais, memórias, ancestralidade e contemporaneidade.

A diretora dos episódios, Ana Paula Mathias, conversou com o SescTV recentemente, para falar sobre isolamento e a criação dos interprogramas.

Do isolamento a arte

Muitos paralelos continuam sendo traçados entre a produção artística e o isolamento, surgindo recomendações que vão da apreciação das obras de Van Gogh, os livros de Octavia Butler ou o primeiro disco solo de Paul McCartney.

Na literatura, Walden tem sido indicação constante, mas além deste clássico do auto-isolamento, também vale lembrar desses traços na obra de James Baldwin.

Nesses poucos exemplos, pode se imaginar a escolha dos artistas pelo isolamento em busca da obra desejada ou que sua própria personalidade os tenha levado a reclusão, e disso surgiram suas obras primas.

Nós Negros (Produção: Preta Portê Filmes / Realização: SescTV)

Mas, eventualmente, o isolamento pode acontecer sem ter sido planejado, e uma criação artística não deixaria de ser influenciada por essas circunstâncias.

Alguns dos episódios do interprogramas Nós Negros foram gravados no pequeno município de Feldafing, na região alemã da Baviera e, segundo Ana, o projeto não foi pensado para ser executado em isolamento mas que isso aconteceu pelas características da região.

A residência artística não teve como propósito ser isolada, mas, sim, se deu num contexto de isolamento devido a alguns fatores… Feldafing é um pequeno município da Baviera situado à 40km do centro de Munique. A arquitetura da Villa Waldberta, lugar onde vivemos os três meses de residência, é uma casa/castelo totalmente vertical rodeada por um vasto parque situada no ponto mais alto da cidade. E a meteorologia: aconteceu em pleno inverno.

Ainda relembrando a época de criação dos interprogramas, Ana pontua que para os envolvidos, o isolamento foi além daquilo que se esperava apenas por conta da localização e das características da região.

A sensação de isolamento era sentida, também, por serem negros.

Um passado colonial ainda presente no racismo estrutural e institucional que experienciamos no cotidiano, nas idas ao mercado, no trajeto do trem, no passeio pelo centro da cidade, no restaurante ou na entrada de uma casa noturna. A ideia de gravar alguns episódios da série durante a residência, veio justamente pela possibilidade de dialogar num contexto micropolítico de deslocamento físico e simbólico sobre “nós negros”.

Nós Negros (Produção: Preta Portê Filmes / Realização: SescTV)

Esse preconceito — algumas vezes velado, outras bem mais explícito — não passou despercebido, mas como muitos tem feito atualmente, a diretora busca ver um outro lado, e enxergar a oportunidade de repensar um pouco de tudo ao lidar com mais esse obstáculo.

E faz coro ao que várias pessoas dizem e pensam esses dias. Podemos pensar um outro mundo.

Nesse sentido o isolamento junto a uma estrutura questionável pode ser uma grande oportunidade para repensar um outro mundo, se projetar no depois, abrir questionamentos internos e refletir sobre si mesmo. No episódio da Lenna Bahule ela diz. “O espaço criativo é o lugar da suspenção. Quando estamos criativos, isso muda a forma como vemos a vida”.

Assista a todos os episódios de Nós Negros no site do SescTV.

Sobre a diretora:

Ana Paula Mathias é artista visual e desenvolve seu trabalho partindo do uso da linguagem cinematográfica, explorando seu potencial poético para ampliar sua pesquisa sobre a construção da subjetividade e memória. Sua prática envolve experimentações de ficção e registro documental como forma de gerar novas narrativas, arquiteturas e percepções de espaço-­tempo.

Nós Negros é fruto da residência artística PlusAfroT, um programa criado pelo coreógrafo e articulador Mario Lopes e pela curadora Diane Lima.

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