Por que a maioria dos assistentes digitais são mulheres?

Beatriz Oliveira
She Leads Brasil
7 min readMay 15, 2024

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Não é de hoje que assistentes digitais como Siri, Alexa, Cortana, Lu, Bia e similares estão presentes em nosso cotidiano e desempenham várias funções úteis, como responder nossas dúvidas, agendar compromissos e criar lembretes. No entanto, você já notou que a maioria delas tem, por padrão, nomes e vozes femininas?

Especificamente sobre os nomes, de acordo com um artigo da Revista Esquinas, esses são alguns dos significados por trás de algumas das mais conhecidas:

  • A Siri, funcionalidade da Apple, possui um nome nórdico que significa “mulher bonita que leva você à vitória”.
  • A Cortana, da Microsoft, tem a designação de uma personagem do videogame Halo, que é representada de forma sensual no jogo.
  • A nomeação da Alexa foi inspirada em uma biblioteca em Alexandria.

Além de terem nomes e vozes femininas, elas também têm comportamentos programados para serem prestativas, educadas e subservientes, o que levanta questões sobre a perpetuação de estereótipos de gênero.

Por todos esses estereótipos, as assistentes também são frequentemente alvo de assédio e insultos. Para tentar combater isso, a Unesco criou a campanha “Hey, update my voice!”, denunciando esses diversos casos de assédio e agressões contra as assistentes virtuais. A campanha também pede respeito e mudanças efetivas na forma como essas tecnologias são desenvolvidas. Dentre outros exemplos de agressão às assistentes virtuais, a campanha destaca que ao serem chamadas de sexy, a resposta era “na nuvem, todos são bonitos”, ou se falavam “eu quero fazer sexo com você”, uma das respostas era “desculpe, eu não posso fazer isso”.

Um outro dado que demonstra o quão reais são esses vieses associados às assistentes virtuais é evidenciado em uma pesquisa feita nos Estados Unidos pela LivePerson. Nela, 91,7% dos entrevistados não conseguiram citar nomes de mulheres líderes ou referências em tecnologia, enquanto apenas 8,3% disseram que conheciam alguma.

Dentre os 8,3% que disseram que poderiam nomear uma líder de tecnologia famosa, apenas 4% realmente citaram e vários deles trouxeram nomes como Siri ou Alexa, entretanto, 57% dos entrevistados conseguiram citar homens conhecidos como Bill Gates, Steve Jobs, Elon Musk e Mark Zuckerberg.

Por que as soluções tecnológicas que usamos ainda carecem de diversidade?

Em 2019, a Unesco também publicou um relatório intitulado “I’d Blush If I Could”, que mencionava a resposta programada da Siri aos usuários que a chamavam de “bitch”. O relatório apresenta diversos dados sobre estereótipos e preconceitos presentes no contexto da área de tecnologia, o que nos ajuda a compreender melhor essa situação. A seguir, vou detalhar alguns deles.

Logo no início do relatório, nos deparamos com uma estatística contundente e real: hoje, mulheres e meninas têm 25% menos probabilidade do que os homens de saber como utilizar a tecnologia digital para fins básicos, 4 vezes menos probabilidade de saber programar computadores e 13 vezes menos probabilidade de registrar uma patente de tecnologia.

Isso ocorre devido à falta de estímulos que as meninas e mulheres recebem não apenas para ingressar, mas também para permanecer na área de tecnologia. Outro dado destacado no relatório indica que cerca de 73% das mulheres sofreram ou foram expostas a alguma forma de violência cibernética. Isso é preocupante, especialmente quando buscamos atrair mais meninas e mulheres para áreas técnicas.

O problema da falta de diversidade de gênero na tecnologia é muito sério, pois sem ela, vemos várias soluções tecnológicas sendo desenvolvidas com preconceitos e estereótipos. Um exemplo disso, evidenciado no relatório, é o caso da Amazon, que utilizava um software de recrutamento por IA que rebaixava os currículos que continham a palavra “women’s” ou outros critérios relacionados ao gênero feminino. Segundo uma matéria da Reuters, isso ocorreu porque os modelos computacionais da Amazon foram treinados para avaliar os candidatos, observando padrões nos currículos enviados à empresa ao longo de um período de 10 anos. A maioria desses currículos veio de homens, refletindo o domínio masculino na indústria tecnológica.

Outro dado não tão surpreendente para mim, evidenciado no relatório, mostra que estudos sobre aprendizado de máquina baseado em texto revelaram que softwares treinados em artigos coletados do Google News adotaram visões sexistas sobre as opções de carreira das mulheres. Eles associaram os homens à programação de computadores e as mulheres às tarefas domésticas. Certamente, este é mais um viés que carregamos, pois por muito tempo a ideia de que a indústria de tecnologia é masculina foi perpetuada, e até hoje não conseguimos imaginar mulheres desempenhando esse papel. Inclusive discutimos sobre isso no artigo abaixo.

É evidente que são vários os fatores que contribuem para a existência desse cenário de desequilíbrio de gênero em tecnologia hoje em dia. Desde o início, meninas e mulheres encontram dificuldades para se envolver em áreas técnicas devido à falta de estímulo. Como resultado, temos poucas mulheres ingressando em cursos de graduação em tecnologia, o que se reflete em uma grande disparidade de gênero no mercado de trabalho.

Segundo a OCDE, nas economias do G20, a proporção de especialistas em TIC do sexo feminino varia de 13% na República da Coreia a 32% na África do Sul. Na América do Norte, as mulheres ocupam apenas cerca de um quarto dos empregos em computação. Ainda segundo o relatório da Unesco, a área de desenvolvimento de software, apesar de sua crescente influência na vida cotidiana, também parece ser particularmente desprovida de mulheres: Globalmente, apenas 6 por cento das pessoas desenvolvedoras de aplicativos móveis e de software são do sexo feminino, de acordo com a ITU.

Recomendações do relatório para fechar a lacuna de habilidades digitais de mulheres em tecnologia

Além de apresentar vários dados sobre as desigualdades de gênero e analisar o cenário, o relatório da Unesco também sugere diversas ações que podem ser tomadas para fechar a lacuna de habilidades digitais e atrair mais mulheres para a tecnologia. A seguir, vou listar alguns deles, extraindo partes do conteúdo abordado no material.

Adote uma abordagem sustentada, variada e para toda a vida: "Aumentar as habilidades digitais de meninas e mulheres envolve exposição precoce, variada e sustentada às tecnologias digitais. As intervenções não devem se limitar a ambientes de educação formal, mas sim refletir uma abordagem multifacetada, permitindo que mulheres e meninas adquiram habilidades em uma variedade de contextos formais e informais — em casa, na escola, em suas comunidades e no local de trabalho."

Estabeleça incentivos, metas e quotas: "A entrada delas em tecnologia pode ser incentivada por meio de bolsas de estudo para mulheres que escolhem se especializar em áreas de TIC nos níveis de graduação e pós-graduação."

Apoie experiências que as ajudem a se envolver em tecnologia: "Meninas e mulheres devem ter uma exposição variada às tecnologias digitais, incluindo oportunidades para desenvolver habilidades digitais em contextos informais, bem como formais. Clubes pós-escolares e atividades extracurriculares e focadas em TIC podem ajudar a incentivar a aprendizagem digital das meninas em um ambiente divertido e descontraído."

Nessa parte, são apresentados diversos trabalhos de grupos que servem como modelos, incluindo o Girls Who Code, o Research Center for Feminist Action (CIPAF) da República Dominicana, entre outros.

Estimule a colaboração e o aprendizado em conjunto: "Embora estratégias pedagógicas como colaboração e aprendizagem entre pares sejam benéficas para todos os alunos, descobriu-se que são particularmente eficazes para envolver mulheres e meninas com TIC. Em um estudo sobre aprendizagem colaborativa com tecnologia móvel em Israel, meninas do ensino médio foram encontradas passando mais tempo com materiais de aprendizado digital em um dispositivo móvel em um ambiente de aprendizado em grupo do que quando usavam o dispositivo individualmente. Esse resultado podem estar relacionado às fortes habilidades de resolução de problemas colaborativos das meninas."

Examine práticas e linguagem excludentes: "As representações da educação, pesquisa e trabalho no setor digital, incluindo a linguagem usada para descrever cursos, disciplinas, bolsas de estudo, carreiras e vagas de emprego, fazem diferença nas percepções das mulheres e meninas sobre se elas pertencem ao espaço digital.

A linguagem usada para descrever os cursos e programas é especialmente importante. Um estudo das descrições de cursos universitários para programas de empreendedorismo identificou uma tendência avassaladora em direção a frases “masculinas” que enfatizavam a competição, a dificuldade e o potencial de fracasso — por exemplo, descrevendo a área como um “esporte de contato” e “não para os fracos e dóceis”; enfatizando a importância do “comportamento de busca de risco” e “trabalho muito duro”; e advertindo os alunos que “se você não puder comprometer o tempo… esta aula não é para você”."

Promova modelos e mentores: "A importância de modelos e mentores é enfatizada repetidamente na literatura sobre gênero e habilidades digitais. Em uma pesquisa na América do Norte, 62% das meninas do ensino médio que tiveram alguém encorajando-as a estudar computação ou programação disseram que tinham probabilidade de se especializar nesse assunto na faculdade, em comparação com 15% das meninas que não receberam incentivo de ninguém. A presença de modelos femininos é especialmente benéfica para as meninas pois ajudam elas a ver caminhos diversos no setor digital e a imaginarem-se em profissões tecnológicas."

Impulsione conexões em comunidades e recrutar aliados: O relatório também oferece dicas sobre como encorajar os homens a se envolverem na luta pela igualdade de gênero em tecnologia, algumas das sugestões com base no National Center for Women and Information Technology são:

  • Recriar experiências “temporárias” de minoria para homens, como participar de conferencias majoritariamente femininas.
  • Garantir que os homens tenham experiências com mentoras, chefes ou outras líderes femininas.
  • Convidar homens para eventos de “mulheres na tecnologia”, oficinas sobre preconceitos inconscientes ou treinamentos de diversidade.
  • Dar aos homens um papel específico nos esforços de diversidade de gênero.
  • Fornecer aos homens informações para aumentar a conscientização e promover mudanças.

Ainda há muito a ser feito para promover a diversidade de gênero em tecnologia e evitar que cenários como os das assistentes virtuais sejam repetidos em outras tecnologias. É fato que precisamos cada vez mais estimular e criar meios para promover a participação das mulheres em tecnologia, a fim de criar as soluções que estamos deixando para o futuro. Esse esforço é coletivo e não só pode como deve contar com a participação de homens como aliados, governos, empresas, comunidades e ONGs de mulheres em tecnologia.

No artigo abaixo, você encontra mais detalhes sobre os vieses em assistentes virtuais.

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