O Som ao Redor (2012)

Crítica

Matheus Massias
6 min readJan 18, 2014

O Som ao Redor é um filme despretensioso. E, a partir desta premissa podemos começar a pontuar o filme: estreia de Kleber Mendonça Filho em direção de longa, o filme pinta o retrato de uma classe média recifense e seus eventuais percalços e trivialidades ao longo do quotidiano. Despretensioso pois, para início de conversa, seria um tanto complicado escrever uma sinopse para o filme; o que falar dele, sem denunciar, logo de cara, o seu final?

Começamos com um long take que segue os futuros apresentados irmão e irmã, ele de bicicleta, ela de patins, ao longo do que seria a garagem de um prédio; uma passagem estreita se aproxima, a menina para, senta, e continua com os patins numa quadra, onde há crianças brincando, jogando bola, e várias babás tomando conta delas. A despretensão do filme é mostrar o quotidiano de pessoas simples, com simples afazeres, mas que, até mesmo nas coisas mais absurdas, são simples. Dividido em três partes, o filme basicamente circula em volta de três a quatro personagens: Bia (Maeve Jinkings), então dona de casa (?), e seu conflito com o cachorro da vizinha que late e uiva dia e noite, o que faz ela tomar algumas decisões ao longo do filme; João (Gustavo Jahn), neto de Seu Francisco (W. J. Solha), senhor respeitável da região e suposto dono da rua, João trabalha para o avô a fim de mostrar os apartamentos a futuros condôminos, emprego o qual João afirma mais tarde detestar; Clodoaldo (Irandhir Santos), o personagem-chave, que toma de assalto o rumo daquele bairro onde mora João e sua família, e muitos outros moradores.

Bia, mãe de família, com duas crianças e marido, passa o dia em casa, com ações rotineiras, como lavar roupa e comprar água, duas coisas que, mesmo sendo banais, são mais que isso, mas nunca pretensiosas. Aliás, quem nunca comprou maconha do entregador de água e se masturbou na máquina de lavar? Uma das cenas mais poéticas do filme é quando Bia entra no quarto, munida de um aspirador de pó numa mão e um baseado noutra e, a fim de não deixar vestígios de seu ato, Bia liga o aspirador de pó e este suga a fumaça produzida pelo seu cigarro, como um beijo entre mulher e máquina, às escondidas, no quotidiano mais familiar. E se torna perceptível ao longo do filme a relação de Bia com aparelhos eletrodomésticos: a máquina de lavar, o aspirador de pó, a televisão de quarenta polegadas que ela compra e recebe em casa, além do aparelho (importado!) que inibe o latido do cachorro. A relação de Bia com esses pertences mostra e aponta as dependências quotidianas que temos com a tecnologia, principalmente quando se pertence a classe média.

João, o personagem que, a priori, conduz maior parte do filme, é apresentado dormindo com uma moça, Sofia (Irma Brown), no sofá, estão nus e acordam com o barulho da empregada que chega de manhã cedo. Os dois tentam sair de fininho da sala, mas de esguelha ela avista os dois nus se direcionando ao quarto, e sorri. Na sala, vestígios da noite passada: garrafas e mais garrafas, muitas Sterllas Artois. Bebida de playboy? Talvez. Talvez pudéssemos chamar João de playboy não fosse pela atitude boa e terna do rapaz para com o resto das pessoas ao seu redor, quem sabe esse epíteto coubesse bem melhor ao seu primo, Dinho, que tem fama ruim no lugar onde moram. Algumas cenas com o casal, incluindo nudez, são bem triviais, como as de qualquer outro casal, ou jovens que se conhecem por acaso e pretendem ficar e se relacionar, tomando o sexo como algo trivial também. Questionados pelo avô, numa casa de campo, onde eles passam um dia, os dois riem incrédulos da pergunta do avô sobre casamento, pois isso depende, “depende da vida”. Há até uma piada sobre, num de seus momentos íntimos, Sofia pergunta a João sobre a família do rapaz, e para concluir a conversa, Sofia pergunta se João é rico, ele diz que sim, e ela propõe casamento. No mais, João trabalha para o avô, como se fosse um bom capataz, apresentando apartamentos a futuros inquilinos e até participando (pela metade) de uma reunião de condomínio.

Seu Francisco é a figura-mor do filme, sempre imponente e diria até com certa sabedoria, com a ímpar personalidade nordestina que funde passado e presente, pois um reflete o outro. Tido como o dono da região, ou pelo menos da rua onde o filme se passa, nada passa se não passar primeiro pelas mãos do senhor de cabelo e barba brancas, que sai tarde na noite para um banho de mar numa área que avisa perigo, pois há tubarões.

Clodoaldo, homem com seus trinta e poucos anos, alto e fino, tem conversa séria e direta com os moradores: promete segurança e tranquilidade. Mesmo prometendo segurança e tranquilidade através de uma companhia de seguranças, e sempre ao lado de seu escudeiro que, cego de um olho, é comparado a Lampião, a personagem de Clodoaldo traz curiosidade, frequentemente com o celular em mãos, que além de ter o número dos moradores, tem também fotos e vídeos de fatos que já aconteceram consigo. Clodoaldo é o personagem-chave na trama do filme, que traz um desfecho inesperado a ele, mas que apresenta talvez momentos sutis de sua verdadeira meta.

Mesmo com seus diversos tons quotidianos ao longo do filme, O Som ao Redor traz inúmeras simbologias e camadas de nonsense (?), como o suspense por trás de algumas cenas que colorem o dia-a-dia das personagens: do banho de cachoeira com um segundo de torrente de sangue, aos barulhos no assoalho e o close nos rostos assustados e curiosos de João e Sofia; o sonho pavoroso que a filha de Bia tem com inúmeras pessoas pulando o muro e entrando na casa e se amontoando num espaço comum, passando pelo vulto de uma pessoa negra enquanto Clodoaldo aproveita o quarto de uma casa de um morador que está ausente para momentos de prazer com a empregada de Seu Francisco. Outra cena que chama a atenção é quando João e Sofia, em sua viagem para o lugar onde era o engenho do avô, vão ao cinema abandonado do lugar, ele cobra dela dois reais para poder entrar, e isso, que poderia acontecer de forma “invisível”, é mostrado de fato, com uma nota de dois reais passando das mãos de Sofia para João; já no cinema, os dois fingem ver um filme, em que a trilha sonora indica ser de terror, e o casal sai abraçado do cinema, focando nos dois e depois dispersando para um plano que mostra todo o estabelecimento, inclusive as letras indicando ser um cinema (outra passagem de metalinguagem é da menina, que faz aniversário, com sua amiga encenando um diálogo perto da piscina). Essas cenas, a princípio, parecem não ter importância nenhuma no filme, mas por trás delas talvez estejam o medo inconsciente que temos no nosso dia-a-dia; seria o sonho da filha de Bia um medo perante ao assalto na calada da noite? E a torrente de sangue na cachoeira, um passado marcado por mortes que prometem outras adiante?

O som ao redor é o som mínimo e máximo das coisas, do cachorro do vizinho que nos tira a paciência de manhã e de noite quando queremos dormir, da música que escutamos em casa, da bola chutada contra a parede, dos patins rolando no chão, da batida de carro, da música de aniversário, o som das bombas que são estouradas para assustar o cachorro que se interconectam com o som de possíveis tiros desferidos naquela noite.

Belém, 17 de janeiro de 2014.

--

--