Por um recomeço

Redação SescTV
SescTV
Published in
8 min readFeb 19, 2018

Fugindo de conflitos armados, fome, desemprego e crises políticas, refugiados de diversos países veem no Brasil a chance de reescrever sua história

“Você está louco? Nem sabe aonde fica o Brasil. Quem vai te receber lá, o Ronaldo?”.

As palavras fugiram com desespero da boca da mãe do sírio Abdulbaset Jarour, ao saber que seu filho cruzaria o Atlântico e se mudaria para o Brasil. Apesar do espanto, ela entendeu que o jovem sonhava em começar uma vida longe da guerra e dentro da legalidade. Estava conformada. “Minha mãe disse vá com Deus e não volte mais à Síria”, relembra Abdulbaset.

Ao completar 20 anos, Abdulbaset alistou-se no exército da Síria, onde permaneceria por dois anos. Durante uma invasão de rebeldes do Estado Islâmico à cidade de Aleppo, o jovem, que fazia parte das tropas governamentais, foi obrigado a desertar para escapar da morte. Abdulbaset só entendeu como é sentir-se livre ao cruzar a fronteira com o Líbano. “Senti sair um peso do peito quando vi a praia de Tripolli, respirei aliviado”, conta.

Em território libanês, o sírio conseguiu visto para o Brasil. Depois de algum tempo morando no país, seus recursos financeiros tornaram-se escassos. Nesse momento, Valdívia Oliveira, uma amiga e “mãe brasileira”, como Abdulbaset gosta de dizer, abrigou o jovem em sua casa. Dia após dia, ele segue na esperança de rever sua família, conseguir um emprego e construir um futuro melhor no Brasil.

Hoje, metade da população síria foge da guerra civil que, desde 2011, matou 340 mil pessoas. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), mais de 5,5 milhões de sírios fugiram de seu país. Atravessando o mar ilegalmente, famílias arriscam a vida para chegar a Turquia, Grécia, Áustria, Croácia e Alemanha.

Essa é a realidade de grande parte das vítimas da guerra, com consequências que se manifestam em escala global. A cada três segundos, uma pessoa é forçada a sair de sua casa, segundo dados divulgados pelo Acnur. Hoje, o fluxo migratório de seres humanos supera a marca de 65,6 milhões. Desse número, cerca de 40,3 milhões de pessoas são obrigadas a migrar dentro de seu país de origem, fugindo da fome e de guerrilhas. E ainda 25 milhões procuram abrigo em outros países ou continentes.

“Ao contar minha história, tiro do peito todo sofrimento que senti.”

A congolesa Sylvie Mutiene Mgkamg está entre esses números. Abrigada no Brasil desde 2013, ela vive com a família, em uma casa de três cômodos, orgulhosa por ter uma televisão para as crianças na sala e cortinas coloridas nas janelas da casa - uma tradição africana. Quem vê a felicidade no rosto de Sylvie nem imagina o caminho doloroso que ela percorreu para chegar ao Brasil. “Ao contar minha história, tiro do peito todo sofrimento que senti”, explica. Sylvie teve sua casa invadida por soldados, durante a madrugada, no Congo. Eles jogaram seu filho, ainda bebê, contra a parede e a violentaram.

Tamanha brutalidade aconteceu em decorrência do confronto conhecido como Guerra Mundial Africana” iniciada em 1998. O embate já matou mais de 7 mil pessoas e fez com que 800 mil deixassem suas casas.

Clique aqui e saiba mais sobre a história de Sylvie.

Números que batem à porta

Os refugiados são aqueles que fogem de situações extremas em seu país, como explica José Renato de Campos Araújo, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. “Eles são obrigados a migrar porque entendem que suas vidas estão ameaçadas por perseguições políticas, étnico religiosas e guerras”, afirma. As solicitações de refúgio são aprovadas mediante a comprovação de que há risco à vida do solicitante em seu país de origem.

Durante o ano de 2017, o Brasil registrou 33.866 pedidos de refúgio, o maior número já alcançado desde 2010, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), ligado ao Ministério da Justiça. O órgão é responsável por analisar e conceder ou não abrigo aos estrangeiros.

Entre os pedidos feitos em 2017, governo brasileiro analisou 1.179 solicitações, aprovando 40% delas. Os sírios obtiveram o maior número, 230 concessões, seguidos dos congoleses, com 108. No mesmo período, 473 pessoas foram reconhecidas como refugiadas no país e 706 tiveram o pedido negado.

Em função da guerra civil na Síria, o governo brasileiro desburocratizou o processo de refúgio aos seus cidadãos. Como explica o professor José Renato: “O Brasil assumiu perante a comunidade internacional que a Síria passa por uma grave crise humanitária, e facilitou a concessão de refúgio. Mas, devemos levar em consideração que não há 1 milhão de refugiados em nossa fronteira, como na Alemanha, por exemplo”.

A Venezuela é o país de origem da maior parte das pessoas que pedem refúgio no Brasil, por conta da instabilidade política e da crise econômica que o país enfrenta. Entre todas as solicitações de refúgio feitas no ano de 2017, 17.865 eram de venezuelanos, seguidos de cidadãos de Cuba, Haiti, Angola e China.

Após um terremoto que devastou seu país em 2010, os haitianos veem o Brasil como opção para um recomeço, entretanto não são reconhecidos pelo governo brasileiro como refugiados. “Diplomaticamente, o Brasil considera que o Haiti enfrentou calamidades, não situações de guerra”, explica José Renato. “O governo brasileiro concede somente vistos humanitários, mediante a uma cota estipulada, dado o volume de haitianos que se encontram na fronteira do país”, pontua o professor.

Em terras brasileiras

Desde o ano de 2010, foram criadas rotas terrestres ao Norte e Centro-Oeste do Brasil, para entrada de pessoas no país. Muitas pessoas chegam pela Amazônia e fazem o pedido de refúgio por lá. Outras utilizam o aeroporto de Cumbica e os Portos de Santos, em São Paulo, e Paranaguá, no Paraná.

A principal rota de entrada no Brasil é Roraima, seguida por São Paulo, Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O Estado de Roraima faz fronteira com a origem do maior fluxo migratório recebido pelo país, a Venezuela.

Os imigrantes venezuelanos que chegam em Roraima fogem da fome, desemprego, hiperinflação e instabilidade política em seu país. A prefeitura da cidade de Boa Vista, capital do estado, estima que 40 mil venezuelanos estão vivendo na cidade. Dos quatro abrigos que o estado possui, três estão lotados. Milhares de refugiados vivem em situação de rua ou dividem espaço em casas alugadas.

Sem estrutura para receber os venezuelanos, Roraima pede ao governo federal um plano para interiorizar os imigrantes, levá-los a outras cidades ou estados com maior oferta de trabalho, já que lá o que prevalece é o funcionalismo público.

Quase sempre sem documentos, apenas com as roupas do corpo, os imigrantes tentam legalizar sua entrada no Brasil procurando a Polícia Federal. A PF recebe, analisa e dá encaminhamento aos pedidos de refúgio, que são avaliados pelo CONARE. Até conseguir o visto, os estrangeiros podem permanecer no país e, caso a concessão seja negada, eles têm 90 dias para deixar o território brasileiro, como explica o professor de Relações Internacionais das USP, José Renato.

José Renato de Campos Araújo, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.

Acolhimento à brasileira

Embora o Brasil seja internacionalmente reconhecido como um lugar hospitaleiro, quando chegam no país, os refugiados enfrentam dificuldades. Uma delas é a falta de informação e preconceito social. Grande parte da população desconhece que o refugiado é um fugitivo da justiça de seu país.

Segundo José Renato de Campos Araújo, a barreira linguística é a mais difícil a ser superada pelos refugiados. “O Estado brasileiro, seus órgãos públicos e a rede de serviço social existente no país não estão preparados para atender quem não fala o português”, afirma. As escolas públicas não estão preparadas para receber as crianças em situação de refúgio. Para o professor, o maior desafio do Brasil é promover a integração dos imigrantes, que se acentua com a questão do idioma. Ele defende que ações urgentes para o aprendizado da língua pelos refugiados seriam de vital importância e diminuiriam o nível de desemprego existente entre eles.

Ações solidárias na capital paulista

Com o objetivo de auxiliar os refugiados no aprendizado da língua portuguesa, o Sesc - Serviço Social do Comércio, em parceria com a Acnur e a organização não governamental Cáritas, ministra aulas para pessoas em situação de refúgio, há 23 anos, na capital paulista. A programadora em Educação em Ciências e Humanidades do Sesc São Paulo, Denise Collus, explica sobre o trabalho desenvolvido.

Atenta a questão da imigração e refúgio, a Prefeitura da Cidade de São Paulo criou Centros de Acolhida para População Imigrante. O trabalho pioneiro no país é coordenado pelo Departamento de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente. Os locais de acolhida foram criados especialmente para colocar em prática ações em prol da causa migratória, em parceria com instituições privadas e ONG’s.

“Nos centros, os estrangeiros encontram acolhimento, um lugar para dormir e auxílio, caso precisem de trabalho ou escola. Também fazemos a orientação sobre a regularização migratória e encaminhamento para os órgãos federais”, conta a diretora Andrea Cristina Godoy Zamur. A assistência social a estrangeiros é feita em parceria com instituições como a Cáritas e a Acnur.

A ONG Cáritas, vinculada à Igreja Católica, é referência no atendimento aos refugiados no Brasil. Só na cidade de São Paulo, ela atua há 40 anos. Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Acolhimento aos Refugiados da instituição, conta como é o processo de acolhida ao refugiado.

Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Acolhimento aos Refugiados — Cáritas

Os projetos assistenciais desenvolvidos pela Cáritas são subsidiados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Seu trabalho no Brasil é pautado pelos mesmos princípios e funções que em qualquer outro país: proteger os refugiados e promover soluções duradouras para seus problemas. A organização atua no Brasil junto a ONG’s e empresas privadas.

Avanços na lei da imigração

No ano de 2017, entrou em vigor a nova Lei de Migração 13.445/2017. Ela revoga o Estatuto do Estrangeiro, herança da ditadura militar. Elaborado na década de 1980, ele privilegiava a segurança nacional em detrimento do caráter humanitário que o tema emanava e visava proteger o país da entrada de criminosos.

Clique aqui e saiba mais sobre a nova lei.

Um relato sobre o refúgio no Brasil

Interessados em mostrar como vivem e quem são os refugiados no Brasil, o jornalista Paulo Markun e o cineasta Sergio Roizenblit conversaram com imigrantes de origem iugoslava, congolesa, colombiana, haitiana e síria. Seus depoimentos deram origem ao episódio Refugiados da série Habitar Habitat, do SescTV.

Assista o episódio na íntegra:

--

--

Redação SescTV
SescTV
Editor for

Canal de TV do Sesc São Paulo, promove a educação através da música, artes visuais, dança, literatura, cinema e exposições. www.sesctv.org.br