Se um usuário do Bixby em uma noite de inverno… A literatura de um assistente virtual (parte 1)

Renan A F Bolognin
SiDi NLP
Published in
5 min readDec 2, 2022

Essa série folhetinesca de artigos será publicada nas próximas 4 semanas (de 30 de novembro a 21 de dezembro de 2022) no Medium de NLP. Escrito pelo Prof. Dr. em Estudos Literários pela Unesp de Araraquara, Renan A. F. Bolognin, e Tradutor Técnico de Língua Espanhola do SiDi, esse folhetim versará sobre: 1. O contato de um usuário e o Bixby; 2. A literatura disponibilizada por esse assistente virtual e produzida na internet por diversos autoras e autores; e 3. Uma singela sugestão sobre como expandir e integrar esses textos literários aos usuários de celulares da Samsung.

Dedicado a: Jefferson Meneses da Silva, pelas ideias, e a Natalia Buzato Tavares, pelo apoio.

“Você está prestes a iniciar a primeira parte da leitura do folhetim articulista semanal ‘Se um usuário do Bixby em uma noite de inverno… A literatura de um assistente virtual’, escrita pelo professor Renan Augusto Ferreira Bolognin. Nesse momento, é importante respaldar-se confortavelmente em sua cadeira de escritório e apreciar cada momento da leitura sem se ater às preocupações cotidianas. Se puder, diminua ou desligue, momentaneamente, seus fones de ouvido bluetooth e feche, moderadamente, as cortinas para que a luz solar ou artificial não te desgaste os olhos. Se estiver ao lado de outras colaboradoras, colaboradores ou de familiares, peça-lhes para fazerem silêncio:
— Psiu, vocês não veem que estou lendo a primeira parte do artigo do Renan…?
Eis que assim começa o artigo. Eis que o artigo já vai começar”.

Parte 1 — Introdução

Se há algum conceito lacaniano que mais parece se aproximar do que pensamos ser um assistente virtual é sua capacidade de aprender com a unidade humana com a qual ele se relaciona. Em termos lacanianos, esse espelhamento eu-outro é abordado no conceito estádio do espelho. A partir do contato do usuário do Bixby com esse assistente virtual, presume-se que, digital e informaticamente, este último adquire(iria) uma personalidade, ou identidade, espelhada no contato com o humano que segura um aparelho móvel e solicita diversas funcionalidades desse assistente virtual.

Comparativamente, o dispositivo celular se assemelharia a como o conhecimento é adquirido por uma criança humana a partir do espelhamento consigo mesma, com pessoas próximas e outros objetos de acordo com Lacan (1949, p. 96–97):

[…] repercute, na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações.

Semelhantemente, a identidade de um assistente virtual pareceria construída como um “eu-virtual” ou “eu-digital” (je no caso lacaniano, ich no freudiano) espelhada no ela/e do usuário. Decerto, mais do que oferecer um serviço exclusivo a cada pessoa que sustenta um celular, quem sabe essas imagem e semelhança poderiam decorrer na constituição de uma personalidade própria (e/ ou virtual e/ou existencial?) do aparelho por meio das solicitações desse mesmo usuário. Possivelmente, o usuário desconhecedor das funções de um assistente virtual como o Bixby tenha a impressão de uma customização demiúrgica de seus aparelhos. Tendo em vista que os parágrafos anteriores são, praticamente, ficção científica (talvez preditiva do destino tecnológico da humanidade), nesse texto matizamos o interesse para que uma das funções do Bixby possa ser mais interativa, permitindo que o usuário “troque” com outros, desconhecidos ou não, uma produção de sua própria lavra.

Uma das funções mais dignas de estudo do assistente virtual dos aparelhos Samsung é a chat. Por meio dela, o assistente fornece narrativas, poemas, raps, piadas e outras histórias a partir do pedido de uma unidade humana, o que, é, no mínimo, inesperado de um usuário que segura um aparelho com tantas funções além da contação de histórias (que, inclusive, não necessita de tecnologias tão sofisticadas para isso).

A importância desses pedidos relativos a artes — ou o prazer referente a ouvir uma boa história — parece atrelada à posição de Scott Mcloud (1995, p. 164–5, grifos do autor) — e com a qual estamos de acordo — de que a arte é uma característica que transcende os instintos humanos básicos. Talvez por essa razão alguém que segura um aparelho celular e se interessa por leitura, escrita, poesia, etc. — além de poder ouvir música, assistir vídeos ou acessar suas redes sociais — não está fazendo nada que não seja da natureza humana:

Eu vejo a arte como qualquer atividade humana que não se desenvolve a partir dos dois instintos básicos da nossa espécie: sobrevivência e reprodução. […] Arte. É um fato feliz da existência humana que nós simplesmente não podemos passar todas as horas em que estamos acordados comendo e fazendo sexo! Não importa com que ímpeto busquemos nossas metas, vão surgir ocasiões em que simplesmente não vamos ter nada para fazer!

Conviver com histórias, poesia, cinema, quadrinhos, pinturas, música ou qualquer forma artística é fundamental para a realização plena da natureza humana nos momentos “em que simplesmente não vamos ter nada para fazer!”. Embora tenhamos formações intelectuais, profissionais, pessoais, etc. heterogêneas, a propensão à fruição da arte constitui uma identificação que homogeneíza e planifica as relações hierárquicas de inúmeras sociedades do globo. Se pensarmos com Lacan, essa potencialidade humana é representada, inconscientemente, no seguinte poema de Thais di Freitas (2022):

Figura 1: A arte.

Fonte: Thaís di Freitas

A potencialidade da leitura artística, narrativa ou poética, e literária, ou não, é representada como uma inundação intelectual constituidora de mudanças pessoais na unidade humana que lê um livro, assiste um filme, aprecia um quadro, remexe o quadril em passos de dança ou acompanha os episódios da telenovela das 9. Com o avanço da tecnologia recente, vale a pena fundamentar como a função previamente referida do Bixby se espelha em seu usuário para constituir-se, profundamente, nos meios artísticos humanos. Em outras palavras, talvez esses dispositivos (com inteligência artificial) possam, com a função chat (e, obviamente, com seus códigos de programação), se aproximar das mais elaboradas ficções científicas que tanto amamos e consumimos quando não estamos lutando pela sobrevivência ou pensando em reprodução.

Para atingir o fim de demonstrar as funções artísticas (poéticas, musicais, humorísticas ou narrativas) do assistente virtual, a metodologia usada neste artigo (apresentado ao longo das próximas semanas), vai na direção de: i. Apresentar alguns templates de solicitações de um usuário e algumas das histórias contadas pelo Bixby; ii. Elucubrar a respeito da influência artística exercida sobre cada humano e; iii. Sugerir como a epistemologia de estruturação narrativa de Gérard Genette (1965) pode servir como uma esteira na qual o Bixby e seus programadores podem inspirar-se para oferecer uma produção narrativa leitora aproximada do perfil de cada usuário e subsídios para uma possível ferramenta narrativa.

Na sequência, conheceremos alguns textos oferecidos pelo Bixby aos seus usuários e ensaiaremos um pouco de teoria sobre a ética desse assistente em relação à nossa, humana.

Então, nos vemos em breve na segunda parte do folhetim “Se um usuário do Bixby em uma noite de inverno… A literatura de um assistente virtual”. Até lá!

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Renan A F Bolognin
SiDi NLP
Writer for

Tradutor técnico de Lingua Espanhola do SiDi Campinas.