Boteco Literário

Revista Siesta
SIESTA
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14 min readDec 24, 2020

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G. Sardinha para a revista Siesta

Dicas de leitura, sim! Mas nada de inteligência artificial cuspindo um bem bolado de recomendações sob medida para ti e só para ti. E tampouco pretendo meter goela abaixo de ninguém, o meu gosto pessoal. Não se preocupem. Aqui, no Boteco Literário, é o algoritmo do acaso que engendra a pauta.

Permitam que me explique.

Há uma década, arredondando pra baixo, frequento assiduamente tudo quanto é café e bar na cidade. E na maior parte das vezes me sento quieto num canto e não incomodo ninguém. Mas de vez em quando, seja por simpatia, por tédio ou no embalo de um destilado, me envolvo em conversas com gente que não conheço, geralmente o vizinho de mesa ou a garçonete.

E peço, então, para que me sugiram um livro. Coleto sugestões de livros, é isso. Meu nome é Gaspar Sardinha.

O Mocho Cego de Sadegh Hedayat

Boteco Literário. Episódio 1.

Por Gaspar Sardinha.

Nachtasyl nos anos 80, reduto de expatriados tchecoslovacos. Hoje um bar esfumaçado no sexto distrito de Viena. O barman, não lembro o seu nome, me recomenda o Mocho Cego de Sadegh Hedayat. O que segue abaixo, é uma reconstrução pouco fiel do que se passou naquela noite. Até porque as lembranças que me restam são um tanto túrbidas. Preenchi as muitas lacunas com informações a respeito da obra que obti no ensaio “Tombeau de Sadegh Hedayat”, de Youssef Ishaghpour e principalmente de uma entrevista com o professor Jason Reza Jorjani no programa de Jeffrey Mishlove.

1° PARTE

- Não, isso aqui é haxixe. — Foi o que ele me respondeu sem que eu tivesse perguntado. Um sujeito com rosto cadavérico, os seus cabelos pretos caindo em cachos.

- I’m from Egypt — emendou.

- Tá certo. Dá um pega?

Mais tarde fui vomitar no banheiro e galguei, na ida e na volta, o corpo de um homem estirado no chão encardido.

- O Céline acabou como um antissemita nojento.

- Cacete, não sabia.

- Isso mesmo. É bizarro, mas foi essa a forma que a senilidade dele assumiu. — Me explicou o barman agora de folga, já tinha fechado o bar.

- Me diz uma coisa. — E apontando para a outra extremidade da mesa: — quem é esse egípcio?

- É um cara do Egito.

Meu cérebro estava derretendo.

- Sadegh Hedayat.

- Beleza.

- Conhece?

- Dei um pega no baseado dele.

- Não, mano! Escritor persa da primeira metade do século vinte.

- Qual foi seu mérito?

- Sua visão de mundo é uma das mais sombrias de toda a literatura mundial. A atmosfera que cria com a sua escrita é comparável à de um Lovecraft ou Edgar Allan Poe, mas seus abismos metafísicos são mais perturbadores. Te atinge em um nível mais profundo e é desconcertante.

Dei um golão de cerveja já que não tinha o que responder. Chegou uma mulher, como vinda do além. Olhava pra mim e sorria. Parecia feliz por saber de algo que eu nem podia suspeitar. Tipo, isso aqui é uma ratoeira e daqui você não sai mais com vida.

- O Mocho Cego. Romance que ele publicou com a seguinte condição: o livro não pode ser vendido e nem circular no reino da Pérsia. Um raro caso de censura autoimposta.

- Mas por quê?

- Retaliação. Ele tinha desenhado uma caricatura de Maomé pra revista de um amigo. Não to brincando, tamo falando dos anos 30. Aí o governo disse que não pode e ele que era um cara rancoroso…

- E ele fez valer a sua vontade?

- Claro que não. Mas depois da revolução o livro foi censurado. Pena que a essa altura o Sadegh já estava morto e enterrado.

Observei o egípcio inalando o exsudato resinoso, extraído do tricoma das flores e das inflorescências da Cannabis e como em baforadas contribuía com a névoa leitosa que pairava, diria que para todo o sempre neste arcabouço sem janelas. Meus olhos lacrimejavam.

- Um mundo misterioso em que não se pode mais distinguir entre o reino do visionário e as alucinações de um viciado em ópio. — Eu mesmo pronunciei estas palavras, que me escaparam de não sei qual antro absconso do meu ser. Meu companheiro de conversa não estranhou e emendou:

- Exato. O Mocho Cego ao mesmo tempo fascina e seduz, embriaga como um bom vinho, enfeitiça e embota os sentidos como a fragrância pesada de um perfume exótico. A pitada de realidade não basta para manter o equilíbrio, pelo contrário, embaralha ainda mais a ordem dos acontecimentos, torna impossível a distinção entre o sobrenatural e o natural, entre a visão transcendente e a existência terrena, entre sonhos alucinantes do barato do ópio, como você bem disse, e experiências concretas. Todas as figuras e personagens se metamorfoseiam incessantemente e o outro, o estranho, avança na surdina para corromper e transmutar o “Eu”. Quer mais uma cerveja?

- Cara, valeu, mas nem fodendo. Amanhã já vou tá um caco.

- É inútil a tua aflição. Nada podes sobre o teu destino. Se és prudente, toma o que tens à mão. Amanhã… que sabes do amanhã?

- Sei que estarei fodido.

- É por conta da casa, mané.

- Manda aí.

O barman, enquanto tirava o chope, prosseguia:

- Omar Khayyan também dizia pra pegar hoje um copo de vinho e ir se sentar à luz do luar, pois talvez amanhã a lua te procure em vão.

Eu quis saber se esse Omar era o egípcio do haxixe.

- Não. — Me respondeu batendo o caneco na fórmica do balcão do bar e derramando um pouco da cerveja. Mas em seguida ergueu a vista em direção ao sujeito que com uma mão mantinha o beque em riste e com a outra segurava a taça de vinho cheia até quase a borda (cheia de sangue, pensei), e reconsiderando, ponderou:

- Ou talvez seja. Não sei. Esse lugar é muito louco.

Tomei um gole generoso já que uma vez mais não sabia o que dizer. E de estômago vazio. Já disse que vomitei minhas entranhas no banheiro sórdido desse frege-moscas do caralho. O barman recuperou o fio da meada e deu sequência aos seus pensamentos:

- A obra de Hedayat nos passa não apenas a indelével impressão de que esta vida mundana é absurda e que ela carece de qualquer significado inerente, mas que não há, aliás, dimensão espiritual além desta vida que contrabalanceie esta existência banal. Pois a dimensão supramundana que permeia o Mocho Cego, não é um refúgio para nossas almas, não é um refúgio da condição humana. E a maneira como ela se entrelaça com a nossa vida cotidiana, bem, certamente não é a de um “reino dos céus”, mas de uma zona intermediária, de uma zona crepuscular, onde o impossível acontece, mas onde este “impossível” não é necessariamente algo bom, não é necessariamente algo milagroso. Pode também ser, se não o é na maior parte das vezes, algo danoso, algo maldito.

- Tirando a esfera transcendental, me lembra Kafka. O desconsolo de uma existência despojada de sentido e a inexequibilidade (trava-língua traiçoeiro para um bêbado) de qualquer revide, o esboço de uma ação é inútil pois não se esbarra numa força maior, quem dera, mas é o mundo todo que nos mantém em cheque.

Meu interlocutor me beijou na testa, comemorando:

- Isso porra! Kafka! Hedayat está a meio caminho entre Omar Khayyan e Kafka! Sabia que foi Hedayat quem traduziu Kafka pro Persa?

- Não sabia.

- Ele traduziu a obra de Kafka em uma época em que pouca gente tinha ouvido falar deste obscuro escritor judeu de Praga e que escrevia seus livros em alemão.

- Deve ter encontrado em Kafka algo de especial.

- Sim. Foi na solidão de Kafka, no tal do “dever de aspirar pelo absoluto e encontrar o nada”, que Hedayat reconheceu a si próprio.

2° PARTE

- No zoroastrismo, a consciência dos atos praticados em vida, chamada daena, após a morte, materializa-se e assume a forma de uma mulher. Se a consciência tá limpa, tá tranquila, esta mulher será uma encantadora virgem de quinze anos. Já se fizestes bosta, meu amigo, chegou a hora de te arrepender, pois para fazer-te pagar pelos deslizes, se afigurará diante de ti uma terrível megera.

A mulher de antes reapareceu bem no instante em que o barman terminava de proferir estas palavras. Seus olhinhos rutilantes me perfuraram como uma azagaia e um frio me correu pela espinha. Pra disfarçar entornei o caneco e matei a cerveja. Estávamos agora sentados à mesa. Diante de mim o eloquente barman, ao meu lado, na ponta da mesa, o egípcio e errando feito um espectro ao redor de nós três, a tal da mulher. Ele prosseguiu:

- E a principal figura feminina que aparece sob várias formas ao longo do romance, é uma exteriorização da própria consciência interior do narrador.

- Legal, então ele tomava emprestado elementos do zoroastrismo?

Meu companheiro de conversa olhou pro caneco vazio à minha frente e muito solicito, disse:

- Se você quiser mais cerveja é só se servir. Sabe tirar um chope?

Voltei com o copo cheio de espuma, mas ninguém comentou. O barman queria apenas retomar a história.

- Hedayat terminou O Mocho Cego em Bombaim. Ele tinha ido pra lá pra estudar o idioma persa médio pálavi, o idioma das escrituras zoroastrianas do período sassânida.

- Na Índia?

- Então, ele foi para Bombaim porque era um reduto dos parses, os zoroastristas que fugiram do Irã e se reinstalaram na Índia, após a conquista islâmica do Irã. Ele estava interessado em aprender pálavi com os zoroastrianos de Bombaim.

- E essa ideia ele teve assim do nada? Vou pra Índia aprender uma língua morta!

- A empreitada é menos surpreendente quando se leva em conta que Hedayat, em sua época, era mais conhecido como folclorista do que como romancista e que ele realizou diversos estudos acadêmicos sobre o folclore iraniano.

- Tudo bem, mas não deixa de ser inusitado. É uma área bastante específica.

- Acho que ainda como estudante, tinha estado na Europa, onde viu que por lá já se tinha realizado pesquisas aprofundadas, mesmo a respeito das tradições folclóricas das mais obscuras culturas tribais. Assim, lamentou o fato de que, com essa rica herança que o Irã possui, ninguém havia feito um estudo adequado do folclore persa.

O egípcio me passou o banza. Enquanto puxava o fumo, ouvia as palavras do barman:

- Ele escreveu dois livros sobre folclore persa. Nestes estudos, fica nítido o seu empenho em construir uma ponte entre a fé celta dos contos de fadas dos europeus e o antigo folclore de fadas indo-europeu que sobreviveu no Irã. Seu intuito era de criar uma espécie de folclore pan-ariano.

- Esse bagulho é poderoso. Dei uma pitada de leve e já tô te ouvindo falar em fadas.

O egípcio deu uma risadinha sapeca, mostrando seu sorriso com manchas de nicotina.

- Todos os traços determinantes dos contos de fadas do norte europeu também estão presentes nas florestas do norte do Irã. E Hedayat ficou fascinado com isso. Ele queria encontrar uma forma de integrar, sintetizar, criar uma simbiose, sei lá, entre as noções científicas modernas e o enraizamento da crença no mundo das fadas na consciência das pessoas. E se vê isso refletido em certos elementos de ficção do Mocho Cego, de viagens mirabolantes que tocam as raias da loucura, misturados com motivos oriundos dos contos de fadas persas. Por exemplo: Hedayat baseia-se num conto de fadas preservado pelo poeta do século XIV, Nizami Ganjavi. Nizami escreveu um livro intitulado As nove belezas e ele…

- hmmm. — Murmurou, se é que não rosnou o egípcio. E na sua voz rouca retificou:

- As SETE belezas, não as nove belezas. Sete, pois o imperador persa Baharam V, da dinastia sassânida, trouxe à sua corte, sete princesas vindas dos sete cantos do mundo e trancou cada uma delas na cúpula de uma torre. A princesa da Índia, trajada sempre de preto, foi levada à cúpula negra. E é ela quem conta ao soberano a história da jornada de um homem a um reino lunar governado por fadas.

Isso aqui é um hospício e esses caras são loucos, pensei. O barman retomou a palavra:

- E Hedayat está sem dúvidas servindo-se de elementos dessa história para desenvolver alguns dos personagens no seu romance. A mãe do narrador desconhecido por exemplo, que é uma dançarina num templo hindu ou o fantástico ser etéreo que cruza o caminho do narrador e que tem todos os atributos de uma fada, como a fada rainha do conto de Nizami Ganjavi.

O egípcio, agora que havia sacudido a poeira do torpor, estava ligado na conversa e sua voz arranhada voltou com um ímpeto inesperado:

- Nas Sete Belezas, as sete cúpulas representam a progressão da consciência em direção à revelação e à perfeição. A última cúpula é a cúpula branca, que se alcança depois de cumpridas as outras etapas, que correspondem às cores do arco-íris seguidas pelo preto. É um esquema zoroastrista bastante ortodoxo e Baharam V era zoroastrista, o imperador sassânida Baharam V. E as sete cúpulas correspondem às sete zonas climáticas da terra, ou às suas sete regiões geográficas de acordo com o zoroastrismo. A cúpula branca é o oitavo clima, que é um reino supra sensorial, como o céu budista.

- Mas Hedayat — interveio o barman, — transforma a oitava esfera em uma zona de penumbra. Não há, na escrita de Hedayat, nada além da cúpula negra. O que nos leva ao capítulo da cúpula negra na lenda das Sete Belezas, no qual à cor preta segue apenas o nada. Pois o preto absorve as demais cores e nada pode manchar ou macular o preto. E tá na cara que este elemento negro está ligado à princesa da Índia. O que implica em uma série de associações às imagens tântricas da deusa negra Kali. A imagem de Kali permeia a história do Mocho Cego.

- Calma, calma, calma. Kali não é uma deusa do hinduísmo? Kali, a mãe das trevas. — Disse olhando com receio pra mulher, ou a sua silhueta na meia luz do recinto.

- Claro. Mas imagino que Hedayat, que era uma pessoa de uma curiosidade insaciável, aproveitou sua estadia em Bombaim para fazer outras coisas além de se debruçar sobre escrituras zoroastristas. Ele deve ter tido contado com algum culto à Kali ou à Shiva, onde certamente o fascinaram a metafísica e os aspectos éticos destes rituais.

- Tá certo, entendi. Mas agora vocês me dão licença senão eu mijo nas calças.

3° PARTE

A carcaça humana estirada no chão tinha mudado de lugar. Jazia alguns metros adiante, onde o fedor dos mictórios era mais penetrante. E saindo do banheiro esfregando o nariz, levei um susto ao ouvir num tom de voz pegajoso e assanhado:

- Tem pra mim também, amigo?

- To só resfriado. — Respondi, depois de hesitar por um instante, honestamente ao desventurado que juntava as últimas forças para se apoiar na parede. Olhando no turvo de seus olhos, saquei na hora que se se tivesse a força, me cortava a garganta sem pestanejar.

- O oráculo do banheiro, o cara lá trás é a personificação do mal. É tanta ruindade que transborda pelos olhos. — Disse ao tomar meu lugar à mesa, ainda um tanto aturdido. Meu caneco, que tinha deixado vazio, estava milagrosamente cheio até a borda.

- No zoroastrismo, e isso é de conhecimento geral, você sequer se depara com a questão do bem e do mal, ou melhor, da justificação da existência do mal, pois não há uma divindade omnipotente e omnisciente. — Interpôs o egípcio. O barman se interessou pelo assunto, e foi logo dizendo:

- Suponha que existam duas forças antagônicas, uma do bem e a outra do mal. Neste caso, por que o deus do bem iria negociar o domínio do mundo com o deus do mal? Por que rachar com o outro o império sobre tudo que existiu, existe e existirá?

- Do que vocês tão falando? O sujeito da latrina é zoroastrano também? — E caí numa gargalhada que, francamente… Eu não tava nada bem. Aquilo já tinha passado dos limites. O barman deve ter notado meu desnorteamento, pois disse com indulgência:

- Vamos rebobinar a fita. Hedayat se interessou por variantes do zoroastrismo que divergiam da ortodoxia, da religião oficial do império da dinastia sassânida e que eram, portanto, consideradas heréticas. E neste contexto, destacam-se entre os demais, dois ramos. Um é o zurvanismo e o outro é o mazdaísmo. No zurvanismo, hoje apenas um ramo extinto do zoroastrismo, acreditava-se que na luta entre os gêmeos…

Me vendo sorvar a cerveja e o véu da ignorância que me cobria a vista, cada vez mais espesso, o barman optou por outro caminho:

- Ou melhor, vamos passo a passo. Zurvan é uma divindade andrógena, criadora primordial e personificação do tempo e do espaço infinito. Tipo Chronos na mitologia grega, beleza? Zurvan era retratado como um ser transcendental e neutro, sem paixão e que não distinguia entre o bem e o mal. Este ser gerou os gêmeos Ahura Mazda e Ahriman. Durante a gestação, se é que posso usar esse termo, Zurvan foi seduzido ou seduzida por um demônio da luxúria e da tentação. E o que aconteceu? Ahura Mazda, o benevolente, que era o gêmeo predestinado a nascer primeiro e reinar o mundo, perdeu seu posto para Ahriman, seu irmão e antagonista, que sob a influência demoníaca, rasgou o ventre de seu genitor, veio à luz antes do maninho e apropriou-se dos privilégios reservados ao primogênito.

- Então o mundo está nas mãos do demônio?

- A princípio, sim. Os zurvanistas acreditavam que se Zurvan não tivesse sido seduzido pelo demônio, Ahura Mazda teria levado a cabo a sua criação perfeita. Mas Ahriman botou água no seu chope e o bom moço se viu obrigado a tratar e negociar com o vilão. Resultado: O domínio sobre a terra foi parcelado em sucessivos períodos ou eras e divididos entre as forças das trevas e as forças do bem. Essa é a resposta zurvanista ao problema da existência do mal, à questão que eu tinha jogado na roda antes. Mas não é parte do cânone oficial.

O franzino egípcio soltou uma baforada impressionante, como se tivesse pulmões de atleta e na densa névoa que se alastrava entre nós, lançou as seguintes palavras:

- Ao longo do curso do tempo cósmico, governado pelas doze constelações, as constelações do zodíaco, prevalece a noção de que muitas vezes é o mal quem segura as rédeas do pangaré que chamamos destino.

Palavras ignoradas pelo barman que mais uma vez guiou a conversa para onde queria, dizendo:

- Então Hedayat adotou a cosmologia zurvanista e nos deparamos com ela incorporada no protagonista do Mocho Cego, não o tempo todo, mas ocasionalmente, como na sequência quando é seduzido pela figura feminina, figura que assume cada vez uma forma diferente e que pode ser interpretada como o demônio da luxúria e da tentação que seduziu Zurvan. Já as figuras masculinas, personagens diversos que habitam as páginas do Mocho Cego, no final das contas podem ser reduzidos às projeções da subconsciência do próprio narrador. São, portanto, sombras. Muitas sombras de um só “eu”.

Não me pareceu tão absurdo, já que àquela altura tava vendo tudo dobrado. Só achei melhor ficar quieto e deixar o rapaz continuar. E ele continuou:

- Chegamos assim à ideia de que somos sombras de versões arquetípicas mais perfeitas de nós mesmos que existem num plano supramundano. Mas que por lá há menos arquétipos do que há pessoas aqui no mundo, o que significa que nossa personalidade estilhaça, se desmantela em elementos avulsos, ao cair à terra. Nossa missão, portanto, é tentar juntar as peças deste quebra-cabeças e recobrar a nossa personalidade em sua plenitude. E os mazdaistas, lembra deles?

- Lembro. A marca de carro japonesa tem alguma coisa a ver com isso?

- Tem, mas não é relevante. Enfim, os mazdaistas foram duramente perseguidos por sugerirem que práticas eróticas e o amor livre e essas coisas, eram maneiras de reintegrar as sombras psíquicas, de se reconectar com a alma gêmea no plano supramundano e de atingir um estado espiritual mais elevado. No reino da Pérsia em quatrocentos antes de Cristo, isso deve ter sido mesmo uma puta heresia. Muito bem, então, ãhm, o que eu tava dizendo? Ah, isso mesmo, também vemos estes conceitos no Mocho Cego. Pois há lá todo tipo de imagens eróticas que sugerem uma investida do protagonista, uma investida não necessariamente bem sucedida, para restituir estes diversos elementos, estes aspectos desagregados de sua psique.

A mulher ressurgiu das trevas e se sentou no colo do egípcio, que se recusou a passar o beque pra ela, indiferente ao olhar furioso da megera.

Tinha a impressão de que também eu me desagregava. Se minhas sombras me abandonavam e debandavam para salvaram a si, eram elas pedaços da alma: o tributo a ser pago pelos excessos desta noite. Quem eram esses caras? E essa mulher? Esse é o bar mais caído, mais sórdido em que pus os pés na vida. Zurvan e o demônio. Quente pra cacete. E eu suava e bebia, suava e bebia e não lembrava mais de como tinha vindo parar aqui. Um inseto atraído pela luz da lamparina, pensei. Trágico, pensei. Que saudades da luz do dia.

- Quero um Mazda. — disse a todos os presentes.

- Sabia que Sadegh Hedayat vendeu toda a sua biblioteca para poder voltar pra Paris?

- Não sabia.

- E sabe o que ele fez, assim que chegou em Paris?

- Se matou.

Me levantei. Um ponto final mais absoluto que este, não há.

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