Lone Survivor (2013)

Não há heróis, ninguém volta para casa 

Matheus Massias
6 min readMar 26, 2014

Lone Survivor (2013), não poderia ser traduzido de forma mais romantizada como O Grande Herói. E isso é ruim. Que fique claro. Em filmes de ou sobre guerra, ninguém é herói, ninguém sai ou sobrevive como herói, nem homens, nem nações. Qualquer forma de heroísmo na guerra é covarde e egoísta, maniqueísta, ainda mais quando se trata de uma produção norte-americana, no contexto do governo George W. Bush. O velho nós e eles, quem é bom e quem é mau, quem causa o mal. Claro, várias questões políticas e ideológicas estão por trás de filmes de guerra, todo um contexto histórico, que une no mínimo dois opostos.

Os créditos iniciais de Lone Survivor são impactantes e um tanto sentimentais, mostram fotos do treinamento de jovens americanos, o sofrimento e a superação. O que distingue, porventura, tais jovens daqueles que um dia viveram em Esparta? Claro, muita coisa. Mas a essência é praticamente a mesma. A preparação para a vida, que futuramente será uma guerra. Não há nenhuma glória nisso. Matar pelo seu país? Morrer pelo seu país? É um tipo de ideologia que não consigo acompanhar. Essa é a mente americana, todavia. As imagens primeiras são footages reais, de treinamento de fuzileiros que realmente aconteceram, e esse é o primeiro impacto da realidade que o filme tenta alcançar. Superação, amadurecimento, tudo isso depois de muito padecer, mas que ainda não chegou em seu fim, se é que existe algum.

O solo americano é a primeira e a última casa. O primeiro e último lar. É o que o filme tenta nos passar, mas não, não é. Ninguém volta para casa, mesmo quando volta. Jalalabad, Afeganistão: o lugar da guerra; o lugar onde os soldados americanos lutam por paz. O primeiro momento do filme nos apresenta as personagens na base militar, alguns de seus sentimentos e suas inquietudes, seus backgrounds, seus futuros casamentos e a casa decorada que vão ter que providenciar assim que voltarem para seus lares, uma miríade de sonhos, que serão quebrados de uma forma tão normal e tão inconcebível ao mesmo tempo. Uma corrida, um café da manhã, e a iminência de uma operação, isso mais ou menos resume o primeiro momento do filme.

A guerra é um universo majoritariamente masculino, viril (e por que não, também, vil?) e cheio de coragem mascarada. Os homens, que já passaram pelo treinamento, e agora impõe respeito, têm barba na cara, ostentando um ar sério e onipotência. E isso fica claro no filme através de closes que o diretor faz questão de enfatizar, a natureza desses homens, por mais que uns pareçam garotos, como o ator Emile Hirsch. Interessante também o contraste que há entre a personagem de Alexander Ludwig, Shane Patton, com os demais; ele parece mais jovem, não tem barba, aparentemente é inexperiente, mas salivante para uma operação, está mais pronto que nunca, afirma para si e para os outros e, através de uma espécie de teste, que é uma das poucas cenas de descontração que o filme proporciona, ele mostra sua capacidade. Esse universo de homens estabelece uma forma de código, do respeito à hierarquia, da competição amistosa à guerra, que é difícil de entender. Aliás, o que é fácil de se entender quando não se vive ou viveu aquilo? Quaisquer formas de entendimento empírico são mais difíceis quando se trata da guerra. Quando se trata, principalmente, de matar e morrer.

O filme gira em torno de quatro personagens, Marcus Luttrell (Mark Wahlberg), Michael Murphy (Taylor Kitsch), Danny Dietz (Emile Hirsch), e Matt ‘Axe’ Axelson (Ben Foster). O primeiro conflito, já na operação, é quando eles se deparam com árabes, que provavelmente são civis, conduzem cabras, mas qualquer ligação com o Taliban é suspeita. Sempre. A tensão nesse momento do filme é conduzida de forma equilibrada, mas acelerada, faz o expectador cair naquela situação, na dúvida de o que fazer com aqueles homens. Lembra, de certa forma, um pouco do problema instaurado em Glória Feita de Sangue, o julgamento que não é estendido além da questão de vida ou morte. O que fazer? A sincronia dos atores, as expressões, o tom da voz, é outro grande impacto no filme. Após a decisão tomada, o filme não para, é uma sequência de embates, é um soco na garganta.

A batalha travada entre os quatro americanos e umas tantas dezenas indefinidas de árabes é épica. Eles abatem bastantes árabes, é verdade, mas também são abatidos, por dentro, e o expectador pouco vê e, quando vê, aquilo parece impossível. Quanto um homem pode aguentar? Ou, melhor, quanto um fuzileiro pode aguentar? Mas, no fim das contas, o que é um fuzileiro, senão um homem….? Um homem que passa por coisas inimagináveis, um homem que tem que enfrentar tudo e todos e superar quaisquer intempéries. Esse homem deveria ser um herói. O que vemos na tela parece humanamente impossível, e é uma das coisas que nos intriga no filme: os tiros levados, os ossos quebrados, a falta de água ou comida, quanto um homem pode aguentar?

Antes das filmagens começarem, o diretor Peter Berg visitou as famílias dos mortos. O pai de Danny Dietz, interpretado por Emile Hirsch, leu para Berg o relatório da autópsia, que detalhava que 11 balas discelaçaram seu filho por dentro. “Ele estava lendo e chorando”, afirma Berg, “e então ele disse, ‘Esse era meu filho. Esse foi o quanto ele lutou. Certifique-se de que você entendeu isso.’” [Traduzido originalmente do inglês, na página do filme no IMDb, na sessão Trivia]

Eles não são homens, são anfíbios, a designação mais tenaz e sólida que um soldado pode ter; mas, o que adianta ser um anfíbio — agora me permito as inúmeras conotações da palavra — quando se está num ambiente quente, seco, pedregoso? Um terreno totalmente inóspito, um lugar que nenhum treinamento pode simular. Afinal, como eles subiram tão rápido?

Os árabes lutam numa terra que conhecem como a palma da própria mão. O ponto de vista, do filme, é o americano, que não pensa nos homens árabes como pais de família, filhos ou irmãos, com seus parentes e suas histórias de vida, mas como inimigos. Mostrados como homens que têm que morrer, é assim que o filme nos faz ficar do lado dos quatro americanos encurralados em linhas inimigas. E isso é difícil. O sofrimento é inerente. O expectador presencia os tiros, o sangue, você está sendo fuzilado na sua cadeira no cinema. Você tem que sofrer também. É a guerra. Ver Lone Survivor é degradante. O impacto, mais uma vez explorando o valor semântico da palavra, é marcante quando eles têm que pular pedras abaixo para se salvarem, rolando ora num terreno mais amigável, ora em material sólido, duro, mas em ambos batendo costas, cabeças, ralando o rosto. Esses homens não tem mais rostos, seus pêlos faciais parecem arte moderna banhada no próprio sangue.

Peter Seberg, diretor o qual eu já havia assistido Tudo Pela Vitória (2004) e Hancock (2008), parece ter realizado algo bem interessante com O Grande Herói, por mais abjetas que as questões ideológicas e heroicas sejam. A construção do clima de tensão entre os atores e suas respectivas personagens, os conflitos e sua sincronia, a guerra em si. Quando achamos que o diretor dará trégua para os soldados, ou melhor, quando achamos que Berg nos dará algum sossego, é quando somos mais uma vez surpreendidos, e tem-se certeza de que aquilo nunca terá um fim. O fim que não existe, a promessa de volta para casa, será que é real? Alguém lembrou de Guerra ao Terror? Mak Wahlberg, o único sobrevivente — como o título em inglês sugere, e não, isso não é um spoiler, aliás, nem chega perto do que o filme realmente é — deixa uma parte sua naquele lugar, com aquele abraço que dá, ao fim do filme, que nos surpreende até seus derradeiros instantes.

O expectador sairá ferido. De uma forma ou de outra.

Mas vai voltar para casa.

Ou não.

Florianópolis, 26 de março de 2014

M. B. Massias

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