Boteco Literário (II): A fuga e o fim de Joseph Roth

Wertheimer Lucas
SIESTA
Published in
20 min readFeb 15, 2021

Boteco Literário. Episódio 2.

Por Gaspar Sardinha com ilustração de André Silva

1° parte. Como achei o livro ou como o livro me achou

Na rua.

Foi burrice não trazer o cachecol. O vento que varre a planície panônica e aqui se afunila entre os renques de prédios, sopra e silva como que em um último grito antes de morrer no sopé dos morros ao redor de Viena. A essa hora não passa mais ônibus e para o táxi não tenho grana. Um frio de rachar e moro do outro lado da cidade.

Não me resta nada além de levantar a gola do casaco, meter as mãos no bolso e aceitar a minha sina. Enquanto varo os distritos da cidade, de rua em rua, sem dar com uma alma viva, procuro lembrar, para esquecer o frio, da conversa que tive com uma mulher no “Bar Café Exil”, que é de onde acabo de sair.

No bar

Eu tinha pedido um Slivovitz, que é uma espécie de Brandy de ameixa, forte à beça, quando a minha vizinha de mesa, que eu até então não havia notado, se virou para mim e disse:

“Esse negócio não faz bem.”

Dane-se, pensei. E a ignorei. Ela redirecionou o olhar para o livro de encadernação vermelha que estava aberto, com a capa virada para cima, sobre a mesa melada à minha frente. É a Marcha de Radetsky, do Joseph Roth. Me faltam poucas páginas para terminar, mas a luz no bar é fraca e coloquei o romance de lado.

“Foi o que matou o Joseph Roth.” — Insistiu ela ao mesmo tempo que prendia uma mexa de seu cabelo ruivo.

“Ele era alcóolatra. Foram anos de bebedeira desenfreada que o levaram à cova. Não dá pra empurrar tudo pro Slivovitz só porque o Roth era dos confins da Galícia.”

“O Slivovitz foi o golpe de misericórdia.”

“Acho improvável. Ele não morreu em Paris? Deve ter sido um Pernod ou um conhaque vagabundo…”

“Um amigo tinha trazido a garrafa de Slivovitz da Jugoslávia…”

“Um tanto imprudente presentear um alcoólatra com um litro de bagaceira…”

“Ele não fez por mal. Ingenuidade, só isso. Roth era um refugiado em Paris, nostálgico de sua vila de Brody, hoje Ucrânia, e que em 1939 para um judeu como ele, estava tão distante quanto a lua. O amigo imaginou que trazendo um souvenir do leste, lhe faria uma surpresa agradável. No dia em que o escritor colapsou e que o levaram ao hospital, acharam a garrafa vazia na sua cama, o lençol empapado e com o cheiro forte do destilado.”

Me foi servido o copo cheio até a borda e virei demonstrativamente num só gole o conteúdo transparente. Veio aquele gosto de remédio e a queimação na garganta, mas engoli sem fazer careta. Daí comentei:

“A senhora parece conhecer bem a história de vida de Joseph Roth.”

“Por favor, não me chame de senhora! Por favor!” e fez toda uma encenação patética, tentando, não sei por que, chamar a atenção do barman. Se acalmando, prosseguiu: “Li um livro muito interessante. Um livro que descobri por acaso, descendo a rua onde moro…”

“Eu não aprendo…” — me lamentei em pensamentos, por dar corda à conversa com esse tipo de gente. Gente carente.

“Moro na rua que termina no Belvedere, bem na altura do portão lateral, que dá nos jardins do palácio. Há anos que vou e volto pra casa por essa rua e foi só agora, digo, há alguns meses que notei uma plaqueta afixada na fachada de um dos últimos prédios antes da esquina e da entrada do parque. E sabe o que li?”

“Não.”

“Neste edifício viveu o escritor Soma Morgenstern.”

“Não conheço.”

“Também não conhecia. Mas procurei no Google.”

Apoiei os cotovelos na mesa, sem tentar disfarçar a minha frustração. “Meu Deus do céu”, pensei, “se continuar assim…”

“Soma Morgenstren e Jospeh Roth se conheceram ainda nos tempos de liceu na Galícia, depois estudaram ambos na universidade de Viena. Morgenstern direito e Roth filologia germânica.”

Então era aí que ela queria chegar. Disse, só para dizer qualquer coisa: “amigos de infância.”

“Era, ao menos nesses primeiros anos, uma amizade esporádica. Se perdiam de vista às vezes por meses, mas quando se reencontravam, reatavam logo os laços, continuavam a conversa de onde tinham parado. Depois cada um seguia o seu caminho.”

“A senhora leu, perdão, você leu isso tudo no Google? Na Wikipedia?”

“Não. Soma Morgenstern é o autor de um livro de memórias, que é esse livro interessante que eu já tinha mencionado e no qual ele conta da sua relação com Joseph Roth. O título é “A fuga e o fim de Joseph Roth” e…”

“Belo título.”

“Pega bem a essência do livro. Disse que são memórias, e realmente, o autor colocou no papel as reminiscências de uma vida longa e conturbada quando já vivia em Nova Iorque há anos e a hecatombe que assolou a Europa já era passado. Mas são só as memórias de sua relação com Roth. Não chega a ser profundamente informativo no que diz respeito à biografia do amigo, mas revela muito de sua personalidade.” — E olhando para o meu copo vazio, completou: “E do seu vício.”

“E ele vivia na mesma rua que você agora.”

“Foi esse endereço que ele foi forçado a abandonar às pressas, com a ascensão do austrofascismo. Fugiu para Paris, onde Roth já estava bem instalado, num hotelzinho no VI. arrondissement, perto do jardim de Luxemburgo.”

“Consigo imaginar refúgios piores que Paris.”

“Morgenstern deixou para trás a esposa e o filho pequeno, duas irmãs, um irmão e a mãe. E a vida de refugiado em Paris não era nenhuma mamata. A imigração francesa não dava paz, toda hora era um documento novo que eles exigiam, ele dependia da caridade dos outros pra conseguir uns trocados e depois que a guerra enfim eclodiu, com os alemães avançando do Leste, rumo a Paris, Soma intercalou internações em campos de concentração franceses com períodos na clandestinidade até conseguir, em 1941, fugir por Casablanca e Lisboa e chegar a Nova Iorque.”

“E o que aconteceu com a família?”

“A mulher e o filho também conseguiram escapar e reencontraram Soma nos Estados Unidos. A mãe, uma irmã e o irmão foram assassinados pelos Nazistas.”

“Não parece ser uma leitura muito leve.”

“Mas é. De certa forma, pelo menos. Você deve ter ficado com a impressão de que o livro trata de alcoolismo e genocídio.”

“Pelo que você me contou…”

“Entretanto, Morgenstern como autor e narrador e Roth como personagem principal, digamos assim, figuram nestas páginas não como o perseguido, o fugitivo e como o homem derrotado e largado à bebida, respectivamente. Pois é a vida dos dois escritores-jornalistas, retratada pelo seu lado mais pujante, seja na redação dos grandes jornais, nos cafés das metrópoles europeias e ao lado de figurões do mundo das artes e de intelectuais renomados, ou como estudantes enérgicos e cheios de expectativas, que cativa o leitor. De anedota em anedota, que na prosa de Morgenstern não é um mero recurso para adornar o texto, mas a essência de seu estilo narrativo, a figura pitoresca de Roth é paulatinamente delineada. Ele é retratado como um observador arguto, qualidade estimada pela verdadeira legião de leitores de seus artigos e reportagens, um sujeito astuto, de língua afiada, mas também como uma pessoa de bons modos, um gentleman, nas palavras de Soma.”

“E você recomenda a leitura?”

“Se você se interessa pela cena cultural da Viena do período entreguerras e por Joseph Roth, recomendo.”

Só então notei o cachorro dormindo embaixo da mesa. Do tamanho de um bezerro. E a mulher também impressionava. A juba ruiva, a envergadura e os braços de uma arremessadora de peso.

E era essa imagem que pairava diante de mim na noite gélida, sob feixes de luz dos postes de rua, enquanto batia perna ainda longe, tão longe do meu destino.

2° parte. O que achei no livro e o que achei do livro

Seguindo a dica

A dica foi boa. No dia seguinte, lá pela tarde, depois de tomar uma garrafa térmica inteira de café preto, fui à livraria e comprei o livro. Eis as minhas impressões:

O mundo de Morgenstern é o mundo perdido dos judeus do leste europeu. A paisagem é a estepe entre o ocidente e a Rússia, onde o império austro-húngaro e o império tzarista se viravam mutuamente as costas. Que o assunto é trágico, dadas as atrocidades que vão além do imaginável e das quais a região foi o triste palco, é evidente. Mas um aspecto da obra de Soma Morgenstern me parece particularmente melancólico. Pois não escrevia do exílio novaiorquino suas lembranças de um mundo que sucumbiu e cujas luzes se apagaram no breu da história, tampou foi um Bruno Schulz que, apesar de seu fim trágico, captou de maneira maravilhosa este mesmo mundo da infância de Morgenstern e de Roth, ainda em tempos que estava intacto. Morgenstern, cujas raízes estavam profundamente fincadas no contexto cultural e político da então província da Galícia, escolheu a sua origem como matéria para sua criação literária. Escolheu mal, pois viu tudo o que tanto estimava, ser varrido do mapa. Claro que foi o mesmo destino de milhões de outros. Mas levo a impressão de que, apesar de A fuga e o fim de Joseph Roth ser um livro de memórias, este não era o gênero por opção de Soma. Só não lhe restou outra coisa que escrever, que sobre o que não mais existe.

Mas me afasto do assunto. Pois a origem em comum do autor e do escritor Roth foi o que os uniu, o que nas páginas deste livro é um detalhe importante, mas apenas um aspecto das várias facetas de suas vidas. Qual é, então, a essência do livro? Difícil dizer. Com certeza a relação entre os dois amigos e a direção que suas vidas tomaram. Só que isso, além de vago, é óbvio. Procurarei retraçar em passos largos o conteúdo do que acabei de ler, com a expectativa de… bem, não sei bem do que, talvez de me safar da tarefa de rotular a obra disso ou daquilo.

Estudante e soldado

Jospeh Roth dizia, em parte só por birra, em parte para alfinetar a soberba do europeu ocidental, que quanto mais do Leste, melhor. O que nos seus últimos anos levou a certa confusão na questão de precisar a sua cidade natal. Como a minha vizinha de mesa no “Bar Café Exil” já mencionou, ele nasceu em Brody, a uns 100 quilômetros da cidade de Lviv, hoje em dia sul da Ucrânia. Foi criado pela mãe. O pai sumiu do mapa, aparentemente para seguir um rabino místico de uma seita messiânica. O menino Roth frequentou um ginásio de língua alemã, o único da região, o que explica o fato dele não dominar o polonês e nem o ucraniano e mesmo o seu iídiche ser bastante precário. Morgenstern, em contrapartida, filho do administrador de uma propriedade rural e que, portanto, cresceu no campo, falava fluentemente todos estes idiomas.

Os estudos levaram ambos à Viena. Eles já se conheciam dos tempos de Galícia, mas não dá para dizer que eram amigos. Haviam apenas trocado algumas palavras em uma conferência para jovens sionistas em Lviv.

O meio estudantil na capital do império era um ambiente efervescente. Estamos no primeiro semestre de 1914 e no campus da universidade, ao qual por lei a polícia não tinha acesso, facções de estudantes nacionais-germânicos saíam na porrada com grupos de outras nacionalidades e de judeus. O antissemitismo e a xenofobia já tinham fincado suas raízes no meio acadêmico. Morgenstern relata que Roth, franzino do jeito que era, não era de grande ajuda na hora das brigas. Mas nem por isso deixava de tomar partido e um vívido interesse nos desdobramentos políticos da época. Recorda que o amigo era um ávido leitor de jornais. Que aparecia exaltado, perguntando aos colegas se já tinham lido a “Die Presse” do dia e que os olhava incrédulo quando diziam que não. Foram as longas conversas nos cafés de Viena sobre literatura e principalmente política, que estreitaram a amizade entre os dois rapazes. Apesar de ser difícil imaginar que discutir política aproxime e não afaste as pessoas umas das outras.

Daí o herdeiro do trono Habsburgo, Franz Ferdinand, foi assassinado em Sarajevo. Sua esposa também. Rumores de uma guerra contra a Sérvia correm de boca em boca. Mas a Rússia é aliada da Sérvia, qual será a sua postura? E o império alemão? Por longas duas semanas, tudo em suspenso no tabuleiro geopolítico europeu. Até que no final de julho de 1914, o imperador Franz Joseph I. assina a declaração de guerra à Sérvia.

Morgenstern e Roth se alistam, mas Roth é declarado inapto e apenas Morgenstern é mandado para um campo de treinamento na Hungria. Não deve ter sido fácil para o ego de Joseph Roth, aceitar a recusa do exército, ver os seus colegas em uniformes novos e ficar para trás no ninho seguro e confortável, porém pouco glorioso, entre os velhos e as mulheres. E destas, Roth reclamava que, desde que a guerra começara, só tinham olhos para os rapazes de farda.

Os dois amigos se reencontravam nos períodos de férias de Morgenstern, que quando dispensado por alguns dias do quartel, vinha à Viena se distrair. A conversa, é claro, tomava sempre os mesmos rumos. Falava-se da guerra e de mais nada. E com os peitos estufados, inflados de patriotismo, concluíam que a vitória não tardaria. Mesmo Roth, relegado a reles civil.

Como todos sabemos, a campanha foi um tanto quanto mais dura e longa do que o esperado e, do ponto de vista das potências centrais, malograda. Entre o que se passava na frente de combate e o que era publicado pelos jornais vienenses, havia uma notória discrepância. Tanto que em maio de 1916, Roth, provavelmente influenciado pelo que lia nos periódicos, tentou mais uma vez sua sorte na junta de alistamento militar e desta vez o aceitaram. A essa altura do campeonato, já não eram tão rigorosos em seus critérios, para não dizer que estavam aceitando tudo que andasse sobre duas pernas.

Serviram em companhias distintas e como seus destinos não se cruzaram nos campos de batalha, Soma Morgenstern simplesmente pula a primeira grande guerra mundial e o leitor reencontra os dois moços novamente em Viena, agora capital da república da Áustria. É improvável que dois anos como combatente no até então maior conflito armado da história não tenham deixado marcas e impressões em quem é que fosse, inclusive Joseph Roth. Que o que viu e viveu não influenciaram a sua visão de mundo e a sua escrita no restante de sua vida, é difícil de acreditar. Uma biografia de Joseph Roth, portanto, não poderia, de maneira alguma, deixar este capítulo de fora. Mas não se trata aqui de uma biografia (ouvi dizer que há uma biografia muito boa de J. Roth de autoria de David Bronsen, talvez seja assunto para um futuro Boteco Literário, quem sabe?) e Morgenstern tem assim a liberdade de organizar as suas memórias do jeito que bem entender.

Jornalismo, dinheiro e a vida conjugal

O autor também não revela como exatamente o seu amigo começou a trabalhar para a imprensa. Se contenta em dizer que enquanto ele, Morgenstern, concluía seu curso de direito, Roth arriscava os primeiros passos como jornalista. Acho que nos primeiros anos cobria casos policiais, mas não sei como fez para subir na hierarquia interna. Claro que escrevia excepcionalmente bem, mas munido apenas de talento, em uma cidade como Viena, não se ia muito longe. Soma descreve o meio jornalístico da cidade como estático, conduzido por uma mão cheia de medalhões que se agarram firme às suas posições sem a menor intenção de abrir caminho para novos aspirantes. E Roth deve ter dado com essa barreira logo cedo. Pois, em abril de 1920, mudou-se para Berlin, alegando falta de perspectiva profissional na capital austríaca.

A sua carreira logo decolou. Do começo da década de vinte até o final de sua vida em maio de 1939, Roth foi um profissional extremamente produtivo, tendo os seus inúmeros artigos publicados por jornais de Viena, Praga, Berlin, Frankfurt e Munique. E certamente era muito estimado por seus leitores, caso contrário não o teriam tolerado na redação dos jornais por tanto tempo, pois era uma espécie de precursor do Hunter Thompson. O que quer dizer que aprontava uma ou outra, seja entregando artigos indigestos ou não entregando nada, mesmo já tendo recebido adiantado.

O aspecto financeiro nunca ocupou posição secundária na vida de Roth. Foi o dinheiro a força motriz de sua produção jornalística e literária. Mas engana-se quem agora olha para a imagem no alto da página e acredita enxergar nos olhinhos embriagados do escritor, a chama da ganância e da avareza. Mão de vaca ele nunca foi. Muito pelo contrário. Morgenstern nos conta que, nos tempos em que viveram juntos em Paris, testemunhou mais de uma vez como Roth lidava com a sua (pouca) grana. E era de arrepiar os cabelos. Dava uma nota de mil francos à um conhecido que estava precisando, convidava um grupo de amigos para jantar fora, ajudava mais outro conhecido com a corda no pescoço e quando se dava conta, a carteira estava vazia. E era sempre assim, trabalhava para poder gastar.

Mas não é bem por isso que digo que a pecúnia era o que movia a engrenagem rothiana. Muito antes da derrocada da civilização europeia, quando Roth e todo mundo se movia relativamente livre pelo continente, em 1922, casou-se em Viena com uma moça chamada Friederike Reichler. Morgenstern admite que a mulher, então com 21 ou 22 anos de idade, quando lhe foi apresentada, não lhe causou boa impressão. Os problemas conjugais não tardaram em aparecer. Friederike se sentia abandonada pelo marido, quando este viajava a trabalho. Na época ele escrevia para uma espécie de coluna de viagens e passava boa parte do ano “na estrada”. O estado mental da jovem esposa foi piorando de pouco em pouco e a gota d‘água foi sua viagem de várias semanas à União Soviética em 1926. Enquanto Joseph Roth perdia seu entusiasmo pelo socialismo, sua esposa perdia a lucidez. Começou, então, um longo, triste e desgastante período de sucessivas internações de Friederike, que pesavam e muito no bolso do marido. Roth estava incessantemente atrás de dinheiro para financiar o tratamento de sua amada. E acima de tudo se sentia culpado pela doença que a afligia. Por tê-la negligenciado, dizia, era que a pobre adoecera. Era também o que a própria Friederike não lhe cansava de jogar na cara. É nessa época que ele começa a beber.

Roth e a bebida, a bebida e Roth

Dada a aversão de Morgenstern à esposa do amigo, não surpreende a maneira pouco lisonjeadora como a retrata. E a acusa de usar sua debilidade para arrastar consigo o marido para o fundo do poço. Mas não a responsabiliza pelo seu alcoolismo. A questão do alcoolismo de Roth é largamente abordada nas memórias de Morgenstern. É um capítulo longo, ora triste, ora cômico e no final, trágico.

Roth era um bebedor social. Não se entrincheirava em sua casa para ficar de porre sozinho. Era nos cafés, em meio ao burburinho da cidade que ia bicando a sua birita. Junto com o café da manhã já pedia a primeira dose e a saideira vinha somente às altas horas da madrugada. E raramente durante o dia era visto sem um copinho na mesa. O café era o seu escritório. Escrevia seus artigos e seus romances entre outros fregueses e como era uma figura popular, tanto em Viena como em Paris, recebia constantemente em seu “gabinete” um ou outro conhecido. E dizia que estas visitas não o atrapalhavam. Trocava com elas algumas palavras e voltava a escrever. Morgenstern, anos após a morte de Roth, ao encontrar um antigo amigo que tinha em comum com Roth, perguntou a este senhor, que foi compositor e também bastante apegado à garrafa, por que Roth sucumbira de vez ao vício e ele não. O senhor respondeu que não era capaz de escrever sequer um compasso decente quando estava embriagado, enquanto Roth botava romances inteiros no papel sem em instante algum recobrar a sobriedade.

Antes de viverem lado a lado no mesmo hotel em Paris e na condição de refugiados, cada um levava a sua vida e às vezes passavam-se anos sem que se vissem. Desta forma, Morgenstern não acompanhou o gradual declínio do amigo, mas cada vez que se encontravam, levava um baque ao ver o avanço do estrago causado pela bebida. Mas não culpava a esposa, Friederike. Para Morgenstern estava claro que Roth gostava era de tomar um pileque e que qualquer infortúnio ou aborrecimento em sua vida vinha bem a calhar como justificativa do porquê de entornar o caneco. Se faltasse drama em sua vida, inventaria. Ele gostava mesmo era de um bom trago.

Soluços e monarquismo

O leitor é conduzido pelas distintas fases do alcoolismo de Joseph Roth e eu estaria mentindo se dissesse que não é divertido. Ele nunca foi daqueles de dar vexame, mas para o final do dia, invariavelmente estava chumbado. Em consequência do consumo excessivo de álcool, seus tornozelos incharam a tal ponto que para ir ao restaurante a duas quadras do hotel, ele precisava chamar um táxi. Se apoiava em uma bengala e apesar de ter pouco mais que quarenta anos, parecia um velho de setenta. Também adquiriu uma pança que no seu corpo, por natureza franzino, tinha algo de grotesco. Este era o aspecto do autor da Marcha de Radetsky nos seus últimos anos de vida.

E assim ia aos encontros dos monarquistas exilados em Paris. Sim, tornou-se monarquista. Roth nunca foi um militante político. Interessava-se vivamente pelo que se passava nas altas esferas do poder, na política interna austríaca e na política internacional, mas não hasteava a bandeira de alguma ideologia ou de um partido em particular. Depois da primeira guerra, flertou com o socialismo, que estava em voga na Viena vermelha dos anos vinte. Entretanto, foi uma aproximação passageira e que terminou com sua viagem à USSR, onde desiludiu-se por completo. O monarquismo é um fenômeno da sua fase tardia. Não sei se está de alguma forma relacionado ao seu romance mais famoso, ao já mencionado Marcha de Radetsky, publicado em 1932. Seria compreensível se nostálgicos dos tempos de império se sentissem identificados com o livro, que evoca esta era de maneira realmente magistral, sem a idealizar, mas romantizando-a e não digo isso como crítica, mas como puro elogio de como o autor soube envolver a saga de uma família da baixa nobreza, na aura romântica de um mundo que não existe mais, mas que continua a exercer um grande fascínio.

Roth era uma figura importante e estimada no círculo monarquista. Diferente de Morgenstern, ele era relativamente famoso e, portanto, bem visto nas reuniões do grupo, talvez como um apetrecho excêntrico ou algo assim. Justificava suas convicções dizendo que um monarca forte era um bastião contra o ordinarismo do fascismo. Dinastias seculares resistiriam a movimentos efêmeros, dizia.

Soma Morgenstern não era a favor da restauração do poder Habsburgo. Longe disso. Não simpatizava com os novos amigos de Roth e os evitava sempre que podia. Mas em ocasião do aniversário de Otto von Habsburg, herdeiro do trono, caso ainda houvesse trono, Morgenstern acompanhou o amigo que estava bastante agitado, pois lhe havia sido delegada a honra de abrir a cerimônia com um discurso seu. Neste dia, Roth acordou cedo, fez a barba e vestiu-se com aprumo. Parecia um noivo no dia de seu casamento. Mas a cerimônia estava marcada só para a tarde e até lá ainda faltavam longas horas, que Roth, naturalmente, preencheu com um ou outro trago. Chegado o grande momento, o prestigiado autor tinha dificuldades em manter-se de pé, e isso não por causa de seus tornozelos inchados. Vencer os poucos metros até o Táxi que os esperava em frente ao hotel foi uma tarefa complexa. Morgenstern se preparava para o pior.

O auditório estava lotado. Roth disse a Morgenstern: “me segure e não saia do meu lado.” Morgenstern o assistiu no momento de subir ao palco, mas então se retirou ao seu lugar, deixando o amigo sozinho diante da plateia. As solenidades da comemoração de aniversário do primogênito de Karl I., o último imperador do império austro-húngaro, foram abertas com um soluço. Por um instante, reinou no auditório um silêncio constrangedor, quebrado apenas por uma brevíssima risada que escapou a uma jovem espectadora, mas que logo se conteve. Roth, então, subjugou o pinguço dentro de si e discursou maravilhosamente. O público esqueceu ou então perdoou o começo indecoroso. Sendo assim, temos que agradecer a Morgenstern por não deixar este episódio passar batido.

Delirium Tremens e o fim.

O fim de Joseph Roth, nós já conhecemos graças à minha amiga do “Exil”. Complemento esses momentos finais apenas com alguns detalhes segundo o relato de Soma Morgenstern:

Roth acordou mais tarde que de costume (o motivo foi a garrafa de Slivovitz, vocês se lembram?). Tanto que Morgenstern já tomava o seu café e lia o jornal no restaurante do hotel, sendo que normalmente era o contrário. Roth costumava se levantar antes de Soma. Desceu as escadas ainda mais devagar do que o usual e nitidamente abatido tomou seu lugar ao lado do amigo. Abriu o jornal e com enorme desgosto leu que seu velho conhecido, o escritor, dramaturgo e ativista político Ernst Toller, havia se suicidado, se enforcando em seu apartamento em Nova Iorque. No começo de 1939, notícias ruins eram a norma. E Roth, para tudo que o aborrecia, usava o termo “ekelhaft” que significa “repugnante”. Assim, fechando o jornal, repetiu várias vezes o seu “ekelhaft”, empalideceu mais ainda e caiu de sua cadeira.

Morgenstern procurou convencer os amigos e conhecidos que vieram acudir ao pobre Roth, assim como o casal de proprietários do hotel, de que não era necessário hospitalizá-lo, que era isso o que Roth mais temia e que seria, para ele, um golpe duro demais. Mas os donos do hotel não o queriam mais como hóspede e os demais insistiram em interná-lo. Desta forma, foi levado ao hospital onde dias mais tarde morreu. Soma o visitou ainda uma última vez e o encontrou muito debilitado. Com a voz rouca, Roth lhe disse que morria de sede. Que não lhe davam nada para beber. A causa da morte foi uma pneumonia dupla, agravada pelo estado de delirium tremens que pode acometer alcoólatras em caso grave de dependência quando forçados abruptamente à abstinência. Um tratamento adequado provavelmente teria salvado a vida de Roth, que era ainda jovem e não tinha outros problemas de saúde. Aparentemente os médicos que o trataram sequer sabiam de sua condição de alcoólatra.

Exéquias

Foi enterrado no dia 30 de maio de 1939. A epígrafe em sua lápide diz: écrivain autrichien — mort à Paris en exil.

O enterro quase virou baderna. Sepultaram-no no setor católico do cemitério, numa cerimônia discreta, pois Roth nunca fora batizado. Claro que não foi batizado, diziam os judeus ali presentes, Joseph Roth é judeu. Morgenstern procurou interceder, mas em vão. Os católicos ali formavam a maioria e entre eles havia figuras influentes. Além disso, a presença, entre os que prestavam condolências, do grupo de amigos socialistas de Roth de um lado e do grupo legitimista, que eram aqueles que viam no herdeiro do trono o único legitimamente titulado ao poder, do outro, não contribuiu para aliviar o clima tenso. Mas apesar de tudo, foi uma senhora chamada Manga Bell, que um pouco afastada dos congregados ao redor da cova, roubou a cena naquele dia. Ela foi a companheira de Roth, apesar de não serem casados, nos seus anos de exílio em Paris, e gemia e soluçava e não havia no mundo quem a consolasse.

Friederike Reichler, a primeira e única mulher com quem Roth foi casado, estava viva quando seu marido morreu. Ignoro se comunicaram-na o falecimento do cônjugue e caso sim, se foi capaz de compreender o que sucedera. Havia mais de uma década que vivia internada em diferentes sanatórios. De 1935 a 1940, foi paciente de uma clínica pública nos arredores da pequena cidade de Amstetten na baixa Áustria. Roth tinha conseguido se livrar das despesas da internação recorrendo ao suporte do estado. Em 1940, durante o regime Nazista, Friederike ou Friedl, como era chamada pelos mais próximos, foi levada à instituição de extermínio Hartheim, perto de Linz, onde a mataram na câmara de gás.

Falei muito, disse pouco…

Não cheguei nem perto de fazer jus a este belo livro de Soma Morgenstern, mas esteja dito, não que isso me escuse, mas esteja dito que o livro não faz jus à figura magnânima de Joseph Roth. A narrativa de Morgenstern é rica. Discorre sobre a história dessa longa amizade através de vários episódios que vão do divertido ao comovente e que revelam o estilo único do autor. Um estilo que traz vida às páginas, que não deixa o leitor de fora e que tornam a leitura bastante prazerosa. Mas, pelo mais que Soma tenha se esforçado em retratar o amigo como foi em vida, ele falhou em dar ao retrato traços que nos propiciem mais que apenas breves lampejos de sua personalidade ou que nos deem ao menos uma pista do que movia Joseph Roth, o grande escritor Joseph Roth. Pois, sinceramente, não consigo conciliar o autor da Marcha de Radetsky, o exímio contista e cronista com a imagem um tanto superficial projetada por Morgenstern.

Mas não é por isso que “A fuga e o fim de Joseph Roth” deixa de ser um ótimo livro. Nele é exposto um excerto do panorama cultural europeu e principalmente vienense do entreguerras. E por alguém que o vivenciou e dele participou ativamente. A amizade com Joseph Roth é uma história que por si só já merece ser contada. E Morgenstern a enriquece com tantos casos e histórias, preciosidade que teriam se perdido no abismo do esquecimento, caso não tivessem sido resgatados por um sobrevivente daquela era.

--

--