O CIRCULO DE ARTE-MODERNA DO SUL

J. Souza
Se Tu Diz
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9 min readAug 1, 2022

Diante das inovações tecnológicas que transformavam o mundo no novo século, como aviões, automóveis, eletrificação das vias públicas, antibióticos e vacinas, artistas como Graça Aranha, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, sentiram a necessidade de transformar e renovar também o modo como se pensava e produzia arte no Brasil. Dessa maneira foi que surgiu o Movimento Modernista, que ocorreu oficialmente em São Paulo no ano de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, e que ficou conhecido como Semana da Arte Moderna - ou Semana de 22.

E bem aqui nesse pedacinho de terra perdido no mar, inspirados pelo simbolismo de Cruz e Sousa e intrigados com a questão “Tupi, or not Tupi” de Oswald de Andrade, que um grupo de jovens inconformados e inquietos, entediados com a rebordosa busca pela perfeição estética do século XIX, decidiram desafiar e reedificar os padrões da arte dos anos 4o em Florianópolis.

Em 1940, quase duas décadas depois da Semana de 22 ter ocorrido, Florianópolis era ainda uma cidade extremamente alheia à modernidade. Além da posição geográfica - por ser uma ilha e viver em certo isolamento -, o conservadorismo predominante impedia a cidade de conhecer e aceitar ideias novas.

Mesmo assim, dentro da escola mais tradicional e conservadora de Florianópolis, o Colégio Catarinense, foi que nossos heróis iniciaram sua jornada de trazer o modernismo a ilha - ou seria levar a ilha ao modernismo?

Tudo começou nas aulas de português do ilustríssimo professor e poeta Aníbal Nunes Pires - patriarca desses jovens iconoclastas - que incentivava e apoiava seus escritos sem rigidez ou apego as normas de endeusamento da forma. Foram nas aulas de Aníbal que esses jovens passaram a se expressar, se conhecer e dar a luz ao que chamaram mais tarde de Círculo de Arte-Moderna de Santa Catarina.

A partir da amizade de Antônio Paladino e Claudio Bousfield Vieira por volta de 1946, que se encontravam nos cafés e bares da cidade, discutindo livros, ideias, suas aspirações e insatisfações dentro do mundo e das artes, que Salim Miguel, Eglê Malheiros, Aldo J. Sagaz e Ody Fraga e Silva se identificaram e passaram a compor, por intermédio do professor Aníbal Nunes Pires, essa amizade. Mais tarde, passou a compor o grupo: Armando Carreirão, Adolfo Boos Jr, Archibaldo Cabral Neves, Elio Ballstaedt, Guido Wilmar Sassi, João Paulo Silveira de Souza e Oswaldo Ferreira de Melo.

Logo o ponto de encontro mais tradicional passou a ser a Praça XV e o Café Rio Branco do Seu Quidoca, no início da rua Felipe Schmidt, famoso por ser o café mais liberal da ilha. Das reuniões que iniciava no fim de tarde e ia noite adentro se falando de tudo e de nada, é que foi surgindo a necessidade de escrever e publicar.

Florianópolis possuía somente 4 jornais e 1 revista, e mesmo assim, nenhum deles estava disposto a publicar aquele tipo de material que não respeitava rima, métrica, vírgula ou regra de pontuação, de linguagem despretensiosa, por vezes obscena, pejorativa e vulgar. Foi quando surgiu, espontaneamente, a ideia de produzirem sua própria revista.

Uma revista que resgatasse Florianópolis do exílio em que vivia desde quando ainda se chamava Ilha do Desterro. Uma revista sem censura ou preconceito, sem apego a parâmetros ou normas literárias, que valorizasse a cultura e os artistas locais, e acima de tudo, a liberdade de expressão.

Para isso acontecer, precisavam de recursos para investir no sonho antes de torná-lo realidade. Mas como? Foi quando o manezinho Ody Fraga e Silva sugeriu realizar um espetáculo teatral de três peças em um ato para arrecadar dinheiro e financiar a tão sonhada revista.

Assim nasceu o Teatro de Câmara do Círculo de Arte Moderna, numa época em que o teatro tinha pouquíssima expressão e só era apresentado ao público espetáculos populares - mais ou menos como acontece hoje.

Dia 7 de setembro de 1947, a C.A.M realiza seu primeiro espetáculo no Teatro Álvaro de Carvalho. O palco era separado por um jogo de iluminação. Enquanto um palco ficava iluminado para apresentar o espetáculo, o outro ficava escuro aguardando o seu fim. E lá estavam os nossos heróis, tímidos e desajeitados em cima do palco, sem vocação nenhuma para tal, apenas a cara, a coragem e a força de vontade.

As peças? Moderníssimas! Eram nada mais e nada menos do que “O Homem da Flor na Boca” do inovador Luigi Pirandello, apresentada por Aníbal Nunes Pires e Salim Miguel; “Como Ele Mentiu ao Marido Dela”, do irreverente George Bernard Shaw, apresentada por Jason César, Lory Ballod e Ody Fraga; e por fim, “O Homem Sem Paisagem”, de autoria do próprio Ody Fraga, apresentado por Wânio J. Mattos e Eglê Malheiros. As apresentações foram marcadas por forte improviso, mas mesmo assim, não deixou de ser um sucesso.

Ensaio teatral dos integrantes do Circulo de Arte Moderna. A partir da esquerda: Aníbal Nunes Pires, Ody Fraga e Silva, Jason Cesar, Eglê Malheiros, Salim Miguel, Walmor Cardoso da Silva, Armando Carreirão e Archibaldo Cabral Neves.

O sucesso foi tanto que decidiram repetir a dose. Na segunda apresentação, além de repetirem as peças de Pirandello e de Shaw, a terceira foi substituída por uma adaptação feita por Ody Fraga do conto “O Quarto” do existencialista Jean Paul-Sartre, apresentada pelo próprio Ody.

Com o dinheiro arrecadado foi possível bancar as duas primeiras edições da revista, que foi nomeada de Revista Sul. Logo os “Artes Modernas” - como eram conhecidos no colégio -, ficaram conhecidos como Grupo Sul. O ponta pé estava dado e não sabiam para onde estavam indo, mas sabiam que estavam indo para algum lugar...

A primeira edição da revista foi lançada em fevereiro de 1948 e suas edições ocorriam de forma bimestral. Nesse meio tempo, o Grupo Sul foi bombardeado de críticas e sofreu preconceito de diversos intelectuais da região que tinham resistência em reconhecer suas obras como arte. Por outro lado, ganhou a simpatia e o apoio de outros, como o poeta e jornalista Othon da Gama Lobo D’eça, o desembargador Henrique da Silva Fontes e do historiador Oswaldo Rodrigues Cabral.

Ilustração de Hugo Mund Jr. na revista Sul

Mesmo com a falta de experiência e muita dificuldade financeira para manter a revista constante, a revista sobreviveu por 10 anos. Foi graças à persistência, a resistência de não se deixarem abater pelas críticas, pelo tédio ou desânimo, que o Grupo Sul foi reconhecido pelo imortal Marques Rebelo, autor da obra A Estrela Sobe. O escritor ficou sabendo da existência da revista por um amigo em comum de Aníbal, o crítico de arte Flávio de Aquino, e gostou tanto da do que estava sendo produzido aqui em Florianópolis que decidiu inserir a ilha no roteiro de sua exposição internacional de Arte Contemporânea.

Com a ajuda do Grupo Sul e apoio do secretário da educação Armando Simone Pereira e do governador Aderbal Ramos da Silva, Florianópolis foi palco da exposição de Arte Contemporânea de Marques Rebelo, que ocorreu entre os dias 25 de setembro e 6 de outubro de 1948, na escola Dias Velho, no Centro da cidade - atualmente a escola Dias Velho chama-se Escola Básica Antonieta de Barros e infelizmente se encontra abandonada pelo Poder Público.

Colégio Dias Velho — Acervo UDESC
Colégio Dias Velho atualmente — Flávio Tin (2021)

Faziam parte da mostra exposições de artistas como Di Cavalcanti, Candido Portinari, Giuseppe Pancetti e Iberê Camargo.

Iberê Camargo — Homem de Bicicleta (1989)

Se por um lado causou entusiasmo com o avanço da ilha em direção ao modernismo, por outro foi considerado um insulto. Fazer uso do glorioso colégio Dias Velho para expor “arte degenerada”, era inaceitável. Muitos se posicionaram criticamente a respeito da mostra, demonstrando total desprezo e insatisfação.

Quem pareceu não se incomodar com as críticas foi o Chefe do Executivo. No ritmo do modernismo, em 1949, Aderbal Ramos da Silva, por meio de Decreto Estadual, criou o Museu de Arte Moderna em Florianópolis - hoje Museu de Arte de Santa Catarina, localizado no Centro de Integração Cultural (CIC), na Agronômica - recebendo importantes doações de obras por parte de Rebelo, de artistas participantes, além de aquisições oficiais.

Fachada do Centro de Integração Cultural Professor Henrique da Silva Fontes

Esse foi o marco do Modernismo em Florianópolis e em Santa Catarina. Após esses eventos, o Grupo Sul seguiu suas produções a todo o vapor, ganhando destaque tanto na literatura e no teatro.

O grupo ficou conhecido em muitos Estados brasileiros. Com a ajuda de Rebelo - e delírio dos haters -, o Grupo Sul trocou escritos com artistas internacionais, recebendo destaques em revistas da Argentina, Angola, Moçambique, Uruguai, Espanha, Itália, China, União Soviética e Estados Unidos.

A revista contou também com a colaboração de muitos artistas plásticos, que hoje são símbolos da arte manezinha, como Meyer Filho e Hiedy de Assis Corrêa (o Hassis), dando origem mais tarde ao Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis em 1958, constituído por Hassis, Meyer Filho, Dimas Rosa, Hugo Mund Jr., Aldo Nunes Vecchietti, Tércio da Gama, Thales Brognolli e Rodrigo de Haro.

Mural em homenagem ao artista Ernesto Meyer Filho no Centro de Florianópolis — Foto: Caroline Borges
Hassis — Vento Sul(1957)
Hassis, Meyer, Vecchietti e Tércio

Além da revista, o Grupo Sul contribuiu também para a origem do movimento cineclubista na ilha, que foi liderado por Armando Carreirão. O Clube de Cinema de Florianópolis, por exemplo, que ocorre na Fundação Cultural BADESC, na rua Visconde de Ouro Preto, no Centro da cidade, foi fundada pelos “jovens da Sul” em 1949. O clube foi muito importante, pois trouxe para a ilha bons filmes modernos que em condições normais jamais chegariam aos olhos dos manezinhos. O primeiro filme trazido e projetado pelo Cineclube foi O Idiota, baseado no romance de Dostoievski.

Aos poucos Florianópolis deixava de ser aquela cidadezinha provinciana e pacata, saindo de sua pasmaceira habitual graças a atitude do Grupo Sul.

Sob influência do teatro e do cineclube, e inspirados pela premiação do filme de Alberto Cavalcanti O Cangaceiro no Festival Internacional de Cannes, o Grupo Sul, com sua comumente ousadia e inquietude, em 1957 - já a caminho de sua desintegração - se preparou para produzir o primeiro longa-metragem de Florianópolis e o primeiro do Estado.

Rodado aqui mesmo na Ilha da Magia com roteiro de Salim Miguel e Eglê Malheiros, dirigido por Nilton Nascimento e produzido por Armando Carreirão, nasceu o “Preço da Ilusão”. Uma história de aventura e desventuras - tanto dentro quanto fora da tela - , mas que infelizmente foi prejudicada pela equipe de montagem e mixagem realizada em São Paulo. Além do fracasso, o filme acabou desaparecendo e atualmente só restam os seus 8 minutos finais. Mesmo assim, não podemos deixar de reconhecer a criatividade e a vontade sincera dos seus idealizadores de fazê-lo acontecer.

Equipe em ação durante as filmagens de “O Preço da Ilusão” (1957). Salim Miguel (no centro e de paletó branco) e Armando Carreirão (óculos escuros).
Cartaz do filme “O Preço da Ilusão”

O Círculo de Arte-Moderna do Sul colaborou muito para o enriquecimento cultural e artístico de Florianópolis, da literatura ao teatro, contribuindo para o cinema e artes plásticas.

Em 1958 o Grupo Sul fechou as portas de sua revista. Alguns membros do grupo seguiram produzindo arte, há exemplo de Salim Miguel, Guido Wilmar Sassi e Silveira de Souza. Outros abriram mão definitivamente por razões pessoais, enquanto outros deixaram para voltar a produzir mais tarde, como foi o caso de Adolfo Boos Jr.

A partir da esquerda: Archibaldo Cabral Neves, João Paulo Silveira de Souza, Tércio da Gama, Eglê Malheiros, Adolfo Boos Jr., Salim Miguel, Walmor Cardoso da Silva e Miro Morais

Hoje, 64 anos depois, fica as seguintes questões: Onde estão nossos artistas manezinhos e catarinenses? Foram derrotados? Não existem mais? Ou falta oportunidade?

Enquanto nada acontece, só nos resta o saudosismo.

- Se tu diz…

REFERENCIAS

GUERRA, Rogério F.; BLASS, Arno. Grupo Sul e a Revolução Modernista de Santa Catarina. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, Volume 43, Numero I, p. 9–95, Abril de 2009. Visto em: <https://www.researchgate.net/publication/314753198_Grupo_Sul_e_a_revolucao_modernista_em_Santa_Catarina/fulltext/58c6d849a6fdccde55e3ab3d/Grupo-Sul-e-a-revolucao-modernista-em-Santa-Catarina.pdf>. Acesso em: 20 Jul. 2022

JUNKES, Lauro. Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul. Florianópolis: Editora Lunardelli, 1982.

SABINO, Lina Leal. Grupo Sul: O Modernismo em Santa Catarina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981.

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