NIRVANA EM SÃO PAULO 1993–16/01/1993 | análise do show

Luis Eduardo C. Bortotti
Setimo Volume
Published in
11 min readJan 26, 2018

“Começa festa do Hollywood Rock” era a frase que estampava a capa do Estadão na manhã do dia 16 de janeiro de 1993. Pelas páginas da Folha, uma pequena imagem no canto esquerdo mostrava Kurt Cobain desembarcando. Naquela sábado, o capítulo Nirvana em São Paulo seria escrito na história da banda.

O trio de Seattle era a grande atração da segunda noite do Hollywood Rock, que ainda teve Dr. Sin, Engenheiros do Hawaii e L7. Na noite anterior, os Chilis Peppers e o Alice in Chains comandaram a noite no Estádio do Morumbi.

Nirvana em São Paulo, a imprensa e o festival

Mal estava o Nirvana em São Paulo e as polêmicas já haviam sido soltadas pela imprensa brasileira, na época, mal acostumada a presença de grandes artistas no país e com uma obsessão em saber tudo que eles faziam.

Uma entrevista da Veja apontou que Krist Novoselic considerava 80% dos seu fãs idiotas. O baixista desmentiu como “seria idiota falar isso” e alegou que foi muito mal interpretado. De fato, também havia uma certa preocupação em relação aos shows que a banda realizaria no Brasil. Os ruídos do bizarro show realizado na Argentina chegaram aos ouvidos da imprensa brasileira e eram lembrados naquela manhã.

Como o festival era o grande evento do país, ele dominava as partes de cultura dos principais jornais. A Folha até dedicou um caderno especial para o assunto. Nele, não hesitava em destacar reclamações de Kurt, e do próprio Nirvana, em relação ao sucesso e ao assédio dos fãs da América do Sul.

No mesmo, Dave Grohl ainda desmentiu que o Nirvana havia solicitado o acompanhamento de um psicólogo durante os shows em terras brasileiras. “Vocês da imprensa são foda. Escrevem o que querem, e essa mentalidade de tablóide que existe na América. Sei lá, escreve o que você quiser, escreve aí que eu pedi quatro psicólogos”.

Pré-Show

Trancados no Maksoud Plaza Hotel, os integrantes limitaram as horas antes da passagem de som e o do show em conceder entrevistas e ficar vagando pelo saguão. Em certo momento, Kurt desceu do seu quarto descalço para comer mousse de chocolate no restaurante do hotel e foi cercado por fãs. Um deles pediu para que autografasse uma propaganda do filme Singles e uma capa de um disco do Pearl Jam. Kurt rasgou a capa do CD, “bad, bad…”, disse ele, mas deu o autógrafo.

Dave Grohl relembra posteriormente: “em São Paulo, tinha uma loja de presente do hotel onde estávamos que vendia Valium. Ou algo parecido. No momento de ir para o estádio tocar, fui procurar o Kurt e ele estava lá nessa loja, tomando um comprimido atrás do outro, sei lá quantos. Fiquei horrorizado”.

João Gordo e Alê Briganti

João Gordo conheceu Dave Grohl em 1989 na Holanda, durante primeira turnê europeia do Ratos de Porão. Em Amsterdã, eles dividiram a noite com a banda Scream, da qual Grohl era o baterista.

No dia 16, João Gordo e Alê Briganti, do Pin Ups, foram até o hotel em que as bandas estavam hospedadas para falar com Dave. Ele ainda não estava lá, mas Gordo reconheceu Big John, guitarrista do Exploited e roadie de Cobain, que era amigo de uma amiga dele. Assim, eles passariam o resto do dia ao lado do Nirvana.

João Gordo lembra que a banda estava de saco cheio com toda a bajulação que estavam recebendo e que Kurt não sorria em nenhum momento. Antes do show, ele e Alê acabaram com a imagem do festival para o Nirvana, contando que se tratava de um festival capitalista, que seria transmitido pela maior emissora do país e que os ingressos tinham preços nada acessíveis. “Se o show foi uma bos**, foi por minha culpa e dos meus amigos”.

Passagem de Som

Pequenos trechos da passagem de som do Nirvana em São Paulo foram transmitidos pela cobertura da MTV. O apresentador Zeca Camargo, que cobriu toda a estadia da banda no Brasil, lembra que durante a passagem, Kurt chamou Krist e disse, “escuta isso!”.

Ele tocou um riff pesado de guitarra e soltou um grito tão assustador como só Cobain era capaz. Krist pediu para Kurt tocar mais vezes. “O que eu tinha visto, como pude comprovar alguns meses depois, quando In Utero foi lançado, era o nascimento da faixa “Milk It”.

O Show do Nirvana em São Paulo

Os portões do Estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi) estavam marcados para abrirem às sete e meia da noite. O público de aproximadamente 110 mil pessoas era o ápice da carreira da banda. E naquela noite, depois do incrível show do L7, estava em plena combustão. Naquela noite, eles veriam o antológico show do Nirvana em São Paulo.

“TODOS! Tenham um bom show e se divirtam bastante. Muito obrigado e me desculpem, se alguém se ofendeu. Com vocês, a maior banda underground de todos os tempos… NIRVANA!!!”

Com o trio já no palco bebendo suas cervejas, João Gordo toma o microfone e grita o trecho acima, em uma espécie de apresentação da banda. Palavras que traduzem exatamente o que foi o show. O pedido de desculpas de uma banda underground em sacanear um grande festival, se desculpando aos seus fãs, mas desejando que eles se divirtam.

Hoje, vendo os trechos publicados na internet (em torno de 1 hora do show) é gostoso entender a zueira que foi aquela apresentação. Na época, a atitude dividiu opiniões. Confuso do começo ao fim, o show é digno de ser reassistido inúmeras vezes. Mas, o seu teor de raridade com o fato de nunca ser encontrada uma cópia completa, o torna ainda mais emblemático. A análise a seguir foi feita com as imagens e áudios disponíveis no YouTube (veja no final do post).

Começo lento, mas com boas passagens

Diante de enorme pressão, Kurt começa o show um pouco apático. “School” sofre com as perdas de compasso de um sonolento Cobain, mas soa sinistra e poderosa. Sob aplausos, soam os acordes de “Drain You”.

A canção do Nevermind funciona bem e mantém o público ao lado da banda. Ao seu final, Kurt, ao melhor estilo rock star, reclama sobre as fortes luzes na sua cara. “Miss or Mr Light person, will you turn those big stupid bright alien lights off please? Thank you very much.”

Enraivecida, “Breed” mantém o set com energia. O acordes perdidos chegam a fazer algum sentindo, enquanto os barulhentos solos parecem ecoar pelo Morumbi.

Em seguida, “Sliver” é onde parecem começar os “problemas” da banda e Cobain ter perdido o que restava de sintonia com os outros integrantes. Por sinal, Dave e Krist realizavam uma ótima apresentação.

Setlist perdido e suas primeiras surpresas

Infelizmente, a parte seguinte do setlist carece de material. Nesse trecho, as músicas executadas pela banda foram:

  • In Bloom
  • About A Girl
  • Dive
  • Come As You Are
  • Molly’s Lips [Vaselines cover]
  • Lithium
  • (New Wave) Polly

É legal apontar que uma das surpresas no setilist deste show foi “D-7”, pouco tocada pela banda e que saiu no single Lithium. Destaco também “Molly Lips” e a possível versão rápida de “Polly”.

Mesmo não sabendo como ocorreram as músicas anteriores, em “D-7” é visível o quão mal Cobain estava. Já Dave Grohl, martelava sua bateria com cada vez mais força, tornando o música bem agressiva. Nisso ao menos, a voz de Kurt acompanha e complementa a canção. No final, ele reclama mais uma vez das luzes, arrancando reclamações da plateia.

Smells Like Flea Spirit

No sucinto número de participações de outros artistas com o Nirvana, esse pode ser considerado um dos capítulos mais legais. Aqui, ao clássico foi introduzido um solo de trompete tocado por Flea, do Red Hot Chilli Peppers. A versão da primeira vez que isso ocorreu, infelizmente nunca veio a público. Fica o consolo de ver assistir a tocada no Rio de Janeiro, na semana seguinte.

Mais perdidos do que cegos em tiroteio

Os problemas iniciados em “Sliver”, e que parecem ter ocorrido em grande parte do set, são bem visíveis em “On A Plain”. Não que seja de todo mal, em momentos funciona muito bem. Mas, a execução correta nunca ultrapassa os três acordes.

Se é possível apontar algo perdido no show, isso com certeza é o início de “Negative Creep”. Como um tiro, ela dispara em uma ferocidade sem igual e se concretiza em uma de suas melhores versões já tocadas. A fúria da música se concretiza com o desabafo final de Kurt: “is everybody having a good time tonight? Rock’n roll!”

Rock’n roll enterrado com o melancólico início de “Something In The Way”, outra canção poucos vezes tocada. Alterando a letra propositalmente para versos como: “I could shit on stage, and you would eat it up, my best friend is Bret Michaels”, Kurt cospe todo o seu ódio pelo rock modal e glamouroso dos anos 80 e que ele teme se tornar, em versão anos 90, devido a pressão dos holofotes. A ira pela fama, e o que ela adicionou na vida de Cobain, é claramente visível aqui.

Entregue, ele perde a entrada de “Blew”. Mas, se ironiza, ao dizer que será capa da Guitar World Magazine do próximo mês. Mais perdidos do que cego em tiroteio, como disse a mídia no dia seguinte, a banda praticamente detona tudo.

Ao seu final, o Nirvana começa mais uma de suas famosas sessões de destruição aos riffs de “Run To The Hills”, do Iron Maiden. Kurt desce próximo do público e realiza uma grotesca apresentação de habilidades na guitarra. É puro concerto de rock invertido.

A destruction session segue ao som de uma triste jam, onde solos intermináveis de Kurt se mesclam com agudas microfonias e só terminam quando ele entrega o que sobrou de sua guitarra para desesperadas mãos do público. Inúmeros minutos sonorizados por uma “Heartbreaker” por Krist e Dave.

Nirvana seu festival de Clássicos do Rock

Sem guitarra, Cobain se dirige para o fundo do palco e assume as baquetas. Nisso, Novoselic arruma uma guitarra para destro e Dave pena para se adequar à gigantesca correia do baixista do Nirvana.

Uma tímida versão de “We Will Rock You” até que entusiasma o público. Mas é com “Seasons In The Sun”, cantada por Kurt, que eles realmente aplaudem, ainda tentando entender o que está acontecendo no palco.

Queimando todas as páginas do livro de regras dos festivais, o Nirvana parece confortavel no que está fazendo. E entrega divertidas, e com momentos ótimos, versões de “Kids In America” do Kim Wild, “Should I Stay Or Should I Go”, do Clash, e “867–5309/Jenny”, de Tommy Tutone.

O que não foi visto na bizarra versão de “Rio”, do Duran Duran, talvez uma cutucada pelo show ser em São Paulo. Em seu final, todos da banda se auto-vaiam, ampliando semelhantes barulhos vindo da audiência. Alguns outros, são de puro delírio.

Ilustres presentes para quem ficou até o final

Outra jam, agora com “Lounge Act” como base, é tocada apenas por baixista e baterista. Cobain ainda acerta o som de uma guitarra nova. Sem repetir a dose, eles caminham para o final do show com “Territorial Pissings”. E o que ocorre é um verdadeiro desastre. Que talvez não foi maior, porque o Nirvana havia preparado um gran finale.

Presenteando os fãs que conferiram um show em que eles só fizeram o que estavam afim de fazer, eles tocaram pela primeira vez ao vivo duas novas canções e que entrariam no novo disco da banda. Antes, claro, de uma segunda interminável destruição de equipamentos, que contou até com Courtney Love. Ela só acabou com Krist jogando a toalha e retirando Cobain do palco.

O gesto pode ser interpretado como a própria banda encerrando a era da Nirvamania e dos grandes festivais, apresentando em primeira mão o som não comercial que banda deseja soar dali para frente, ao mesmo tempo em que não segue os anseios da gigantesca plateia.

Infelizmente, as debutantes versões de “Heart-Shaped Box” e “Scentless Apprentice” nunca foram publicadas. Mas, se seguiram o modo como foram tocadas no show no Rio de Janeiro, com certeza, encerraram de forma épica aquele que foi considerado pela própria banda como o pior show do Nirvana.

Pós-show

No dia seguinte, em entrevista para a Folha, Krist afirmou que “foi um show de desconstrução da imagem do grupo“. O Nirvana não queria ser mais a maior banda do mundo.

Dave Grohl conta com mais detalhes o que aconteceu no palco: “a primeira música que tocamos foi “School”, que começava assim. Só que Kurt começou com uma microfonia absurda, sem parar nunca. E, quando entrou na música, foi assim. Ele estava em outra rotação. Olhei para o Krist na hora. Ficamos apavorados. Vi Krist chegar no ouvido dele e dizer para ele acelerar, pelo amor de Deus”.

“O legal é que o público não estava nem aí e urrava tão alto quanto a música. Foi inacreditável. E no outro dia um jornal disse: Nirvana faz jam session para 110 mil pessoas. Foi loucura. Tocamos até “Rio”, do Duran Duran. Outra hora, mudamos os instrumentos: eu toquei baixo, o Krist tocou guitarra e o Kurt foi para bateria. Foi insano.”

As loucuras do Nirvana em São Paulo só estavam começando. Após o show, Kurt, Courtney, Flea e companhia resolveram curtir a noite paulistana, enquanto o resto da banda voltou para o hotel.

Nirvana em São Paulo 1993

  • Nota: 5 estrelas / *****
  • O que eu mudaria: nada!

Setlist

School • Drain You • Breed • Sliver • In Bloom • About A Girl • Dive • Come As You Are • Molly’s Lips [Vaselines cover] • Lithium • (New Wave) Polly • D-7 • Smells Like Teen Spirit (com Flea, do Red Hot Chili Peppers) • On A Plain • Negative Creep • Something In the Way • Blew • Run to the Hills (jam) • Heartbreaker (jam) • We Will Rock You [Queen cover] • Seasons In the Sun [Terry Jacks cover] • Kids In America [Kim Wilde cover] • Should I Stay Or Should I Go [The Clash cover] • 867–5309/Jenny [Tommy Tutone cover] • Rio [Duran Duran cover] • Lounge Act (jam) • Territorial Pissings • Heart-Shaped Box • Scentless Apprentice

FONTES:
http://www.livenirvana.com/tourhistory/banter/1993/t_01-16-93.php
http://nirvanaguide.com/1993.php
https://www.reddit.com/r/Nirvana/comments/615n6i/alternate_version_of_something_in_the_way/

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