JUSTAPOSIÇÃO: Terra Fraca e o Clube da Luta

J. Souza
Se Tu Diz
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6 min readSep 5, 2022
Fight Club (1999)

Toda vez que eu assisto o filme Clube da Luta, não consigo deixar de lembrar da poesia “Terra Fraca” do poeta Aníbal Nunes Pires. O que poderia o humilde educador da pacata Florianópolis, que dedicou sua vida inteiramente à causa do ensino e da educação, com o romancista estadunidense Chuck Palahniuk, um ser capaz de fazer as pessoas desmaiarem com seus romances de ficção transgressional? O que teria de semelhança, de compatível, uma simples poesia com um extenso e controverso romance, que posteriormente foi adaptado e dirigido por David Fincher para os cinemas?

Aparentemente nada. Mas ao aprofundar na obra desses escritores excepcionais, encontramos, além da notável dedicação à arte e a literatura crítica, a forte tendência reflexiva que os autores visivelmente expõem em suas obras: a desilusão diante dos homens, do mundo e dos acontecimentos.

Apesar de Aníbal ser radicalmente humanista e ser lembrado, não somente em se preocupar em preparar seus alunos para as matérias, mas também para a vida, Aníbal não esconde sua angústia e pessimismo diante do mundo.

Chuck Palahniuk faz uso da técnica desenvolvida pelo autor Tom Spanbauer chamada de “escrita perigosa”, ou “romance sujo”. Essa técnica consiste em produzir prosas baseada em experiências pessoais dolorosas como fonte de inspiração. A partir desse elemento, foi que Palahniuk deu origem ao “Fight Club”.

Aníbal nasceu em 9 de agosto de 1915. Descende de uma família cujo o sobrenome Nunes Pires é tradicional da cidade de Nossa Senhora do Desterro, antiga Florianópolis do século XVI, tendo fornecido muitos homens públicos, de escritores à governadores de províncias. Ao que parece, Aníbal não parece ser uma pessoa com experiências pessoais dolorosas, como Palahniuk, estadunidense de ascendência ucraniana, que teve seu pai morto junto com a namorada pelo ex-marido da mesma, e um avô que, ao matar sua mulher, logo depois, comete suicídio.

Apesar disso, com muita propriedade, Aníbal é capaz de manifestar a angústia diante da tragédia humana, não somente por sua sensibilidade apurada, notável em homens de grande intelecto, mas porque não podemos se enganar e esquecer do fato de que Aníbal Nunes Pires é um brasileiro nato, e esse fato em particular, dá competência à qualquer indivíduo capaz de pensar, entender e compreender sobre o desespero e as dores do mundo.

Na poesia “Apatia” Aníbal só enxerga entre os homens espinhos, inveja, ódio e orgulho, por fim, se conforma que um dia a própria dor nos agrada; “Abismo” chama a atenção do desejo que a humanidade tem, assim como o rio de correr e clamar pelo mar, de correr e clamar por abismo; “Regina Coeli” expõe que apesar da beleza natural da Natureza, o homem e sua mente doentia, quer fugir do bem e juntar-se ao mal, e ao invés de amadurecer frutos, amadurece ódio e tirania; “Desejo” critica o sentimento humano diante da miséria, e finaliza concluindo: […]Para ver horror tão merecido/O homem não valera a pena ter nascido.

Apesar do tom amargo e evidente pessimismo, Aníbal não abre mão de protestar por justiça social, como em “Poema da Renúncia” em que prega “vida e justiça/pão e liberdade”. Nessa mesma linha percorre os escritos de Palahniuk, que apesar do pessimismo e da melancolia, não consegue abrir mão do seu humanismo, de lutar e demonstrar empatia pelos homens “normais”.

A poesia “Terra Fraca” é quase um prelúdio do que vem sucedendo no Clube da Luta. “Terra Fraca” é publicada em 1956, pelo “Cadernos Sul”, Clube da Luta é escrito em 1996, 40 anos depois. O momento e o sentimento vivido pelos personagens do livro, a situação que o mundo se encaminha, é profetizada por Aníbal Nunes Pires em poesia. Não acredita? então acompanhe:

Rolarão os anos

na monotonia

de todas as horas;

Os mistérios e os segredos

ficarão na angústia

de todos os silêncios;

a dúvida e a incerteza

envolverão os homens

com todas as suas sombras…

A “monotonia de todas as horas” é a força motriz do romance. O tédio e a falta de objetivo e propósito, que é preenchido por um consumismo sem sentido, é o que leva o Narrador (personagem principal da trama) a buscar alternativas de romper com essa estrutura. A angústia “de todos os silêncios”, a dúvida e a incerteza que “envolverão os homens” com “todas as suas sombras”, é motivo que faz o Clube da Luta obter adesão de cada vez mais participantes, pois na busca de infringir esse silêncio, o indivíduo busca refúgio, querendo fazendo parte de algo que ouça e compreenda a sua angústia, condolente as suas insatisfações.

E na terra fraca

os homens serão fantasmas,

inconscientes do ser,

tontos de misérias

levantarão os braços

nos abismos,

como palmeiras

aflitas e solitárias.

Esse era o sentimento dos integrantes do Clube da Luta, “tontos de miséria”, sentiam-se fantasmas, desesperados sobre o abismo de suas vidas. Uma geração unida pela apatia, mas ao mesmo tempo distantes uns dos outros, levantando os braços aflitos e solitários, inconscientes do ser, até Tyler Durden aparecer…

Na terra fraca

os homens nascerão “sem vida”

sem razão, sem força e sem amor.

Na terra fraca

eles rodarão

à-toa

como folhas secas,

rodopiando no chão.

Essa passagem da poesia, considero o seu clímax. É a descrição de todos os indivíduos que tem o seu potencial desperdiçado em profissão servil. “Sem vida” reduzido a um número, a um empregado, mera mão de obra dos poderosos; “sem razão”, sem sentido ou consciência do valor de si, do que de fato representa na sociedade e no mundo e; “sem força”, conformado em saber que não pode mudar aquilo que foi constituído e definido antes mesmo dele nascer, afinal, como dizem os franceses “C’est la vie”.

Terminará nos vegetais

a orgia de clorofila

e as plantas secarão

na terra fraca,

ficando apenas

espectros,

fincados no chão.

As silhuetas

dominarão a paisagem sem cor,

das coisas que terminaram

para nunca mais tornar,

na terra fraca

as coisas não começam

as coisas não terminam.

Aqui Aníbal faz uma crítica a degradação do meio ambiente, da falta de consciência e de sensibilidade que o capitalismo predatório conduz o mundo, visando o lucro acima de tudo. Nessas estrofes, não é possível deixar de lembrar do Narrador explicando no avião aos seus “Amigos Descartáveis” sua função no trabalho:

“Como controlador de recall de uma empresa de automóveis, o objetivo dele era aplicar uma fórmula para saber se valia ou não gastar com uma revisão em larga escala, conhecida como recall. Em suma, se o número de acordos extrajudiciais por falhas mecânicas produzida pelo próprio automóvel por defeito de fábrica fosse financeiramente menor que o custo de um recall, eles não o faziam, mesmo que estivesse custando vidas, porque o lucro estava acima das vidas”

Rolarão os anos

na monotonia de todas as horas

e a terra fraca terá perdido

o barro virgem

o barro moço

a argila virgem

a argila moça.

Por fim, Aníbal conclui a poesia com a extinção humana devido a ganância, o individualismo e a antipatia.

A fala mais conhecida, senão a que chama mais atenção no Clube da Luta, é o monólogo de Tyler Durden, o que melhor descreveria tudo sobre o quê, e o que é o romance, e é sem dúvida, a parte que mais me lembra a poesia “Terra Fraca” de Aníbal Nunes Pires:

“Eu vejo todo esse potencial desperdiçado. Que droga! Uma geração inteira enchendo tanques de gasolina, servindo mesas, ou escravos do colarinho branco”

A propaganda nos faz comprar carros e roupas.

Trabalhar em empregos que odiamos para comprar coisas que não precisamos.

Somos uma geração sem peso na história.

Sem propósito ou lugar.

Nós não temos uma Guerra Mundial.

Nem uma Grande Depressão.

Nossa Guerra é a Guerra espiritual…

Nossa Grande Depressão é a nossas vidas.

Todos nós fomos criados vendo televisão para acreditar que um dia seríamos milionários, e estrelas de cinema, e estrelas do rock.

Mas nós não somos.

E estamos aos poucos tomando consciência disso.

E nós estamos muito, muito revoltados”

Se você não conhece o Clube da Luta, não é culpa sua, afinal, a primeira regra do Clube da Luta é não falar sobre o Cl#b@ da L!ta.

Se você não conhece Aníbal Nunes Pires, isso é mais fácil de resolver. Indico o livro “Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul” escrito por Lauro Junkes pela editora UFSC com coedição da Editora Lunardelli.

Nesse livro, além de falar do Grupo Sul e o Movimento modernismo catarinense, os capítulos finais é inteiramente dedicado a persona de Aníbal, além de trazer uma antologia quase completa das poesias, contos e outros escritos do fascinante e espetacular professor e manezinho da ilha, Aníbal Nunes Pires.

Há muitos exemplares desse livro na Biblioteca Pública de Santa Catarina.

#Ficaadica

Se tu diz…

Acervo Familiar/Divulgação/ND
Aníbal Nunes Pires (1915–1978)

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