“Puta”, paradigma de superação em Valesca Popozuda

Mariana Farinas
Sexualidade em minúcias
5 min readJul 28, 2018

Na música “Puta”, Valesca Popozuda canta uma personagem feminina que desafia seu companheiro violento e omisso. Ela fala tudo o que passou com ele, recusa seus pedidos pra ficar e então declara de boca cheia sua decisão de virar prostituta e parar de ser maltratada. Em prosa, a letra seria mais ou menos assim:

Só me dava porrada e partia pra farra. Eu ficava sozinha,esperando você. Eu gritava e chorava que nem uma maluca…valeu, muito obrigada, mas agora virei puta! Se um tapinha não dói, eu falo pra você: segura esse chifre, quero ver tu se f*. Eu lavava passava, tu não dava valor. Agora que eu sou puta você quer falar de amor — Gaiola das Popozudas

A presença implícita do sexo na ideia da prostituição e a presença explícita de violência podem ser levadas ao pé da letra. Mas, por outro lado, a música se torna hino mesmo entre mulheres que não apanham e que não pensam em se prostituir. Isso porque o sexo, prostituição e violência transbordam de sentidos não literais. Sexo pode ser a possibilidade de gozar, de ter prazer. Virar puta pode ser a afirmação de que se quer receber por aquilo que é dado e de que não há exclusividade de tratamento para ninguém. E em um sentido mais sutil, a violência também pode ser emocional, espiritual.

Essa história nua e crua carrega em si um paradigma, um modelo de algo que pode ocorrer à qualquer ser humano. Cada pequeno trecho da história pode se constituir em uma lição para quem a a escuta com atenção. E, para quem a aprecia, o proceder da heroína pode ser tomado como um exemplo a ser seguido, pois oferece um caminho de reconstrução da liberdade e do poder pessoal.

Só me dava porrada e partia pra farra

No corpo, nem todos levam porrada, mas emocionalmente quem nunca levou? O tipo de porrada e a intensidade com que se é golpeado varia nas nossas relações. Algumas pessoas nunca nos golpeiam senão de forma leve, outras nos dão algumas pancadas e outras ainda nos maltratam a ponto de nos causarem feridas consideráveis. Há os que dão porrada e não fogem à responsabilidade de trabalhar para uma reparação. Eles ficam, socorrem, se desculpam. Outros dão porrada e partem para a “farra”, descansam ao invés de trabalhar para acudir o que ocorreu.

Eu ficava sozinha,esperando você. Eu gritava e chorava que nem uma maluca…

Pode ser muito duro viver repetidos maltratos. Quando vivemos um relacionamento assim, que costumamos chamar de abusivo, se acalmar pode se tornar uma tarefa árdua — e, por outro lado, a própria dificuldade em lidar com as emoções pode levar à “topar” uma relação nesses moldes. Novos abalos chegam antes que os anteriores possam ser suficientemente cuidados, curados e superados. Isso pode levar à distância emocional entre os parceiros, doenças que continuam reaparecendo mesmo depois de tratadas e emoções desagradáveis que não se transformam em algo melhor — como por exemplo um choro que não alivia como deveria ou uma raiva que não consegue ser bem empregada.

Valeu, muito obrigado, mas agora virei puta!

A heroína, para não viver morrendo, precisava dar um salto dessa dinâmica em que os maus-tratos não davam sinal de que iriam cessar. Sobreviver equivaleria a não mais se subjugar a um parceiro que não dava sinal de que iria se implicar na resolução dos problemas. Afirmar “agora virei puta” pode ser afirmar um tesão pela vida que não se resume à ele. Ela quer gozar em outros lugares e essa condição define também o lugar que ele ocupa na ordem de gozos da vida dela. Ele pode ser um dentre tantos gozos (sob condição, evidentemente, de que pague tão bem quanto qualquer um) ou nem ser mais considerado devido ao maltrato ocorrido.

Se um tapinha não dói…

“Só um tapinha não dói” é uma expressão é usada para justificar uma prática de dominação. Ela pode ser usada na intimidade de uma relação em uma brincadeira consentida, partindo tanto de quem quer exercer o domínio quanto de quem quer se submeter. Mas ela pode ser utilizada de forma a anular a dor alheia, para dizer que quem diz ter dor não tem do que reclamar. “Foi só um tapinha, portanto é inaceitável que você sinta dor”. Mas a heroína cantada por Valesca diz que, se esse é o caso, ela tem algo a dizer (“Se um tapinha não dói, eu falo pra você: segura esse chifre quero ver tu se f*).

…eu falo pra você: segura esse chifre quero ver tu se f*

A heroína rompe o contrato amoroso num ato que é ao mesmo tempo de retaliação e de libertação. A retaliação se dá por não poder contar com o parceiro para um gesto suficiente de reparação de indelicadezas, grosserias e violências que foram cometidas por ele próprio. Ela se vinga pelo sentimento de traição que pode-se ter quando alguém importante parece não se comover com alguma dor que nos causou e que, não satisfeito, ainda lida com o que foi ferido com ainda mais violência. No caso da heroína, a violência extra vem pela invalidação de sua dor (“um tapinha não dói”) e pela omissão na hora da reparação (“só me dava porrada e partia pra farra”).

A maltratada passa a aceitar que o parceiro é um homem que irá negligenciar a importância dos maus-tratos que comete. Ao mesmo tempo, ela começa a se perceber capaz de prover a si mesma. O rompimento de um contrato de dedicação íntima torna-se inevitável, assim como se torna inevitável um certo prazer em devolver a desconsideração sofrida.

Eu lavava, passava, tu não dava valor. Agora que eu sou puta você quer falar de amor

Agora ela só se dedica à quem paga. O que é dado é cobrado. E mais, a preferência não é mais dele, é de quem pagar bem, ou seja, é de quem retribuir à altura o que ela dá. Ela passa a cobrar pela disponibilidade que tem para que ele se satisfaça carnalmente no corpo dela e espiritualmente no colo dela, no entorno que ela cria, nos cuidados dela e assim por diante. Essa entrega dedicada agora é cobrada e é dada a quem pagar o quanto ela define como suficiente. A heroína cantada por Valesca passa de escrava à prostituta e, tendo saído da escravidão não pela misericórdia do parceiro, mas por si mesma, ela não o considera, ao menos no momento, um homem à altura de uma parceria amorosa.

[“Puta”, como qualquer produção artística que tem a capacidade de causar forte admiração ou repulsa, é carregada de sentido. Esse texto, portanto, não pretende negar outros aspectos — inclusive os conflitantes com os expostos aqui — e menos ainda pretende exaurir os sentidos dessa obra polêmica da MPB]

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