Alfredo — o folhetim

Revista Siesta
SIESTA
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8 min readDec 25, 2020

Alfredo é um sujeito especial. É o que a mãe dele diria, mas também podemos atestar essa condição atípica. Ela não se manifesta em termos de bens, posses ou mesmo talento natural. Com efeito, o grande destaque dele numa multidão talvez fosse a notável dificuldade em se destacar.

Porém, Alfredo foi tocado com um grande dom — um poder, para ser mais exato. Em certo sentido, podemos chamar esse rapaz de super herói. Pois o que ele traz em seu íntimo é mais surpreendente do que qualquer trama de vigilantezinho mascarado — e não adianta criar efeitos especiais ou séries de TV para tentar competir… Esse é o começo de sua saga!

***

A lâmina do Destino

Nada poderia demovê-lo àquela altura. O ultraje já fora cometido e agora restava aquele farrapo humano ainda de pé no banheirinho apertado, o chão enegrecido com marcas de sapato. O cotovelo esquerdo escorava-se sobre a superfície de louça e ele sofria os instantes finais de indecisão diante de dois olhos negros cansados, que não transmitiam piedade. Arrependimento, certamente.

Com a mão direita, Alfredo batia a lâmina de barbear no interior da pia seguidamente e retirava o tampo do ralo da pia. O ato estava feito e ele precisava sair logo para não chegar atrasado no trabalho. Então, saiu correndo, mas parou no batente da porta, olhando por sobre o ombro para o espelho, tentando enxergar se o cavanhaque tortuosamente esculpido imprimia alguma dignidade às feições. Segundos hesitação dão lugar a um sorrisinho malicioso, enquanto ele se mexe para colocar as calças: ele com certeza se parecia o Robert Downey Jr. em Homem de Ferro, um pintoso malandrão em roupa social.

Mas… Quais seriam as consequências de tamanha ousadia em seu trabalho?

No estacionamento, deu o clássico “opa” para o tiozinho da garagem. Sentiu que a aprovação, transmitida pelo aceno de cabeça desse bigodudo, fazia seu corpo se mover até a porta do elevador, que já estava por abrir. A interação no elevador foi nula. Ele não conhecia as três pessoas nem de vista porque eram de outro andar do prédio. Grudou logo os olhos na tela do celular, lendo as novidades do dia sobre jogos de PlayStation. A viagem pareceu eterna e Alfredo conseguia sentir o martelar cardíaco na garganta por antecipação: e aquela gostosinha que fazia o clipping e as redes sociais da empresa? Eles já se conheciam de poucos papos, mas certamente ela perceberia seu valor desta vez. Mas a que preço? Será que seu chefe o consideraria um rebelde? Um vilão?

Respirou fundo, engoliu seco e foi à luta. A melhor defesa é um bom ataque, ele ouvira falar, e aquele era o momento fatídico. Arrebitou o queixo ao passar pelo balcão:

– Bom dia, Mirtes.

– Bom dia, seu Alfredo.

O protocolar tratamento por “senhor” da recepcionista desceu macio e reanimou. Ainda conseguia escutar o próprio coração, mas agora batia por euforia, no ritmo da adrenalina residual do medo. Todos veriam sua aura de Tony Stark, estava óbvio. Tudo era possível. A sala tinha sido repaginada na semana passada, de cubículos para uma grande mesa comunal de startup, para “dinamizar” o ambiente.

– E aí, pessoal?

– Fala.

Apenas dois dos oito presentes responderam, mal levantando os olhos da tela. Esse era o saldo? Inaceitável.

– Poxa… Não notaram alguma coisa diferente no ar hoje? — riu e coçou o queixo.

Jorginho solta um muxoxo e apoia o braço na bancada, para levantar e pegar uma água. Seu olhar cruza com o de Alfredo e ele silencia por um segundo, antes de reclinar a cadeira novamente e exclamar:

– Caraca, Fredão! Eu não sabia dessa sua capacidade.

– Que capacidade?

– De virar um sacerdote egípcio de ontem pra hoje.

Palavras que queimam e o calam por um instante.

– Zueira, Fredão. Mas e aí? Essa estileira não é muito selvagem para o ambiente de trabalho?

Alfredo arregala os olhos. Puta merda! Então era mesmo. Aja naturalmente. Descolado, descolado…

– Ah, essa é só sua opinião, cara. Eu tô suave…

Luana, a garota do lado de Jorge, ri e bota pilha, dissimulada:

– Fredo, você já falou com o Estêvão assim? Ele parecia nervoso…

– Não… Mas o Estêvão é bem de boa, né?

– Até parece que você não conhece o Estêvão…

– Não vem com essa, Jorginho! Ele mesmo usa barba e umas camisetas iradas! A gente pode até tomar cerveja no expediente e tudo isso graças à reforma do Estêvão no setor.

– Bota uma coisa na tua cabeça, Fredão: é muito estáile para um escritório na chefia do Estêvão. Tudo o que você mencionou é muito legal, mas é perfumaria. O cara é gerente, autoridade. Já isto é brincar com fogo. Fica na miúda… — concluiu, indo buscar uma caneca na copa, a cadeira a rodar em seu eixo.

A saída foi dramática e era mesmo plausível. Alfredo sentia que poderia cagar em Estêvão. Se existisse mérito nessa empresa, seu destino seria trucidá-lo num futuro próximo. Eram feras similares, restritas ao mesmo habitat. Dois predadores que poderiam se matar, que se rondavam e se cheiravam com desconfiança, mas que se respeitavam porque a sobrevivência demandava cooperação. Uma afronta a Estêvão seria danosa para esse mutualismo, e potencialmente mortal para sua permanência na empresa.

Ensaiou pegar um café antes de se sentar ao PC. Gira em seu eixo e, no embalo rumo à copa, tromba com Estêvão, o chefe: um gordo barbado e ensebado, metido numa camiseta do Star Wars e com olheiras, mas com um forte cheiro de perfume e um jeito enérgico de falar com gestos.

– Fala, galera! Prontos para o novo programa de monitoramento do talude crítico? A matriz atualizou o sistema e agora as águas da região Baixada Santista vão ser monitoradas twenty four-seven, direto do celular.

– Da hora, Estêvão! Já dá para passar o appzinho para geral? — Alfredo, o solícito, em ação.

– Ainda não, Fred, mas vou avisar vocês quando mandar a API. Mas você vai ver que vai dar um belo upgrade na sua área de Bio. Revolução mobile, bro!

Big data, né? Irado.

Big fucking data!

Estêvão nem atentara para seu cavanhaque. Ele até se ofenderia, se não se sentisse aliviado. Além do mais, realmente se entusiasmou tanto quanto o chefe com a perspectiva de uma nova fronteira tecnológica.

A companhia de tratamento de águas estava num processo de otimização do trabalho após anos pendurada no saco do Estado. O gerente Estêvão era o capataz high tech do superintendente. Para os amigos, o figurão comparava o gerente ao JK das águas da Baixada, incumbido de enxugar os custos da empresa, de cinquenta funcionários para cinco. Já Alfredo não saberia, nem por dinheiro, responder quem era JK — a menos que fosse o nome de um novo parâmetro para medir coliformes fecais nas águas.

A máquina de café. De caneca em mãos, Alfredo se contém para que seu queixo não caia: a famigerada morena do clipping está na máquina ao lado. Ele encolhe a pancinha e raspa a caneca na mangueirinha até parar de pingar o cappuccino. Hora de ser jovial:

– Salve!

– Oi…?

– Alfredo! Mas pode chamar de Fred.

– Demorou. Fred.

Ela aperta um botão da máquina de petiscos e nenhuma conversa se desenrola. Ele corta o silêncio antes que fique chato:

– E você é…?

– Letícia, mas pode me chamar de Lêti.

– O que você está pegando aí?

– Uma codeína na minha Fanta e um beque.

– É… Segunda-feira é foda… — sabia que “beque” era maconha, mas ficou com medo de falar merda.

– Brincadeira… É coisa da galera do trap.

– Ha ha ha… Eu adoro música também. Você viu que o Elon Musk gravou uma música para um gorila que abateram num zoológico? O cara dedicou a música para um gorila! Dá para acreditar?

– O quê…? Gorila?

– Aquele lá que quase matou uma criança e tiveram que atacar com um tranquilizante…

– Harambe!

– É, deve ser…

– Nossa, eu lembro disso. Chorei um monte por causa desses fascistas do zoológico… Nem fui ao cursinho no dia seguinte.

Confuso, ele tenta dar a volta por cima:

– Verdade. Não sei o que o garoto foi fazer perto da jaula do gorila… Mas achei a música meio fraca, esperava mais do Elon.

– Quem é esse cara mesmo? MC Lon?

Alfredo não consegue disfarçar em seu semblante a surpresa com a ignorância da garota. No entanto, sobre o ombro de Lêti, avista Estêvão chamando-o com as mãos.

– Desculpe… Preciso ir. Depois a gente se fala.

Caminha deslizando pelo carpete cinzento. A mesa da equipe podia ser chique como numa startup, mas o piso e o ar ainda eram repletos de ácaros como uma repartição pública.

– Diga, Tevão.

– Oi, Alfredão. Por favor, não me chame assim.

– Desculpa.

– De boa. Ia te perguntar: você sabe que eu tenho uma grande confiança em ti no setor, né?

– Poxa… Muito obrigado!

– Por nada! Well, queria te fazer uma proposta para capacitar mais gente da empresa. Com o novo sistema mobile podemos parametrizar as novas superfícies aquáticas e dinamizar a atividade da empresa. O que acha que representar nosso setor em Itanhaém?

– Sério? Mas a empresa não tem ninguém de confiança por lá?

– Eles acham que os feedbacks de alguém da matriz podem levar ar fresco… Estavam atrás de alguém com mobilidade e vontade de crescer na empresa, daí pensei em você, bro! Fist pump!

Alfredo bate sem empolgação no punho do chefe, um sorriso amarelo na cara.

– Achei legal, mas posso pensar um pouco antes?

– Pode, claro. Mas, cá entre nós, acho que você tem mais chance de crescer em Itanhaém do que por aqui…

Cacete… Então Jorginho estava certo. Estêvão afinal vira seu cavanhaque, que lhe custara seu prestígio, numa proposta que ele não podia recusar.

– Demais.

Podia ser o café, podia ser a nova informação, mas ele definitivamente precisava cagar. O banheiro da direita estava interditado e a porta da esquerda estava fechada. Enquanto ele esperava, peidava olhando seus detalhes: ficava a dez passos da mesa da secretária e era lisa, sem ornamentos. A única figura que chamava a atenção era o trinco, com a fechadura dourada, quase verde à luz fluorescente do escritório, e que vazava a luz interna pelo buraco. Por um instante, o Homem de Ferro com os olhos raiando pela máscara vieram à sua mente.

Subitamente, porém, a chave gira. A porta dá um tranco e a morena Lêti sai de dentro. Agora ela descobriria os odores putrefatos das profundidades de seu interior. Desesperado, ele busca em sua mente qualquer coisa para comentar:

– Caramba… Largou um dedo de gorila aí dentro?

A porta se fecha num baque.

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